Lutero e Economia: Ganância é idolatria!
(Anotação de leitura) Qualquer um que leu o Catecismo Maior de Lutero sabe bem da marcante explicação dele para o primeiro mandamento. Como ele entende que nós criamos falsos deuses para nós mesmos quando depositamos nossa confiança em algo além de Deus, é bem fácil prever que ele colocaria o dinheiro e as posses como candidatos fortes a serem nossos ídolos favoritos. Lá está o argumento. Mas é interessante como uma pesquisa mais ampla nos escritos do reformador pode mostrar como essa associação entre ganância e idolatria é consistente e importante em seu pensamento. Quem desenvolveu um estudo sobre o tema foi Ricardo W. Rieth. Dois artigos publicados por ele na primeira metade da década de 1990 dão um excelente direcionamento para caminharmos por esse bosque escorregadio. (Isso não é surpresa, já que, mesmo em âmbito internacional, Rieth é uma das pessoas que mais entende de Lutero e Economia.) Apesar de limitado em seu contexto, Lutero conseguia perceber, pela forma como a ganância está arraigada no ser humano, a possibilidade de variados recursos e variadas formas de sua operação: "Para Lutero, a “ganância” era uma forma de pecado, que oculta a injustiça e a exploração do homem pelo homem sob uma fachada de boas obras e aparentes boas intenções. Ela se expande ininterruptamente. Desenvolve-se a partir da natureza egoísta das pessoas e assume dentro do contexto econômico sempre novas formas e estruturas." (RIETH, 1993, p. 160). Além disso, apesar da falta naquele tempo de uma ciência econômica e social bem desenvolvida, a partir das Escrituras, Lutero conseguia perceber que as consequências da ganância não eram as mesmas para todos: “Quem mais sofre as conseqüências da “ganância” são, segundo Lutero, os pobres. Ela faria com que os representantes do poder público se esforçassem pelos interesses dos poderosos e opressores. Ao final, ninguém estaria preocupado em combater a injustiça contra os pobres, a não ser Cristo e aqueles que verdadeiramente o seguem, ou seja, aqueles que acolhem a Lázaro em sua miséria.” (RIETH, 1993, p. 160). É claro que essa opinião de Lutero perturbada alguns e pode ser vista como um atraso para o desenvolvimento econômico e das potencialidades do ser humano. Isso não o demovia de seu propósito: “Lutero, como intérprete da Escritura, confrontou-se com os problemas de sua época, a fim de denunciar e combater a injustiça. Deste modo, queria uma melhora das condições de vida e não estava preocupado com o fato de estar, através de sua prática, barrando ou não um desenvolvimento econômico pré-capitalista.” (RIETH, 1993, p. 164). No artigo em que trata especificamente da idolatria “econômica”, Rieth desvela um Lutero não muito conhecido, ávido por ver as pessoas não só ouvindo a Palavra, mas a praticando, com ações efetivas. “Por outro lado, Lutero também identificou a ganância com a idolatria ou culto às riquezas, em oposição à verdadeira adoração, ao verdadeiro culto a Deus. A ganância arruína os frutos da fé. Ela destrói as boas obras que brotam da fé e não podem ser separadas dela.” (RIETH, 1994, p. 73). Novas atitudes eram imprescindíveis: “A ganância causa a ira de Deus, citada no mesmo versículo, da mesma forma como junto com a licenciosidade causou o dilúvio. Também outros textos bíblicos — p. ex., Nm 25.18; 1. Co 10.8 — comprovam a dura ação divina nesse caso. Quem não confirma sua fé com a ação vale diante de Deus tanto quanto um gentio, é um desertor de Cristo e da fé. Por causa da ganância já estaria se manifestando em sua época, segundo Lutero, a ira de Deus, na forma de carestia, peste, guerra e derramamento de sangue.” (RIETH, 1994, p. 75). Para quem gosta de enfatizar que, em algum sentido, há diferença entre pecado e pecado, pensar com Lutero pode levar a uma conclusão pouco divulgada: “Os evangelhos e Paulo ligam a maioria das vezes a ganância — e não os outros pecados, como luxúria e ira, que também são contra Deus — com a idolatria.” (RIETH, 1994, p. 76). Talvez evitemos essas conclusões por estarmos sendo guiados pelo modo de ver do presente século, o que se percebe claramente em cultos, palestras e cursos que se propõem a enriquecer cristãos: “A respeito desta [da ganância], que por sua vez é um ídolo contra a fé, Deus e o mundo fazem juízos absolutamente distintos. O mundo não a castiga, considerando-a uma virtude.” (RIETH, 1994, p. 76). Esse reconhecimento, diferente do que se possa pensar, não