O bandido sangrando no asfalto e o dever de amar
Cesar M. Rios A imagem é de um bandido sangrando após levar um tiro. Uma mulher que seria médica e estaria passando por ali tenta estancar o sangramento com uma camisa ou coisa assim. Pessoas ao redor têm opiniões diversas. Um homem critica. Diz que tinha que deixar o bandido sangrar para morrer. Uma jovem tenta defender a médica. É insultada. Isso tudo é num vídeo curto. Nos comentários, alguns usuários do Facebook concordam com o homem. Estão fartos da violência urbana. Todos estamos. Outros dizem que a mulher só deveria ajudar o bandido se realmente for médica. Se é médica, fez um juramento. Tem que salvar a vida dele. Se não for médica, segundo uma jovem, é uma idiota. Minha reflexão é a mais genérica possível: e se fosse qualquer um de nós, com um pano acessível e o bandido sangrando, deveríamos ajudá-lo a viver ou não? Minha resposta é simples demais. Temos algo muito maior que um juramento médico e que nos envia ao auxílio do bandido sangrando: o Batismo. Já não sou mais eu quem vivo, Cristo vive em mim. Isso tem a ver com o perdão recebido imerecidamente. Tem tudo a ver com o fato de que minha salvação depende do que Cristo fez por mim e não do que eu, na minha inconstância, farei ou não pelo bandido. Mas... Isso também tem a ver com quem eu sou e com quem é Cristo para mim. Eu não sou senhor de mim mesmo. Mesmo que eu ache que bandido merece morrer, o meu achar não se sobrepõe ao que meu Senhor manda. Na verdade, minha opinião se submete. Com meu Senhor, sei que o inimigo é para ser amado e não odiado (Mt 5.4348). Deixá-lo morrer podendo salvá-lo não é amá-lo, mas o contrário. Isso não quer dizer que você não queira que o bandido seja responsabilizado judicialmente por seus crimes. Uma frase usada pelo homem no vídeo foi: “Faz carinho nele. Leva ele (sic) pra casa então.” Sim. Ele diz isso para a médica. No caso da pessoa cristã que socorre o bandido, isso não faz sentido. Ela o ajuda não por pensar que ele é bonzinho ou por pensar que não deva ser punido seriamente. Ela o ajuda por submissão ao seu Senhor. Pode, inclusive, deixar claro ao bandido: “Não te ajudo por merecimento seu ou por vontade minha. Ajudo por Cristo, que me salvou quando eu não tinha absolutamente nada de bom, me deu vida quando eu estava morto em meus pecados”. Ela o ajuda por submissão ao seu Senhor. Foi o que eu disse. Sei que, enquanto alguns cristãos amam o dever, outros o abominam. Pensam que a mera ideia do “dever” obscurece a dádiva da justificação por graça mediante a fé. Discordo completamente. E vejo o “dever” como fundamental nesse caso. Com Kierkegaard (As obras do amor), entendo que, se não há “dever”, eu teria escolha de amar essa pessoa e aquela não. Caberia a mim decidir a cada caso. Haveria brecha. Mas Jesus não sugeriu amar. Ele disse “amai”. Vejo um ser humano e, independente do que penso dele, estou no dever de amá-lo. E como amar? O amor a Deus está bem expresso nos primeiros dos 10 mandamentos, como sabemos. O amor ao próximo, por sua vez, está expresso nos demais. E um específico nos vem à mente no nosso caso: “Não matarás!” Mas eu não descumpro esse mandamento se não sou eu quem produz o ferimento no bandido, pensará alguém. Será mesmo? Lutero parte da negativa dos mandamentos para seu oposto. Cumprir o mandamento não é só não fazer o interditado, mas agir pelo seu contrário. No caso deste: “transgride este preceito não só quem pratica ações más, mas, também, aquele que, podendo fazer o bem ao próximo e obviar, obstar, proteger e salvar, de modo que nenhum mal ou dano lhe suceda no corpo, todavia não o faz” (Catecismo Maior, explicação do Quinto Mandamento, 189). “Mas quem é o meu próximo? O bandido não é o meu próximo!” Nossa fuga seria essa, que já foi tentada antes – você bem se lembra. Sem recorrer a todo o relato do samaritano, que lembra que não se faz essa pergunta, vou continuar no Catecismo: “A intenção real de Deus é, portanto, que não permitamos venha qualquer homem a sofrer dano, e que, ao contrário, demonstremos todo o bem e amor. E isto, conforme dito, mira particularmente aos nossos inimigos. Porque fazer o bem aos amigos não passa de comum virtude gentílica, segundo a palavra de Cristo em Mateus 5” (Catecismo Maior, explicação do Quinto Mandamento, 193-194). “Mas minha vontade é...” Eu sei. Mas não é sua vontade que é solicitada para definir sua ação aqui. Lembre-se do seu Batismo. Lembre-se de quem você é e de quem é Cristo para você. Minha vontade também é vingar. Mas o propósito de Deus, com o mandamento, é justamente “sufocar em nós, dessa maneira, o desejo de nos vingarmos” (Catecismo Maior, explicação do Quinto Mandamento, 195). Acrescento que, justamente por eu não ser um novo ser perfeito, e justamente por ter minha velha natureza em mim, com sua vontade corrompida, é que há ainda o que veio a se chamar Terceiro Uso da Lei. Ela está aí também para isso. Para me lembrar e redirecionar. Mas é assunto longo e o deixaremos para depois. Enfim, mas, conforme as pessoas que discutiam o vídeo, quem faz isso de salvar bandido é petista, esquerdista, que pensa que o bandido é vítima da sociedade. Outra pessoa diz que o que acontecia ali era falsa piedade. Queridos e queridas, nossa ação, algumas vezes, pode ser a mesma por motivos diferentes. Eu veria como normal se um cristão estivesse ali salvando o bandido e, ao mesmo tempo, pensando que ele poderia ser justamente condenado à pena de morte em seguida (Não que eu pensaria assim. Estou buscando um exemplo para mostrar que, com diferença grande de opinião sobre o arranjo social, pode-se agir de modo semelhante.). Isso é um grande problema? Agir como pessoas que defendem outras ideias? Será mesmo? Aja segundo a vontade de seu Senhor e testemunhe o motivo: seu Senhor e a obra dele. Pronto. (Essa ideia de agir de modo semelhante por motivo diverso me vem esclarecida via The Gospel in a pluralist society, de Lesslie Newbigin.) “Ah... essa questão ética é muito complicada, porque o bandido pode ser salvo e fazer mais dano a outras pessoas”. A ética se resume não “a mal maior” e “mal menor”, nem a “certo” e “errado”. A ética – vou com Bonhoeffer (Ética) nessa – se resume a fazer a vontade de Deus. E essa, para mim, nesse caso, está muito clara – desde o Sinai e desde a boca do Messias. "- Quem desses três te parece ter sido próximo do que caiu na mão dos ladrões? Ele disse: O que agiu com [fez!] misericórdia para com ele. E disse a ele Jesus: Vá e você também faça igual!" (Lucas 10.36-37) Paz, graça e bem!
