Marcos 7.3 tem um probleminha de tradução daqueles! É mais fácil ignorar, passar correndo por ele. Você até compara traduções, mas não ajuda. É incômodo. οἱ γὰρ Φαρισαῖοι καὶ πάντες οἱ Ἰουδαῖοι ἐὰν μὴ πυγμῇ νίψωνται τὰς χεῖρας οὐκ ἐσθίουσιν, κρατοῦντες τὴν παράδοσιν τῶν πρεσβυτέρων, O problema é esse termo no dativo, πυγμῇ (pronuncie pygmê). Significa “punho”, isto é, a mão naquela posição de punho fechado. “Os fariseus e todos os judeus não comem a não ser que lavem as mãos em punho”? Como assim? Parece sem sentido. Por isso, os tradutores vão procurar entender de modo diferente. Em punho... Bom... Lembra luta. Então, Marcos deve querer falar que eles lavam a mão como se fosse uma luta, com esforço, diligentemente, cuidadosamente, coisa de compulsivo. Isso! Aí, temos os seguintes resultados: NTLH: Os judeus, e especialmente os fariseus, seguem os ensinamentos que receberam dos antigos: eles só comem depois de lavar as mãos com bastante cuidado. NAA (Nova Almeida Atualizada): Porque os fariseus e todos os judeus, observando a tradição dos anciãos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos. ARA: pois os fariseus e todos os judeus, observando a tradição dos anciãos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos; KJV: For the Pharisees, and all the Jews, except they wash their hands oft, eat not, holding the tradition of the elders. NVI: Os fariseus e todos os judeus não comem sem lavar as mãos cerimonialmente, apegando-se, assim, à tradição dos líderes religiosos. AVE MARIA: Com efeito, os fariseus e todos os judeus, apegando-se à tradição dos antigos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos; Aumente a lista conferindo você mesmo. Pois então, será que é por aí? Eu já até me contentei com essa solução, por alguma medida de preguiça, claro. Mas, de repente, vem um judeu e lê o trecho em grego. E fica sabendo da nossa peleja para traduzir o termo. Ele olha e diz tranquilo: - Tá, mas por que vocês não deixam “em punho” mesmo? - Porque não faz muito sentido? - Como não? Você já viu como lavamos as mãos antes de comer pão? Observou a posição dos dedos? - Não. Não é como todo mundo? - Olha no Youtube. - Ah... Então, quer dizer que esse costume deve ser muito antigo, já comum no século I d.C., e que Marcos devia conhecê-lo bem? - Acho mais plausível isso do que um uso estranhíssimo do termo, como essas traduções propõem. - É verdade. Bom, na sorte ou não, a NVI teria ficado mais próxima, ainda que não de modo explícito... Veja o vídeo abaixo. Se não entende inglês, basta observar atentamente as imagens.
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A pedido de um amigo, eu gostaria de tecer algumas ressalvas ou observações sobre afirmações comuns sobre a definição do cânone do AT. Afirmação 1: Havia duas coleções de rolos sagrados organizadas pelos judeus – uma na Palestina, com 39 livros, só os escritos naquela região, e outra de Alexandria – chamada Septuaginta, e que tinha livros a mais escritos em grego fora da terra santa? Essa ideia de dois cânones tem alguns problemas. Aliás, tem muitos problemas.
Afirmação 2: A Igreja usou a LXX por ser a tradução disponível em grego. O judaísmo se limitou ao cânone menor. Parece-me que sim quanto ao Pentateuco e, mesmo desgostando da aplicação do nome Septuaginta aqui, reconheço que, por movimentar-se inicialmente em grego, a Igreja parece ter se ocupado dessa vasta gama de textos judaicos escritos em grego. Curiosamente, e felizmente, isso fez com que muitos textos judaicos fossem preservados, já que, de outra forma, não seriam, visto que foram desprezados pelo judaísmo rabínico-sinagogal que ia se fortalecendo e ampliando sua influência. Afirmação 3: Lutero optou pelo cânone mais restrito. A Igreja Romana confirmou o cânone mais amplo. Isso. Lutero optou pelo cânone mais restrito. Mas deixou os outros livros no mesmo volume – com nota informando a diferença de valor/qualidade. A Igreja Romana confirmou o cânone mais amplo. Aqui, tem protestante que usa de uma artimanha que não me agrada. Aproveitam que foi só no século XVI que a Igreja Romana definiu mesmo o cânone e se adotou o termo “deuterocanônicos”, para dizer que esses livros só foram acrescentados nessa ocasião. Claro que não é o que aconteceu. Trata-se de uma confirmação de algo que já era prática. Uma leitura dos Pais da Igreja deixa claro que vários deles usavam esses livros constantemente. Eu sei que tenho mais problemas que soluções. É a esse ponto que me conduz a reflexão. Parece meio sem saída. Pois é. Ainda que não tenha dado nada de substancial para substituir as afirmações comuns, espero que essas provocações sirvam para indicar possíveis caminhos para pesquisas futuras, para quem tem fôlego para prosseguir nesse caminho. Considero que meu papel não é só oferecer respostas, mas também (e, em casos, só) ajudar a perceber que certas respostas alheias ainda são insuficientes. Se puder ajudar mais, perguntem! Se discordam, comentem! Abraço! |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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