A cidade de Tiatira
Cesar M. Rios É comum escutarmos e lermos, em apresentações de cidades dos tempos do Novo Testamento, que a tal cidade era importante, que tinha importância comercial e religiosa. No caso de Tiatira, pequena cidade no caminho entre Pérgamo e Sardis, é necessário, de certa forma, fazer o oposto, visto que a cidade era menos importante política e militarmente que as demais da mesma região (CHARLES, 1920, p. 67-68). Tiatira havia sido fundada séculos antes, no início do século III a.C., por Seleucus Nicator, antigo general de Alexandre o Grande, que herdara parte do império (CHARLES, 1920, p. 68). Sob domínio romano, Tiatira, assim como toda a região, vivia tempos de maior tranquilidade econômica e política durante o período do Império em comparação com o período da República. A prometida Pax Romana tinha seus efeitos na vida cotidiana (FRIEDRICH, 2002, p. 191). Quanto à situação dos cristãos na região, é importante considerar que as perseguições sofridas pela Igreja nem sempre é aquela impetrada organizadamente pelo Império. No contexto em questão, ressalta-se a tensão mais local, entre moradores em geral e as pessoas ligadas à Igreja, o que não se concretizava necessariamente em violência física, mas em zombaria e desprezo. Friedrich é pertinente e claro ao observar que todos os escritores romanos que falam sobre cristãos transmitem opiniões assaz negativas, o que transparece uma opinião que permeia a sociedade (FRIEDRICH, 2002, p. 195-198). O monoteísmo exclusivo impedia a plena reciprocidade com o todo das cidades. A separação levantava suspeitas e críticas. Um exemplo de quebra da reciprocidade e da agregação pode estar na negação ao consumo de carne sacrificada. Parece pertinente não pensar simplesmente em aquisição de carne antes sacrificada que estava a venda no comércio local, mas em uma situação de comensalidade, na qual a carne servida marca certa continuidade entre o sacrifício e a reunião (FRIESEN, 2004, p. 369-370). Em Titatira, essas refeições podiam ser realizadas por colegas de ofício de vários cristãos. Economicamente, a cidade se caracteriza fortemente pela presença de muitas associações profissionais de diversos tipos de atividades. Integrar uma dessas sociedades e recusar participar de suas atividades poderia gerar algum incômodo. A existência e relevância dessas organizações em Tiatira se comprova por diversas inscrições encontradas. Mais da metade dessas inscrições se relaciona com a atividade de produção de tecidos e a de tingimento (GRAVES, 2017, p. 4). Isso é costumeiramente lembrado pelo fato de que, no livro de Atos, figura Lídia, uma vendedora de tecidos tingidos na cor púrpura, que é apresentada como natural de Tiatira (At 16.14). Por vezes, comentaristas informam que o tipo de tingimento praticado por Lídia seria feito a partir de uma raiz, e não a partir de moluscos marinhos. O tingimento feito a partir dessa raiz era de menor qualidade, e mais barato. A razão de se levantar essa hipótese está unicamente na distância entre Tiatira e o litoral. Obviamente, era mais fácil praticar tingimento usando um molusco marinho perto da costa. Não obstante, Dave Graves demonstrou em um estudo detalhado, fundamentado em evidências arqueológicas, que era viável e praticado o tingimento a partir de moluscos a considerável distância do litoral (GRAVES, 2017). Tiatira tinha um templo dedicado ao deus-sol lídio, chamado Tyrimnos, que já havia sido, ao longo do período helenístico, associado a Apolo, deus do panteão grego. É importante observar que Apolo, por sua vez, era também associado ao imperador romano. Apolo, como se sabe, é, no mito grego, tido como filho de Zeus. Há quem veja nesse dado a respeito de Apolo e do imperador um motivo para que, na carta a Tiatira, em comparação com as outras seis, esteja a única apresentação de Jesus Cristo como “Filho de Deus”. O objetivo seria demonstrar que Jesus, e não Apolo ou o imperador, é o verdadeiro filho de Deus (MOUNCE, 1977, p. 101-102; FRIEDRICH, 2000, p. 189-190). Não obstante, não há templo especificamente dedicado ao culto imperial em Tiatira. Ademais, o culto imperial não se praticava somente em templos específicos ou cidades específicas, sendo comum em qualquer cidade do Mediterrâneo (FRIESEN, 2005, p. 364). A meu ver, essa proposta pode não ser tão convincente. Primeiramente, sendo o título “Filho de Deus” tão comum em outros textos cristãos escritos antes de Apocalipse, parece-me que dificilmente um leitor/ouvinte comum do livro perceberia o uso como intencional além do costumeiro, ainda que Friedrich observe que o título não seja tão abundante em referências ao Cristo exaltado (FRIEDRICH, 2002, p. 190). Além disso, também deve-se lembrar que Apolo, mesmo sendo realmente filho de Deus, não se destacava como “o filho de Deus”. Eram numerosos os deuses tidos como filhos de Zeus. Nestor Friedrich cita a seguinte auto-apresentação de Augusto em carta dirigida a Éfeso para demonstrar o elo entre imperador o título: αὐτοκράτωρ Καῖσαρ θεοῦ Ỉουλίου υἱός [César absoluto, filho do deus Júlio] (FRIEDRICH, 2002, p. 190). Perceba-se, contudo, que