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O desenho é provocativo. Um muçulmano, um cristão e um budista (?) esperam com apreensão e temor pelos resultados que um cientista trará para a cura de uma doença. É criativo e provocativo, mas não reflete a realidade muito bem. O problema mais óbvio é o isolamento entre ciência e religião. O cientista não pode ser adepto de uma dessas três religiões? Os homens da religião precisam estar assim temerosos, como que confiando no cientista como fonte de salvação? Afinal, um bom budista teme assim a morte? E o cristão? E o muçulmano? No caso do cristão, que é o que me interessa, é bom lembrar que a fé cristã se vive na vida cotidiana, nas variadas ocupações da vida comum. Servimos ao próximo no nosso trabalho diário, como pais, mães, bancários, músicos, professores, médicos, mecânicos, cientistas... Ou seja, o trabalho de um cientista é visto como um trabalho como outros, que deve ser feito em prol da vida do próximo. A pessoa que é cristã e cientista realiza esse trabalho justamente entendendo que serve ao próximo, seguindo, na profissão diária, os passos de seu Mestre. A pessoa não-cristã não vê seu trabalho como seguimento de Cristo, já que não o segue. Ainda assim, seu êxito é alcançado dentro do âmbito da bondade de Deus para com sua criação. A cientista cristã serve ao próximo com sua descoberta para a glória de Deus e para o bem das pessoas. A cientista não-cristã serve ao próximo no desempenho de sua carreira, e esperamos que um dia reconheça a dádiva de Deus na possibilidade do exercício dessa profissão. Nessa dinâmica, já se vê que a religião não espera da ciência como se esperasse de uma concorrente. Espera de uma vocação como de outras tantas. A Igreja não faz pão. Mas vê com bons olhos os pães que são feitos por padeiros por aí, sejam eles cristãos ou não. O padeiro cristão acorda cedo e sabe que, além de garantir seu sustento, como seguidor de Cristo, serve ao próximo... (Bom, você já entendeu isso.) Também seria bom lembrar que a Igreja cristã não é concorrente da / oposta à ciência por aquilo que se vislumbra na própria história da ciência. Boas notícias, tanto de medicamento quanto de possível vacina para a COVID-19 aparecem por agora desde Oxford. Não vamos nem mencionar que as universidades europeias nasceram da Igreja. Mas Oxford me lembra que é lá que se encontra um importantíssimo centro de reflexão e pesquisa sobre Ciência e Religião (https://www.theology.ox.ac.uk/science-and-religion). E a concorrente Cambridge não se silencia também sobre o assunto (https://www.faraday.cam.ac.uk/). Aprendemos com esse pessoal que o conflito Ciência vs. Religião é mais inventado que historicamente necessário. Mas é conversa longa isso. E, popularmente, é mais fácil manter a ideia de simples e inegociável disparidade, oposição, alteridade absoluta. Agora, tem uma coisa que me incomoda há muito tempo nas conversas sobre Ciência e Religião. É que, sempre que surge o assunto, pensa-se em ciências naturais. Quase sempre, a conversa descamba para o assunto do evolucionismo. Isso me incomoda. Certamente, deixa muita gente com sono. Há alguns anos, quando eu tinha que falar sobre os desafios para a fé cristã no ambiente acadêmico, não hesitei e investi na minha percepção: Nosso maior desafio não é Darwin, mas Deleuze. Não, não especificamente o pensador em si. Estou usando os nomes para indicar áreas amplas. Queria dizer que nossa pedra no sapato não está nas ciências naturais, mas nas ciências humanas. Quem não “frequentou” o ambiente acadêmico pode ter dificuldade para perceber isso. Darwin está tranquilo na dele, comparativamente. Pois bem, era uma percepção. Lendo Lesslie Newbigin estes dias, encontrei justamente a afirmação de que a rejeição à religião é mais forte no âmbito das ciências humanas. Isso na década de 1980. Mas eu, que conheci a universidade já nos anos 2000, penso que se sustenta aquela pesquisa. Como explicação, há a hipótese de que, sendo ciência num sentido mais difícil de definir, e tendo seus limites de diferenciação com respeito ao pensamento não-científico menos nítidos que os limites da física, por exemplo, as ciências humanas teriam criado um ethos que requer a repulsa ao religioso como marca identitária necessária. Pureza. Não sei se é exatamente por aí. Pode ser. Mas a concordância com minha impressão anterior me impressionou. A questão não é, a meu ver, de rejeitar reciprocamente Deleuze e todas as ciências humanas. Óbvio que não. No fim das contas, até nos pós-estruturalistas franceses há coisas bem interessantes e aproveitáveis, em meio aos desafios e incompatibilidades radicais. O ponto é que um diálogo é necessário. Um cuidado é imprescindível. Isso se inicia com o reconhecimento. Eu acrescento uma nota pessoal. Esse fato de haver uma repulsa à religião, uma ideia de que o ceticismo é traço identitário normal do acadêmico das ciências humanas NÃO pode ser lido como evidência de um anti-cristianismo ativista. E, aqui, deixo minha experiência registrada. Entrei para a UFMG aos 17 anos de idade. À época, era não só um cristão, mas também tinha traços bem fundamentalistas em minha formação religiosa. Transitei entre a Faculdade de Letras e a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas por 15 anos. (Não. Não fui um preguiçoso que demorou para concluir o curso, sustentado pelos pais etc. A história é outra.) Tive meus desafios? Sim. O conhecimento sempre envolve desafios. Tive meus dilemas diante de outras visões de mundo? Óbvio. Fui desrespeitado por ser cristão? Estes dias, durante uma live do Francisco Razzo com o Guilherme de Carvalho, nos comentários, alguém acabou me dizendo que era impossível ser cristão “na academia” na época de um governo de esquerda. Olha, eu entrei na época do FHC e saí na época da Dilma. Fui cristão do início ao fim. Li a Bíblia na universidade. Falei sobre minha fé. Tive amigos de diferentes crenças e descrenças. Estudei disciplinas da Letras, da História, da Filosofia e da Pedagogia. Na dedicatória ou nos agradecimentos de meus três trabalhos de conclusão (monografia, dissertação e tese), mencionei minha fé em Deus. Escutei palestras de padres na UFMG! Veja só! Um ótimo biblista jesuíta nos falou sobre as Escrituras e tradução. Um agostiniano nos falou sobre o pensamento de Agostinho. Desses eu me lembro. Também tive aula com uma teóloga luterana numa disciplina sobre crimes e pecados na literatura! Lembrei-me agora. Claro, não posso falar sobre todos os casos em todos os lugares. Mas posso dizer que eu nunca fui desrespeitado ou ridicularizado por ser cristão. Ouvi dizerem também por aí: “Ah, mas não tem financiamento de pesquisa para quem não aborda tema que agrada a esquerda...” Eu obtive bolsa de pós-doutorado do CNPq para estudar um exegeta judeu do século I d.C., sua leitura bíblica e seu combate ao hedonismo! Que que tem de esquerda nisso? Enfim... se tive sorte ou fui muito lerdo a ponto de não perceber uma perseguição contra mim, não sei. Mas sei que foi bom demais o tempo que passei ali. Agora, tenho outra tarefa na vida. E entendo ser a melhor que eu poderia ter. Mas, ali, na universidade laica, consegui me estruturar bem para o que viria depois. Devo demais àquele lugar e àquelas pessoas. Com isso – retorno – quero dizer que, quando afirmo que nosso problema está mais com Deleuze que com Darwin, não quero dizer que seja um problema necessariamente destrutivo e cheio de aflição - com um ou com o outro. Temos como seguir nessa caminhada com paz, desde que reconheçamos o senhorio daquele que nos amou e que morreu por todos, cientistas, filósofos, religiosos e céticos. “A tua paz, vivida e irmanada com a justiça Abrace o mundo inteiro Tem compaixão” Paz, graça e bem! ---------------------- A referência ao governo FHC e governo Dilma (e o do Lula implicitamente, pela cronologia) não implica em aprovação irrestrita a qualquer deles. O que aprovo no texto é a atitude da instituição que me acolheu nesses períodos. Uma história bem contada tem sabor melhor: as bodas de Caná e a água feita vinho
Cesar Motta Rios Contar história é uma tarefa nobre. Acho que sim, porque você mantém a atenção de outras pessoas, ocupa seu tempo. E isso é um ato de respeito da parte delas. Mas contar história pode ser feito de diversas maneiras. Um mesmo acontecimento pode ganhar incontáveis configurações. Pode-se variar o ponto de vista, a quantidade de informações, de detalhes, o fluxo do tempo etc. A história sagrada – que é a história do mundo – também pode ser contada com mais ou menos gosto. E essa preocupação com o jeito de contar não é coisa nova ou uma invencionice moderna de uma Igreja em confronto com um novo mundo. Os escritores bíblicos contaram com cuidado aquilo que contaram. São acusados de simplicidade, de falta de qualidade literária vez por outra. Mas, sem procurar defendê-los nessa questão, até por ser desnecessário fazer isso, acho fácil perceber que há neles um intento, um esforço por arquitetar a contação. Há uma dedicação nisso e não somente uma vontade de registrar certa quantidade de acontecimentos e ser verdadeiro no conteúdo. Nada de novo para você nisso, eu imagino. Agora, gostaria de oferecer um exemplo que tinha me passado despercebido em outras leituras. O caso é o casamento em Caná da Galileia, o famoso ocorrido em que Jesus “transforma” água em vinho. E o interessante que eu noto é que a transformação em si não é narrada, já percebeu isso? Καὶ τῇ ἡμέρᾳ τῇ τρίτῃ γάμος ἐγένετο ἐν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας, καὶ ἦν ἡ μήτηρ τοῦ Ἰησοῦ ἐκεῖ· 2 ἐκλήθη δὲ καὶ ὁ Ἰησοῦς καὶ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ εἰς τὸν γάμον. 3 καὶ ὑστερήσαντος οἴνου λέγει ἡ μήτηρ τοῦ Ἰησοῦ πρὸς αὐτόν· οἶνον οὐκ ἔχουσιν. 4 [καὶ] λέγει αὐτῇ ὁ Ἰησοῦς· τί ἐμοὶ καὶ σοί, γύναι; οὔπω ἥκει ἡ ὥρα μου. 5 λέγει ἡ μήτηρ αὐτοῦ τοῖς διακόνοις· ὅ τι ἂν λέγῃ ὑμῖν ποιήσατε. 6 ἦσαν δὲ ἐκεῖ λίθιναι ὑδρίαι ἓξ κατὰ τὸν καθαρισμὸν τῶν Ἰουδαίων κείμεναι, χωροῦσαι ἀνὰ μετρητὰς δύο ἢ τρεῖς. 7 λέγει αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς· γεμίσατε τὰς ὑδρίας ὕδατος. καὶ ἐγέμισαν αὐτὰς ἕως ἄνω. 8 καὶ λέγει αὐτοῖς· ἀντλήσατε νῦν καὶ φέρετε τῷ ἀρχιτρικλίνῳ· οἱ δὲ ἤνεγκαν. 9 ὡς δὲ ἐγεύσατο ὁ ἀρχιτρίκλινος τὸ ὕδωρ οἶνον γεγενημένον καὶ οὐκ ᾔδει πόθεν ἐστίν, οἱ δὲ διάκονοι ᾔδεισαν οἱ ἠντληκότες τὸ ὕδωρ, φωνεῖ τὸν νυμφίον ὁ ἀρχιτρίκλινος 10 καὶ λέγει αὐτῷ· πᾶς ἄνθρωπος πρῶτον τὸν καλὸν οἶνον τίθησιν καὶ ὅταν μεθυσθῶσιν τὸν ἐλάσσω· σὺ τετήρηκας τὸν καλὸν οἶνον ἕως ἄρτι. 11 Ταύτην ἐποίησεν ἀρχὴν τῶν σημείων ὁ Ἰησοῦς ἐν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας καὶ ἐφανέρωσεν τὴν δόξαν αὐτοῦ, καὶ ἐπίστευσαν εἰς αὐτὸν οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ. 21Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava ali. 2Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o casamento. 3Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: — Eles não têm mais vinho. 4Mas Jesus respondeu: — Por que a senhora está me dizendo isso? Ainda não é chegada a minha hora. 5Então ela falou aos serventes: — Façam tudo o que ele disser. 6Estavam ali seis potes de pedra, que os judeus usavam para as purificações, e em cada um cabiam cerca de cem litros. 7Jesus lhes disse: — Encham de água esses potes. E eles os encheram totalmente. 8Então lhes disse: — Agora tirem um pouco e levem ao responsável pela festa. Eles o fizeram. 9Quando o responsável pela festa provou a água transformada em vinho — ele não sabia de onde tinha vindo, por mais que os serventes que haviam tirado a água soubessem —, chamou o noivo 10e lhe disse: — Todos costumam servir primeiro o vinho bom e, quando já beberam muito, servem o vinho inferior; você, porém, guardou o melhor vinho até agora! 11Assim, em Caná da Galileia, Jesus deu início a seus sinais. Ele manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. É bem simples de se observar o que quero assinalar. Jesus manda encher os recipientes de água. Em seguida, manda tirarem e levarem ao responsável pela festa. Eles levaram. (Na tradução que citei, a NAA, acaba que essa peculiaridade desaparece, porque há um objeto para o primeiro verbo escolhido – um pouco – e o terceiro é alterado para evitar a repetição. Em vez de “levaram”, aparece “o fizeram”). Até aqui, não aparece o termo para “vinho”. Veja bem. Apareceram três verbos e nada de aparecer um objeto direto: o que é retirado dos recipientes; o que é para ser levado; o que foi levado. O leitor sabe que água foi colocada lá. Sabe que foi tirado algo (água!?) de lá. Agora, só quando o responsável pela festa prova é que sabemos do que se trata. Ele provou a água tornada em vinho. Veja só, aqui está o resultado. Não temos em nenhum momento a afirmação de que Jesus transformou isso naquilo. Somos deixados na espera para saber do resultado. Quando alguém prova, “provamos” junto. É aí que descobrimos o desfecho. Claro, isso não funciona exatamente assim, porque todo mundo que lê o texto já sabe o que vai acontecer. Só numa leitura calma isso aparece. E que gosto bom tem quando aparece! Nem precisava ter feito isso, João. Mas ficou bom, viu? Mas... E como o autor poderia ter contado a ação de Jesus? Simples! Ele usaria o verbo ποιέω / fazer, que aparece noutro trecho, quando Jesus volta a Caná e esse episódio é referido. Ἦλθεν οὖν πάλιν εἰς τὴν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας, ὅπου ἐποίησεν τὸ ὕδωρ οἶνον. Jesus foi outra vez a Caná da Galileia, onde tinha transformado água em vinho. Literalmente, ele fez a água ser vinho. Encerro essa nota, na qual só queria mencionar esse mini-suspense na cena (não da transformação, pois essa é velada pelo silêncio, mas) da água transformada em vinho, remetendo a outro dado dessa construção consciente do Quarto Evangelho. Jesus faz. É muito interessante como o verbo ποιέω / fazer é recorrente e associado fortemente a Jesus, desde o prólogo, que diz que tudo foi feito por meio dele, passando por cenas como essa dá água feita vinho ou do coxo do tanque de Betesda que é feito são (lá está o verbo da boca do curado), e chegando ao fato de que o que Jesus faz é aquilo que o Pai faz (João 5.19). Essa capacidade de fazer, esse poder criativo de Jesus fazia muita diferença. E ainda faz. Deus é Deus. Ele pode fazer o que para qualquer humano é impensável. E essa é uma linha interessante a ser seguida nessa tessitura joanina (e percebida no tecido da vida). O tapete vai ficando a cada leitura mais impressionante. Façamos nossa humilde parte. Leiamos hoje isso que é para sempre. Nossa esperança não está no fim do túnel – Um passeio a propósito de João 12.32-36