o que se destaca é o fato de Júlio César ser apresentado como um deus. Augusto, por sua vez, é filho desse Júlio (que é um deus). Não se trata de uma ênfase no título “filho de Deus” para Augusto. Outro templo importante em Tiatira era dedicado a Sambethe, que contava com uma profetisa. Há quem entenda que essa profetiza seja referida na carta como “a mulher Jezabel”. Mas essa autoproclamada profetiza seria integrante da comunidade cristã, e não uma pessoa ligada a outra religião (cf. MOUNCE, 1977, p. 103). O versículo 21 parece favorecer essa leitura. Existe, inclusive, a possibilidade de se considerar que se tratasse da esposa do pastor daquela igreja, o que se sustentaria somente a partir de uma variante textual de importância moderada: τὴν γυναῖκα [σου τήν] Ἰεζάβελ. As palavras entre colchetes aparecem somente no Códex Alexandrinus (A). O possessivo, sem o artigo, aparece também em manuscritos mais tardios (entre os quais, 1006, 1841, 1854). É um testemunho bastante isolado, em oposição ao Sinaiticus, a C e P. Mesmo considerando o fato de que há menos manuscritos com o Apocalipse (em comparação com o que se dá no caso dos Evangelhos, por exemplo), o que faz com que o códex A, mesmo sozinho, não seja evidência insignificante, é razoável a decisão de Aland, que admite a lição menor. Parece-me que, tanto no caso do templo de Tyrimnos quanto no caso do de Sambethe, os dados históricos e arqueológicos não ajudam de modo direto a entender o conteúdo específico do texto destinado aos cristãos Tiatira. Parece-me que a explicação deve ser procurada principalmente nas características e vivências da própria comunidade cristã da localidade. Certamente, não se trata de tarefa fácil ou mesmo possível de se cumprir cabalmente, uma vez que nos faltam outras fontes documentais e arqueológicas a respeito, restando uma busca pelo que pode estar implicado no próprio texto do Apocalipse. Com isso, não pretendo sugerir que seja de menor importância a procura por um entendimento histórico-cultural de Tiatira no final do século I d.C.. Se não há grandes achados a serem diretamente relacionados com trechos da “carta”, é certo que dados contextuais podem iluminar a reflexão sobre implicaturas presentes nela. A disposição de alguns integrantes da Igreja para o consumo de carne sacrificada a ídolos e sua condenação, por exemplo, podem ter relação com o papel das associações profissionais na vida diária da cidade. Certamente, nessa busca de relações entre texto e dados do contexto, não é razoável esperar que haja plena exatidão ou nitidez. Tentamos visualizar a lógica palácios complexos através de meras ruínas dos dois lados: um texto em ruínas (por nos legar somente sua superfície, mas não a vida/a performance para a qual foi escrito); um contexto em ruínas, pois não vivenciamos as cidades antigas e, especialmente, menos ainda uma tão pouco retratada textualmente pelos escritores antigos. Referências CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on The Revelation of St. John. Volume I. The International Critical Commentary. Edinburgh: T & T Clark, 1920. FRIEDRICH, Nestor. Adapt or Resist? A Socio-Political Reading of Revelation 2.18-29, JSNT, v. 25, n. 2, 2002, p. 185-211. FRIESEN, Steven. Satan’s Throne, Imperial Cults and the Social Settings of Revelation. JSNT, v. 27, n. 3, 2005, p. 351-373. GRAVES, David. What is the Madder with Lydia's Purple? A Reexamination of the Purpurarii in Thyatira and Philippi, NEASB, v. 62, 2017, p. 3-29. MOUNCE, Robert. The Book of Revelation. The New International Commentary on the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1977. THE GREEK NEW TESTAMENT. Fourth Revised Edition. Edited by Barbara Aland et al. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2000.
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Recomendo com ênfase a monumental obra de Jaroslav Pelikan.
Sobre problema na tradução mencionado no vídeo, acrescendo estes dois pequenos exemplos: "O primeiro a aplicar o termo à morte de Cristo parece ter sido Hilário, ele equiparou "satisfação" a "sacrifício" e interpretou a cruz como o grande ato de Cristo de reparação a Deus em nome dos pecadores." Obviamente, há erro, pois o "ele" depois da vírgula deveria ser um pronome relativo. Para manter o "ele", seria preciso colocar um ponto e iniciar nova frase. No texto em inglês, há um relativo (who). "...mas a lei natural desempenhou um papel no esforço dos primeiros teólogos de lidar com o paganismo e continuou para "prover as igrejas filhas do catolicismo ocidental, do luteranismo e do calvinismo com os meios de se modelar como uma unidade cristã da civilização"." O texto é incômodo em sua construção. Haveria vários pontos a serem aperfeiçoados só nessa frase. Mas ressalto o "continuou para", que traduz "went on to". É fácil imaginar facilmente algumas opções que fariam mais sentido: "acabou por", "veio a" etc. A expressão escolhida ("continuou para") não faz sentido (pelo menos, não sem muito boa vontade por parte do leitor). |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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