Cesar Motta Rios Isto aqui não é uma reflexão profunda, nem um texto exegético complexo. São anotações de um leitor que ainda se impressiona com um texto tantas vezes revisitado. É o registro de um instante boca-aberta-olhos-perdidos. O caso de hoje é João 12.27-36, e, mais especificamente, 12.32-36, que eu cito: 32 κἀγὼ ἐὰν ὑψωθῶ ἐκ τῆς γῆς, πάντας ἑλκύσω πρὸς ἐμαυτόν. 33 τοῦτο δὲ ἔλεγεν σημαίνων ποίῳ θανάτῳ ἤμελλεν ἀποθνῄσκειν. 34 Ἀπεκρίθη οὖν αὐτῷ ὁ ὄχλος· ἡμεῖς ἠκούσαμεν ἐκ τοῦ νόμου ὅτι ὁ χριστὸς μένει εἰς τὸν αἰῶνα, καὶ πῶς λέγεις σὺ ὅτι δεῖ ὑψωθῆναι τὸν υἱὸν τοῦ ἀνθρώπου; τίς ἐστιν οὗτος ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου; 35 εἶπεν οὖν αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς· ἔτι μικρὸν χρόνον τὸ φῶς ἐν ὑμῖν ἐστιν. περιπατεῖτε ὡς τὸ φῶς ἔχετε, ἵνα μὴ σκοτία ὑμᾶς καταλάβῃ· καὶ ὁ περιπατῶν ἐν τῇ σκοτίᾳ οὐκ οἶδεν ποῦ ὑπάγει. 36 ὡς τὸ φῶς ἔχετε, πιστεύετε εἰς τὸ φῶς, ἵνα υἱοὶ φωτὸς γένησθε. 32 E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. 33 Ele dizia isto, significando com que tipo de morte estava para morrer. 34 A multidão disse: — Nós ouvimos da Lei que o Cristo permanece para sempre. Como, então, você diz que é necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem? 35 Jesus respondeu: — Ainda por um pouco a luz está com vocês. Andem enquanto vocês têm a luz, para que não sejam surpreendidos pelas trevas. E quem anda nas trevas não sabe para onde vai.36 Enquanto vocês têm a luz, creiam na luz, para que se tornem filhos da luz. O texto já é denso por si mesmo. Mas fica ainda mais interessante por nos remeter a trechos anteriores do Evangelho. Salta aos olhos, primeiro, a recorrência do verbo καταλαμβάνω/derrotar [a tradução da NAA por “surpreender”, possível aqui, dificulta a visualização da relação que farei.] tendo como sujeito σκοτία/escuridão, a mesmíssima configuração lá do prólogo (João 1.5): καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Lá, temos um fato (veja o verbo no aoristo indicativo) sobre a luz em si. Aqui (já repare que o verbo está no aoristo subjuntivo, numa oração final), trata-se de algo a se realizar (ou melhor, a não se realizar, a se interditar) por um meio que é expresso no próprio discurso: A luz não é derrotada pela escuridão e, para que o mesmo não aconteça com os seguidores, é necessário que estejam unidos a essa luz, pelo crer, sendo possível chamá-los de filhos da luz. Não há outra opção que os livre de serem engolidos pelas trevas. Eu estaria satisfeito com o nosso querido João por esse registro. Gratidão! Mas salta aos olhos que essa fala de Jesus sobre a luz e a comunhão necessária com ela aparece como resposta a uma questão complicada. Ele dissera que ele mesmo haveria de ser erguido, numa referência à crucificação. A multidão tem uma dúvida. Eles entendem pelas Escrituras que o Cristo permanece para sempre. Então, por que esse mestre dizia que o filho do homem tinha que ser erguido (e morrer assim)? Repare, querida leitora e querido leitor, que Jesus não tinha dito que "o filho do homem" seria erguido. Ele diz "eu". Certo é que, num momento anterior, ele tinha dito que "o filho do homem" seria glorificado. Eles que ouviram e fizeram a conexão, consideraram a identidade. Agora, lembre-se comigo de outra conversa, anterior, na qual aparece isso de “ser elevado”, tendo Jesus usado a expressão “filho do homem”. Ele mesmo formula a frase como a formularia depois a multidão. E, se queremos mais, encontraremos também ali o tema da luz. Isso mesmo! Vamos espreitar aquela conversa noturna entre Nicodemos e o Senhor. Mais para o final, este último responde (João 3.12-21): 12 εἰ τὰ ἐπίγεια εἶπον ὑμῖν καὶ οὐ πιστεύετε, πῶς ἐὰν εἴπω ὑμῖν τὰ ἐπουράνια πιστεύσετε; 13 καὶ οὐδεὶς ἀναβέβηκεν εἰς τὸν οὐρανὸν εἰ μὴ ὁ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καταβάς, ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου. 14 Καὶ καθὼς Μωϋσῆς ὕψωσεν τὸν ὄφιν ἐν τῇ ἐρήμῳ, οὕτως ὑψωθῆναι δεῖ τὸν υἱὸν τοῦ ἀνθρώπου, 15 ἵνα πᾶς ὁ πιστεύων ἐν αὐτῷ ἔχῃ ζωὴν αἰώνιον. 16 οὕτως γὰρ ἠγάπησεν ὁ θεὸς τὸν κόσμον, ὥστε τὸν υἱὸν τὸν μονογενῆ ἔδωκεν, ἵνα πᾶς ὁ πιστεύων εἰς αὐτὸν μὴ ἀπόληται ἀλλ᾽ ἔχῃ ζωὴν αἰώνιον. 17 οὐ γὰρ ἀπέστειλεν ὁ θεὸς τὸν υἱὸν εἰς τὸν κόσμον ἵνα κρίνῃ τὸν κόσμον, ἀλλ᾽ ἵνα σωθῇ ὁ κόσμος δι᾽ αὐτοῦ. 18 ὁ πιστεύων εἰς αὐτὸν οὐ κρίνεται· ὁ δὲ μὴ πιστεύων ἤδη κέκριται, ὅτι μὴ πεπίστευκεν εἰς τὸ ὄνομα τοῦ μονογενοῦς υἱοῦ τοῦ θεοῦ. 19 αὕτη δέ ἐστιν ἡ κρίσις ὅτι τὸ φῶς ἐλήλυθεν εἰς τὸν κόσμον καὶ ἠγάπησαν οἱ ἄνθρωποι μᾶλλον τὸ σκότος ἢ τὸ φῶς· ἦν γὰρ αὐτῶν πονηρὰ τὰ ἔργα. 20 πᾶς γὰρ ὁ φαῦλα πράσσων μισεῖ τὸ φῶς καὶ οὐκ ἔρχεται πρὸς τὸ φῶς, ἵνα μὴ ἐλεγχθῇ τὰ ἔργα αὐτοῦ· 21 ὁ δὲ ποιῶν τὴν ἀλήθειαν ἔρχεται πρὸς τὸ φῶς, ἵνα φανερωθῇ αὐτοῦ τὰ ἔργα ὅτι ἐν θεῷ ἐστιν εἰργασμένα. 12 Se vocês não creem quando falo sobre coisas terrenas, como crerão se eu lhes falar sobre as celestiais? 13 Ora, ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que de lá desceu, o Filho do Homem. 14 — E assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja levantado, 15 para que todo o que nele crê tenha a vida eterna. 16 Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. 17 Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. 18 Quem nele crê não é condenado; mas o que não crê já está condenado, porque não crê no nome do unigênito Filho de Deus. 19 A condenação é esta: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. 20 Pois todo aquele que pratica o mal detesta a luz e não se aproxima da luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. 21 Quem pratica a verdade se aproxima da luz, para que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus. Vejam só! Aqui temos tudo reunido: a vinda da luz, a ameaça da escuridão, a necessidade do crer – e o crer na luz de João 12.36 é, aqui, o crer no filho do homem, que é “erguido”. Encaramos a escandalosa convocação para que se encontre a luz na ideia sombria de um crucificado. (Ideia que não é só ideia, mas acontecimento! O acontecimento!) Aí está o ponto focal. Nossa vida e nosso viver. É para aí que se olha quando se quer realmente ver. Se nos perturbamos com o convite e viramos o rosto, noutras direções, encontramos somente densas trevas e víboras com seu veneno de morte. João, João... Nunca raso no recado. E, hoje, ele me ajuda a lembrar que, se a Igreja quer ter esperança, sabe que não a encontrará em projetos complexos, em delírios de poder, em influência sobre a cultura, em marca conhecida ou em números promissores. Isso é tatear na escuridão, tentando encontrar uma moeda desejada, mas falsa, que tem nome de esperança, mas valor de desilusão. A Igreja não está no desalento, carente de se fazer relevante, numa obra incansável e precária para dar um jeito de não desesperançar. Não. Há uma luz que não pode ser derrotada e com a qual nos unimos por graça e em verdade. O pardal encontrou casa; a andorinha fez ninho para si. Nossa esperança, onde se encontra? Nossa esperança se aninha na cruz. Por isso vivemos e podemos caminhar na verdadeira Luz. Paz, graça e bem! --------------------------------- P.S. Isto aqui é uma anotação de leitura. Não é um estudo. Não consultei comentário algum. Sei que isso deveria me prover mais uma vasta série de paralelos. Mas há um gosto especial de estar a sós com o texto. P.S.' As traduções bíblicas são da NAA. Estão aí para facilitar acesso ao leitor. Mas a reflexão faz mais sentido, como se viu, a partir do texto que a ensejou, que é o texto grego. P.S.'' Desconsiderei a questão sobre quem é o enunciador de João 3.16-21 (O narrador ou Jesus?). Acho uma questão muito interessante, importante, mas também desconcertante e dificilmente resolvível. Socorro! Acho que meu pastor é de esquerda! / Socorro! Acho que meu pastor é de direita!
Cesar Motta Rios Pr. Romusvaldo chegou à Comunidade esperançoso. Dedicou-se bastante para a preparação do primeiro sermão. Pregou como de costume, apesar de um nervosismo a mais diante do público desconhecido. Ana saiu revoltada. Em casa e reclamou com a família toda, que se reunia para um belo frango assado com laranja, que, aliás, estava bem gostoso. “Esse pastor novo é um direitista! Reacionário! Já vi tudo.” Ana não voltou na semana seguinte. Disse que ia dar um tempo. Seu tio Betão, que fazia tempo que não ia, foi. Queria ver o pastor acabar com os esquerdistas da congregação. Voltou mais revoltado que a Ana. Passando perto da casa dos parentes, ainda aturdido e cheio de revolta, resmungou: “A menina inventou aquilo de o cara ser de direita só para me enganar. É um esquerdopata! Vocês precisam ver a palhaçada que ele defendeu do púlpito.” Pobre Romusvaldo! Ele demorou para saber do caso. Quando soube, não entendeu logo. Não tinha falado de político algum nas últimas semanas. Tinha, como de costume, proclamado a Palavra. Antes que o problema se agravasse, aproveitou a reunião seguinte do povo e tentou explicar de forma muito clara: “Gente, vamos tentar entender uma coisa. Todos os projetos políticos, todas as linhas ideológicas e as que tentam negar que sejam ideológicas, são construções humanas. Todas as construções humanas são marcadas pelo pecado. Todas têm um negócio que eu chamo de “estragado inevitável”, um “podre impossível de tirar”. Então, quando a Palavra chega, ela vai confrontar algumas dessas partes podres dos diversos projetos humanos. Às vezes, vai estar contra aspecto mais de uma linha. Às vezes, vai estar contra aspecto mais de outra. Mas vai ficar contra todas mais cedo ou mais tarde. E isso acontece comigo. Minhas convicções também são confrontadas. Se vocês me perguntam assim: Pr. Romusvaldo, mas tem como ser de esquerda e ser da Igreja? Eu vou responder: Sim. Mas deixe a Palavra confrontar sua ideologia, te incomodar e ser a última palavra na sua vida. Outros vão perguntar: Pr. Romusvaldo, mas tem como ser direitista e ser da Igreja? Eu vou responder: Sim. Mas deixe a Palavra confrontar sua ideologia, te incomodar e ser a última palavra na sua vida. Eu não vou domesticar a Palavra. Não vou fingir que ela não diz o que diz só para não parecer esquerdista num domingo e direitista no outro. Falei da dignidade humana, mesmo dos seres humanos sem voz por não terem nascido ainda? Falei. Falei da dignidade humana, do cuidado de Deus para com os que são injustiçados por leis ultrajantes e de sua vontade de que os pobres tenham amparo? Falei. Vou falar sobre avareza? Vou. Vou falar sobre ganância disfarçada de cuidado com a própria família? Vou. Ah, sim, e o racista tem que ter a oportunidade de saber que seu comportamento é pecaminoso, assim como o que sofre preconceito tem que ser protegido dessa injustiça. Se a Palavra vai ter vez, o amor ao próximo vai ser importante em minhas mensagens e vai confrontar qualquer atividade humana. E, se alguém disser que colocar o amor como tão importante é coisa de cristão progressista, eu vou ter que perguntar se Paulo ou mesmo Jesus seriam cristãos progressistas. Se alguém disser que cristianismo é só sobre absolvição de pecados e que não tem nada a ver com os relacionamentos entre nós, eu vou mostrar que isso é uma ruptura com tudo que se entendeu por cristianismo ao longo dos séculos. Uma fé meramente interiorizada, e que não toca o chão de segunda a segunda eu não conheço. Mostrarei que é diferente. E terei prazer em fazer isso demoradamente para quem tiver interesse no assunto. Chá e café não vão faltar para longas conversas. Agora, se quem é muito de esquerda não quer nunca ser incomodado, façamos o seguinte: Não chamem um pastor. Chamem um político de um partido admirado. Deem uma estola para ele e digam o que pode pregar. Se quem é muito de direita não quer nunca ser incomodado, façamos o mesmo: Não chamem um pastor. Chamem um político de um partido admirado. Deem uma estola para ele e digam o que pode pregar. Se querem chamar pastor, saibam que haverá momentos em que todos nós seremos questionados, confrontados, provocados pela Palavra. Não tem jeito de ser diferente. Posso não mencionar políticos e partidos, mas não dá para parecer isento em tudo que é relação entre seres humanos.” Queria terminar a história dizendo que, com tudo bem esclarecido, todos se deram as mãos e cantaram Kumbaya. Mas não foi bem assim. (De fato, mesmo uma história inventada precisa ter um pouco de conexão com o que vivemos.) Houve quem saiu chateado já pensando em esperar outro pastor. O bom é que Ana e seu tio até que entenderam. Dia desses, num churrasco da família, os ânimos começaram a se exaltar entre os dois. Uma criança passou cantando “leia a Bíblia e faça oração”. Um olhou para o outro e, mesmo que cada um ainda achasse sua posição a melhor, ambos se lembraram que não havia perfeição ali na mesa. Havia uma Mensagem que lembrava que suas convicções não eram sempre perfeitas. Fim? --------------------- Minha posição sobre isso foi "confessada" num sermão que preguei em meio aos estragos dos atritos da eleição de 2018: https://cristianismoeantiguidade.weebly.com/principal/sobre-pedras-e-o-fim-das-coisas-como-as-conhecemos-sermao Lutero e Economia: Ganância é idolatria!
(Anotação de leitura) Qualquer um que leu o Catecismo Maior de Lutero sabe bem da marcante explicação dele para o primeiro mandamento. Como ele entende que nós criamos falsos deuses para nós mesmos quando depositamos nossa confiança em algo além de Deus, é bem fácil prever que ele colocaria o dinheiro e as posses como candidatos fortes a serem nossos ídolos favoritos. Lá está o argumento. Mas é interessante como uma pesquisa mais ampla nos escritos do reformador pode mostrar como essa associação entre ganância e idolatria é consistente e importante em seu pensamento. Quem desenvolveu um estudo sobre o tema foi Ricardo W. Rieth. Dois artigos publicados por ele na primeira metade da década de 1990 dão um excelente direcionamento para caminharmos por esse bosque escorregadio. (Isso não é surpresa, já que, mesmo em âmbito internacional, Rieth é uma das pessoas que mais entende de Lutero e Economia.) Apesar de limitado em seu contexto, Lutero conseguia perceber, pela forma como a ganância está arraigada no ser humano, a possibilidade de variados recursos e variadas formas de sua operação: "Para Lutero, a “ganância” era uma forma de pecado, que oculta a injustiça e a exploração do homem pelo homem sob uma fachada de boas obras e aparentes boas intenções. Ela se expande ininterruptamente. Desenvolve-se a partir da natureza egoísta das pessoas e assume dentro do contexto econômico sempre novas formas e estruturas." (RIETH, 1993, p. 160). Além disso, apesar da falta naquele tempo de uma ciência econômica e social bem desenvolvida, a partir das Escrituras, Lutero conseguia perceber que as consequências da ganância não eram as mesmas para todos: “Quem mais sofre as conseqüências da “ganância” são, segundo Lutero, os pobres. Ela faria com que os representantes do poder público se esforçassem pelos interesses dos poderosos e opressores. Ao final, ninguém estaria preocupado em combater a injustiça contra os pobres, a não ser Cristo e aqueles que verdadeiramente o seguem, ou seja, aqueles que acolhem a Lázaro em sua miséria.” (RIETH, 1993, p. 160). É claro que essa opinião de Lutero perturbada alguns e pode ser vista como um atraso para o desenvolvimento econômico e das potencialidades do ser humano. Isso não o demovia de seu propósito: “Lutero, como intérprete da Escritura, confrontou-se com os problemas de sua época, a fim de denunciar e combater a injustiça. Deste modo, queria uma melhora das condições de vida e não estava preocupado com o fato de estar, através de sua prática, barrando ou não um desenvolvimento econômico pré-capitalista.” (RIETH, 1993, p. 164). No artigo em que trata especificamente da idolatria “econômica”, Rieth desvela um Lutero não muito conhecido, ávido por ver as pessoas não só ouvindo a Palavra, mas a praticando, com ações efetivas. “Por outro lado, Lutero também identificou a ganância com a idolatria ou culto às riquezas, em oposição à verdadeira adoração, ao verdadeiro culto a Deus. A ganância arruína os frutos da fé. Ela destrói as boas obras que brotam da fé e não podem ser separadas dela.” (RIETH, 1994, p. 73). Novas atitudes eram imprescindíveis: “A ganância causa a ira de Deus, citada no mesmo versículo, da mesma forma como junto com a licenciosidade causou o dilúvio. Também outros textos bíblicos — p. ex., Nm 25.18; 1. Co 10.8 — comprovam a dura ação divina nesse caso. Quem não confirma sua fé com a ação vale diante de Deus tanto quanto um gentio, é um desertor de Cristo e da fé. Por causa da ganância já estaria se manifestando em sua época, segundo Lutero, a ira de Deus, na forma de carestia, peste, guerra e derramamento de sangue.” (RIETH, 1994, p. 75). Para quem gosta de enfatizar que, em algum sentido, há diferença entre pecado e pecado, pensar com Lutero pode levar a uma conclusão pouco divulgada: “Os evangelhos e Paulo ligam a maioria das vezes a ganância — e não os outros pecados, como luxúria e ira, que também são contra Deus — com a idolatria.” (RIETH, 1994, p. 76). Talvez evitemos essas conclusões por estarmos sendo guiados pelo modo de ver do presente século, o que se percebe claramente em cultos, palestras e cursos que se propõem a enriquecer cristãos: “A respeito desta [da ganância], que por sua vez é um ídolo contra a fé, Deus e o mundo fazem juízos absolutamente distintos. O mundo não a castiga, considerando-a uma virtude.” (RIETH, 1994, p. 76). Esse reconhecimento, diferente do que se possa pensar, não nos leva somente ao pedido de perdão, sem mudança de prática. “A fé não deveria se restringir apenas ao que os cristãos dizem e ouvem, mas converter-se em boas obras e aperfeiçoar-se.” (RIETH, 1994, p. 76-77). Concluo esse passeio pelos textos do Ricardo W. Rieth com uma última citação, que desmorona nossa tentativa de evasão, de fuga da responsabilidade: “Para Lutero também jamais seria suficientemente descrito quão bem a ganância consegue vender-se como algo belo, virtuoso, correto e honrado. Na idolatria de Mâmon estar-se-ia usando a desculpa da busca — necessária e ordenada por Deus — da subsistência pessoal e familiar a fim de encobrir a ganância ou a ânsia pela riqueza iníqua. Isso estaria tão propagado e inserido na coletividade que nem os pregadores nem as autoridades podiam combatê-lo com eficiência.” (RIETH, 1994, p. 77). P.S. Acho que vou postar o link disso daqui em cada propagando de "cristão rico" e "vida próspera" por aí. É chique por aí ter ambição. Para Lutero, o nome é idolatria. -------------------- Link para os artigos: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/938 http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/877 NOTA (PARA LUTERANOS) SOBRE CRÍTICAS LUTERANAS À VARIAÇÃO DE PRÁTICAS NO CONTEXTO LUTERANO5/21/2020 NOTA (PARA LUTERANOS) SOBRE CRÍTICAS LUTERANAS À VARIAÇÃO DE PRÁTICAS NO CONTEXTO LUTERANO
Por mais bem intencionado que possa ser, o intento individual – ou de grupos de afinidade - no sentido padronizar aspectos externos do luteranismo não é condizente com a confessionalidade luterana. Além de não ecoar a disposição dos confessores do século XVI, mesmo que possa repercutir a opção de alguns ou vários deles, qualquer iniciativa que tente normatizar como completamente necessário o que não é estabelecido pelas Confissões pode trazer mais confusão que edificação. No fim das contas, a avidez por defender a identidade confessional luterana por meio da uniformização de uma ou outra prática externa corre o risco de ir contra a própria identidade confessional luterana. Além disso, em redes sociais, podemos colocar em dúvida, entre membros, o trabalho de um pastor que está no campo, fazendo um trabalho esforçado em um contexto que sequer imaginamos existir. Podemos causar escândalo e rusgas a partir de nossa poltrona na relação entre membros e pastores sem sequer tomarmos consciência disso. Mas não somos nós que vamos chorar com essas pessoas quando for necessário. Não somos nós que vamos acompanhá-las na caminhada cristã. Continuaremos somente podendo oferecer sugestões sobre a forma “mais correta” de vida litúrgica e identidade confessional. Algumas discussões não são apropriadas para um âmbito completamente aberto. Se quero dizer que é errado (vem um exemplo bem sem sentido para evitar começar uma discussão) subir ao púlpito com o pé esquerdo, já que isso é uma afronta contra a identidade luterana, eu deveria encontrar um espaço para discutir isso sem que a conversa chegue, antes de bem resolvida, aos ouvidos de todos, inclusive do Astrogildo, cujo pastor sempre sobe assim. Se quero mesmo discutir o assunto, eu poderia, de preferência, encontrar um âmbito em que isso fosse discutido por pessoas que entendem de liturgia (leigos inclusive) e líderes da igreja em geral. Para ficar claro, na IELB, seria de se discutir isso na Revista Igreja Luterana, mas NÃO na Mensageiro Luterano! Você, pessoa que participa em uma comunidade luterana, tem todo o direito de exigir que seu pastor seja fiel às Escrituras e às Confissões Luteranas reunidas no Livro de Concórdia. Quanto a outras questões, eventualmente, saiba das opiniões e razões dele, que podem diferir muito de opiniões que circulam nas redes sociais. Respeite isso. Ele tem sobre si a responsabilidade seríssima de conhecer o contexto em que está e nele trabalhar da melhor forma possível. Se ele não está nas redes sociais debatendo e colocando seu contraponto frente aos que afirmam algo diferente do que faz, talvez haja também motivo para isso. Não é necessariamente o caso de que ele esteja ignorando o assunto. Pode ser que tenha urgências da própria vida da comunidade que o impeçam de se dedicar a essa discussão nesse âmbito aberto. Por fim, um pedido bem pessoal: Se qualquer coisa que eu digo ou escrevo (neste texto inclusive) parece colocar em dúvida o trabalho do seu pastor, coloque em dúvida, antes, o meu discurso, que não pode estar ciente de todos os variados casos e contextos. Não é meu propósito controlar nada nem ninguém. P.S. Não estou afirmando que tudo é válido. “Faça cada um como quiser!” Não é isso. Façamos com ordem, respeitando nossas Confissões, o critério da comunicação do Evangelho e sem causar escândalos. P.S.’’ Não estou dizendo que não se possa mostrar a existência de tradições bonitas, significativas e edificantes. Só estou dizendo que não se deve impor como norma necessária tudo o que é bonito, significativo e edificante. P.S.’’’ Nos contextos em que convivi, sempre tive como muito proveitosos muitos dos elementos que são tidos como tradicionais, bonitos e significativos, mas tenho para mim que posso encontrar contextos em que outros elementos é que serão bonitos e significativos, alguns dos quais poderão, eventualmente, ser diferentes do que se entende como tradicional. Falo de possibilidade. P.S. (o último) Não estou afirmando que a forma não tem nada a ver com o conteúdo, que o conteúdo não sofre influência da forma. MAS entendo que NÃO posso usar o fato de que forma e conteúdo se inter-relacionam como meio de impor uma só forma, como se um conteúdo não pudesse ser bem comunicado por mais de um meio. P.S. (Ah... só mais um, por favor!) Ninguém se sinta desestimulado a trabalhar em prol do que acredita. Só convido a uma reconsideração de forma de atuação ou de tom. E o convite vale para mim também, claro. Eu, porém, vos digo: comunhão!
Cesar Motta Rios A série de afirmações contrastantes de Jesus em Mateus 5.21-48 pode ser lida a partir de diversas perspectivas e suscitar também variadas interpretações. Um caminho possível é olhar para o texto a partir de uma noção individualista e, consequentemente, encontrar nele somente uma afirmação sobre cada pessoa diante de Deus. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma leitura espiritualizada. Jesus estaria simplesmente demonstrando que o ser humano é incapaz de responder devida e profundamente à Lei em seu sentido último. A pessoa, no confronto com esse discurso, vê a si mesma isoladamente. É possível, também, encontrar leituras mais sociais, que encontram uma aula de ética fundamentada em normas estritas, sem atenção para um aspecto espiritual/teológico. Uma terceira via poderia reconhecer algo como uma dimensão ética e, ao mesmo tempo, considerar como ela se relaciona com um aspecto teológico. O assunto seria simultaneamente o relacionamento entre pessoas e a questão da justiça e do pecado. Nossa falta de justiça e nosso pecado sempre presente nos impedem de viver em comunhão verdadeira e satisfatória. Não podemos negar que todas as leis evocadas e comentadas por Jesus dizem respeito ao ser humano em sua dimensão social. O aprofundamento de sentido operado por Jesus não só revela nossa incapacidade de agir corretamente o tempo todo, mas também o fato de que o dano do pecado, enquanto descumprimento da lei em seu sentido mais superficial e imediatamente percebido, também acontece em ações mais sutis. Assassinar outra pessoa é a forma extrema de aniquilar a possibilidade de comunhão. Nega-se ao outro o direito de existir. Você simplesmente elimina alguém com quem deveria conviver, colocando um ponto final em qualquer intento de convivência. Odiar outra pessoa também faz você estar sob esse juízo. Afinal, essa disposição interior com relação ao outro, ainda que não manifestada em aniquilação física, estabelece uma ruptura, de modo que, para aquele que odeia, a pessoa odiada deixa de ser pessoa com quem se possa conviver. Certo é que o pecado nos faz querer rupturas. O adultério certamente desestabiliza a convivência. Jesus coloca sob essa categoria o simples olhar lascivo. É curioso que o adultério parece prejudicar a vida social por fazer ruir a família. Mas a colocação de Jesus acaba enfrentando um problema mais fundamental: a objetificação do outro. O olhar lascivo acusado nas palavras do Cristo faz com que uma mulher não seja respeitada como pessoa, como profissional, como cidadã, mas desejada como objeto a ser possuído. Rompe-se a convivência entre pessoas com igual dignidade. Estabelece-se uma relação de consumo e posse. É nesse mesmo sentido que se pode compreender também o dano do divórcio banalizado. Certo é que o pecado faz com que não vejamos as outras pessoas sempre como pessoas. Em vez de comunhão, temos uma relação utilitária com elas. A restrição ao juramento, por sua vez, vem com a afirmação radical da necessidade da verdade e da confiança nas interações. Certo é que o pecado perturba esse caminho necessário. Vivemos sob o signo da desconfiança, da mentira astuta, do convencimento desleal. O regramento para se revidar proporcionalmente – olho por olho - é sombreado pelo apelo ao não revidar. Em vez de fazer ecoar a perturbação da convivência, que, contra o pretendido estabelecimento de um limite para a retratação, pode acabar perpetuando a ruptura, Jesus propõe uma atitude radical, que suporta a injustiça pacificamente, com vistas à supressão do processo de oposição. Certo é que o pecado não nos conduz à pacificação das relações, mas à exigência de reparação. Por fim, Jesus alcança o ápice com o “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”. Parece um extremo oposto do início dessa parte da exposição. Começamos com o extremo da ruptura – o homicídio – e terminamos com o extremo da comunhão – o amor. O amor, de fato, aparece não somente como meio de manter convivência que está em andamento, mas de subverter completamente a lógica pecaminosa da ruptura. É certo que o pecado torna essa reviravolta completamente incompreensível e, até mesmo, odiosa. Correndo os olhos pelo discurso de Jesus com esse duplo aspecto em mente – o fato teológico/antropológico do pecado e a valorização da manutenção da convivência, talvez sejamos convidados a vislumbrar que a questão teológica está intimamente relacionada com a vivência em comunidade. Não há dicotomia entre espiritual e social que se sustente. Não há dicotomia entre vida moral e espiritual. A vontade de Deus é que o pecado não perturbe a comunhão entre Ele e a humanidade ou entre nós humanos. Realmente, a supressão absoluta da ruptura causada pelo pecado não é conseguida pela observação de regras elevadas por parte de seres imperfeitos. Essas palavras de Jesus continuam deixando evidente a necessidade de uma intervenção divina nesse sentido. E a intervenção veio pela cruz, sendo chamada de reconciliação. Mas essas mesmas palavras do Mestre não deixam, contudo, de expressar o anseio de Deus para nossa vida, e de nos mobilizar a, unidos a Cristo, sem o qual nada podemos fazer, cultivar uma vida que preze pelo que Deus quer para nós e considere atentamente a verdadeira perversidade do que Deus não quer. Com nossas atitudes e palavras, frequentemente dizemos: “Egoísmo! Ruptura!”. Cristo, porém, nos diz com palavras, com sua vida e até mesmo em nossas vidas: “Comunhão!”. A casa da teologia ainda requer mão de obra (não só de repetidores)
Cesar Motta Rios É preciso pensar teologia? Ou é só questão de memorizar o já teologado por outros ao longo dos séculos? No caso de teólogos confessionais, basta-nos reafirmar a cada dia o que foi bem acabado séculos atrás? Afinal de contas, qual é a tarefa que nosso tempo e cada novo tempo cobra de nós? É pergunta demais para os minutos que tenho para rascunhar este texto. Não pretendo respondê-las realmente. O que quero hoje é simplesmente demonstrar a necessidade desse questionamento e ensaiar um direcionamento pessoal. Ulrich von Balthasar é instigante quando o assunto é esse. Por isso, convido você a lê-lo um pouco comigo: “A uns teólogos parece que a teologia (isto é a explicação da Revelação em conceitos humanos) progrediu tanto a ponto de estar próxima à conclusão. A casa parece já construída, os quartos já atapetados, de forma que para as gerações futuras não resta senão um trabalho mais modesto de acabamento: fazer a decoração nos vãos já terminados, nos espaços internos que se tornam sempre menores, por em ordem em cima das cômodas. Ao final só há o trabalho de tirar o pó.” Aqui, tem um ponto que me parece importante demais: teologia é entendida como explicação da Revelação. E, se entendo que a Revelação está nas Escrituras, como de fato entendo, chegarei à conclusão de que, para mim, toda teologia tem que ser, no fim das contas, teologia bíblica. Teologia sistemática, por exemplo, só será teologia se tiver a capacidade de se submeter à teologia bíblica. Ressalto: Podemos ter formulações belíssimas, cheias de tradição e vigor atual, mas, se não forem fundamentadas nas Escrituras, se não receberem dela a sua seiva, se forem dependentes de fábulas ou invencionices (mesmo que de longa data e muito amadas por nomes da Igreja), ou se forem mero resultado dessa maravilha chamada razão, não será verdadeira teologia; será somente um produto humano, pronto para gerar discussão desnecessária, confusão e, esperamos, algum desprezo futuro. Vamos ler mais um pouco do nosso novo amigo: “Tem-se a impressão deste estilo quando se olha somente para a tradição. Mas se o santo (ou propriamente o crente que vive da fé e em graça) confronta a tradição com as enormes exigências da Revelação, então tudo o que se conseguiu não se reduzirá talvez a um mísero punhado de pensamentos e conceitos, fraca noção de uma verdadeira explicação?” Eu acho essa percepção genial. E volto a dizer: teologia que é teologia é teologia bíblica, impregnada das Escrituras e, sempre de novo, inquietada por elas. Podemos passar ao último trecho que pretendo compartilhar: “E não se trata de demolir, destruir, desprezar quanto é fruto de trabalho de séculos. Tudo o que é genuinamente verdadeiro permanece. Mas os contornos não constituem ainda um desenho terminado. E muitas das linhas traçadas nos séculos III e IV perduraram até aos nossos dias quase imutáveis como se constituíssem já o desenho em si.” Esse trecho era importante para não fazer pensar que o convite para se voltar os olhos para as Escrituras implica em ignorar completamente tudo mais. Dito isso, volto: Cabe a nós cuidar do pó que se assenta ou do pequeno vidro que um desavisado quebra de quando em vez na nossa casa da teologia? Isso é válido e necessário, certamente. Mas concordo com von Balthasar: há muito mais a fazer. Fazer teologia tendo o objetivo de refletir algo novo não é ato de rebeldia. Pelo contrário, é inserir-se na tradição como algo que vive. Não se trata de lançar fora doutrinas bem estabelecidas, mas de explorar riquezas das Escrituras que podem resultar em elaboração de noções ainda não muito consideradas, mas relevantes para nosso tempo. Além disso, trata-se de voltar às Escrituras com as doutrinas em mãos (especialmente, quando essas doutrinas são desafiadas por um contexto estranho ao contexto em que foram formuladas). De novo, não se trata de desprezar doutrinas ou mesmo de questionar sua correção. Trata-se de reconhecer que, para situações diferentes, novos elementos bíblicos precisam ser trazidos para aquela velha conversa em andamento. Ou fazemos essa incursão, ou teremos simplesmente que nos apoiar em nomes admirados e na repetição de bordões. Mas isso não é um recurso muito pertinente. É como construir uma casinha em estilo enxaimel com belas madeiras repletas de cupim por dentro. A aparência pode ser aceitável. Mas aparência não sustenta. E se realmente vamos pelo árduo caminho do retorno às Escrituras com disposição para a reflexão, certamente, encontraremos, além de dificuldades, certos riscos. Riscos - bem sabem os adultos - fazem parte da vida responsável. ------------ O livro citado de von Balthasar é Derrubar as muralhas. Clemente e o cristianismo em Alexandria Cesar Motta Rios Embora seja conhecido como “de Alexandria”, Clemente não nasceu ali, mas, possivelmente, em Atenas (KRAFT, 1964, p. 32; RODRÍGUEZ, 2011, p. 54). Contudo, foi na cidade junto ao Delta do Nilo, depois de ter aprendido a partir de mestres louváveis de diversas regiões (Grécia, Síria, Assíria e, inclusive, um hebreu da Palestina), que Clemente encontrou, por último (ὑστάτῳ), aquele era o primeiro em capacidade (δυνάμει δὲ οὕτος πρῶτος ἤν), e, por isso, permaneceu com ele no Egito (Str. I, 1.38).[1] As palavras que o teólogo usa para descrever o ensino de seu mestre em Alexandria são marcadamente elogiosas: “Realmente era a abelha siciliana: coletando das flores da campina tanto profética quanto apostólica, produziu nas almas dos ouvintes um conhecimento realmente puro (ἀκήρατόν τι γνώσεως χρῆμα)”[2] (Str. I, 1.38). Também em Alexandria, mais tarde, Clemente desenvolverá seu ensino e a escrita de sua obra notável. É razoável, portanto, que o nome da cidade esteja tão atrelado ao do teólogo. De certa forma, o inverso também é verdadeiro. Seria, no mínimo, inusitado falar sobre o cristianismo na cidade de Alexandria sem mencionar Clemente. Ele é o primeiro pensador cristão baseado na cidade a nos legar uma obra, e o primeiro do qual sabemos consideravelmente mais que o nome. De fato, as origens do cristianismo em Alexandria não estão claras. Há hipóteses modernas, como a que atribui a chegada da mensagem cristã à cidade a certo Apolo mencionado em Atos, bem como relatos antigos que relacionam a emergência de uma comunidade cristã ali com trabalhos missionários de Barnabé, uma vez companheiro de Paulo, ou do evangelista Marcos. Não há, contudo, comprovação de qualquer das versões. Ainda assim, parece razoável entender que o cristianismo se desenvolveu na cidade muito antes da chegada de Clemente, possivelmente nos inícios do século II d.C. ou mesmo ainda no século I d.C.. Como indícios favoráveis a esse entendimento, Gilles Dorival menciona a evidência material do papiro Rylands 457 e a preservação da obra de Fílon de Alexandria (DORIVAL, 1999, p. 165). A seguir, considero brevemente a validade de cada um desses indícios. Dorival reconhece de passagem que as datações de manuscritos envolvem incertezas, mas não dá o devido peso a esse problema. De fato, o papiro em questão, mais conhecido atualmente como P52, está envolvido em uma delongada discussão a respeito de sua datação. Não há consenso de que o fragmento de papiro contendo trecho do Evangelho de João provenha do primeiro quarto do século I d.C.. Larry Hurtado observa, inclusive, que Roberts, o responsável por sua publicação durante os anos 1930, construiu sua argumentação a favor da antiguidade do documento em uma espécie de competição com o papiro Egerton 2, possivelmente desconsiderando detalhes e a meticulosidade devida em estudo dessa natureza (HURTADO, 2003, p. 7). Hurtado está interessado na questão específica do (não) uso dos nomina sacra no manuscrito. Nongbri, por sua vez, oferece uma reconsideração das comparações paleográficas empreendidas por Roberts, demonstrando que uma análise criteriosa dos manuscritos comparados (e de outros pertinentes a serem trazidos para a comparação) não restringe a datação à primeira metade do século II d.C. (NONGBRI, 2005). Atualmente, portanto, assim como não seria sensato evocar o papiro como evidência minimamente segura da antiguidade do Evangelho de João, como ressalta Nongbri, tampouco seria criterioso utilizá-lo para explicitar a presença de cristãos em Alexandria no início do século II d.C..
Quanto à preservação da obra de Fílon de Alexandria, o argumento se constrói da forma que passo a expor. Sabe-se que a comunidade judaica alexandrina foi aniquilada em 117 d.C.. Mas, ao final do século II d.C., Clemente faz uso da obra filoniana.[3] Ora, se não havia judeus em Alexandria para preservarem os escritos de Fílon entre 117 e o período de Clemente na cidade, é plausível que cristãos que já estivessem na cidade enquanto a comunidade judaica ainda existia sejam os responsáveis por isso. Dentre os dois argumentos levantados por Gilles Dorival como evidência da presença de cristãos em Alexandria, no mínimo, no início do século II d.C., apenas esse último, que depende da obra de Clemente, permanece como pertinente. Ou seja, além do valor que a obra do teólogo tem em si mesma e do testemunho que dá a respeito da comunidade cristã de seu tempo, pode também ser o único vestígio de uma presença cristã na cidade aproximadamente um século antes de sua produção. Em contraste com o século I d.C., que nos lega tão somente um discreto indício da presença de cristãos em Alexandria, o século II d.C. revela uma diversidade de formas de cristianismo na cidade. Havia cristãos gnósticos, “gnósticos segundo a verdade” (expressão de Clemente para os crentes mais esclarecidos), cristãos simples, que rejeitavam a filosofia grega, e cristãos judeus. Além dessa diversidade de pensamento, ainda havia diversidade social, com ricos e pobres integrando a Igreja (DORIVAL, 1999, p. 166-173). É nesse contexto diverso e complexo que Clemente desenvolverá seu pensamento e aplicará seu ensino. ----------------------------------------- [1] O nome do mestre não é mencionado no trecho, mas se entende tratar-se de Panteno a partir da informação e exposição de Eusébio de Cesareia em H.E. V, cap. 10 e 11. O historiador informa que Panteno teria sido educado no estoicismo. [2] Todas as traduções de textos antigos citadas aqui são de minha responsabilidade. [3] O fato está bem demonstrado, por exemplo, em HOEK, 1988. REFERÊNCIAS DORIVAL, Gilles. Les débuts du christianisme à Alexandrie. In: LECLANT, Jean (ed.) Alexandrie: une mégapole cosmopolite. Actes du 9ème coloque de la Villa Kérylos à Beaulieu-sur-Mer les 2 & 3 octobre 1998. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1999. p. 157-174. HOEK, Annewies van den. Clement of Alexandria and his use of Philo in the Stromateis: An Early Christian reshaping of a Jewish model. Leiden: E. J. Brill, 1988. HURTADO, Larry. P52 (P. Rylands Gk. 457) and the Nomina Sacra: Method and Probability. In: Tyndale Bulletin, v. 54, n. 1 (2003). p. 1-14. KRAFT, H. Early Christian Thinkers: An Introduction to Clement of Alexandria and Origen. London: Lutterworth Press, 1964. NONGBRI, Brent. The Use and Abuse of P52: Papyrological Pitfalls in the Dating of the Fourth Gospel. In: Harvard Theological Review, v. 98, n. 1 (2005). p. 23-48. RODRÍGUEZ, Marcelo Merino. Razón y fé en Clemente de Alejandría. In: Teología y Vida, v. 52, (2011), p. 51-92. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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