nos leva somente ao pedido de perdão, sem mudança de prática. “A fé não deveria se restringir apenas ao que os cristãos dizem e ouvem, mas converter-se em boas obras e aperfeiçoar-se.” (RIETH, 1994, p. 76-77). Concluo esse passeio pelos textos do Ricardo W. Rieth com uma última citação, que desmorona nossa tentativa de evasão, de fuga da responsabilidade: “Para Lutero também jamais seria suficientemente descrito quão bem a ganância consegue vender-se como algo belo, virtuoso, correto e honrado. Na idolatria de Mâmon estar-se-ia usando a desculpa da busca — necessária e ordenada por Deus — da subsistência pessoal e familiar a fim de encobrir a ganância ou a ânsia pela riqueza iníqua. Isso estaria tão propagado e inserido na coletividade que nem os pregadores nem as autoridades podiam combatê-lo com eficiência.” (RIETH, 1994, p. 77). P.S. Acho que vou postar o link disso daqui em cada propagando de "cristão rico" e "vida próspera" por aí. É chique por aí ter ambição. Para Lutero, o nome é idolatria. -------------------- Link para os artigos: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/938 http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/877
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NOTA (PARA LUTERANOS) SOBRE CRÍTICAS LUTERANAS À VARIAÇÃO DE PRÁTICAS NO CONTEXTO LUTERANO5/21/2020 NOTA (PARA LUTERANOS) SOBRE CRÍTICAS LUTERANAS À VARIAÇÃO DE PRÁTICAS NO CONTEXTO LUTERANO
Por mais bem intencionado que possa ser, o intento individual – ou de grupos de afinidade - no sentido padronizar aspectos externos do luteranismo não é condizente com a confessionalidade luterana. Além de não ecoar a disposição dos confessores do século XVI, mesmo que possa repercutir a opção de alguns ou vários deles, qualquer iniciativa que tente normatizar como completamente necessário o que não é estabelecido pelas Confissões pode trazer mais confusão que edificação. No fim das contas, a avidez por defender a identidade confessional luterana por meio da uniformização de uma ou outra prática externa corre o risco de ir contra a própria identidade confessional luterana. Além disso, em redes sociais, podemos colocar em dúvida, entre membros, o trabalho de um pastor que está no campo, fazendo um trabalho esforçado em um contexto que sequer imaginamos existir. Podemos causar escândalo e rusgas a partir de nossa poltrona na relação entre membros e pastores sem sequer tomarmos consciência disso. Mas não somos nós que vamos chorar com essas pessoas quando for necessário. Não somos nós que vamos acompanhá-las na caminhada cristã. Continuaremos somente podendo oferecer sugestões sobre a forma “mais correta” de vida litúrgica e identidade confessional. Algumas discussões não são apropriadas para um âmbito completamente aberto. Se quero dizer que é errado (vem um exemplo bem sem sentido para evitar começar uma discussão) subir ao púlpito com o pé esquerdo, já que isso é uma afronta contra a identidade luterana, eu deveria encontrar um espaço para discutir isso sem que a conversa chegue, antes de bem resolvida, aos ouvidos de todos, inclusive do Astrogildo, cujo pastor sempre sobe assim. Se quero mesmo discutir o assunto, eu poderia, de preferência, encontrar um âmbito em que isso fosse discutido por pessoas que entendem de liturgia (leigos inclusive) e líderes da igreja em geral. Para ficar claro, na IELB, seria de se discutir isso na Revista Igreja Luterana, mas NÃO na Mensageiro Luterano! Você, pessoa que participa em uma comunidade luterana, tem todo o direito de exigir que seu pastor seja fiel às Escrituras e às Confissões Luteranas reunidas no Livro de Concórdia. Quanto a outras questões, eventualmente, saiba das opiniões e razões dele, que podem diferir muito de opiniões que circulam nas redes sociais. Respeite isso. Ele tem sobre si a responsabilidade seríssima de conhecer o contexto em que está e nele trabalhar da melhor forma possível. Se ele não está nas redes sociais debatendo e colocando seu contraponto frente aos que afirmam algo diferente do que faz, talvez haja também motivo para isso. Não é necessariamente o caso de que ele esteja ignorando o assunto. Pode ser que tenha urgências da própria vida da comunidade que o impeçam de se dedicar a essa discussão nesse âmbito aberto. Por fim, um pedido bem pessoal: Se qualquer coisa que eu digo ou escrevo (neste texto inclusive) parece colocar em dúvida o trabalho do seu pastor, coloque em dúvida, antes, o meu discurso, que não pode estar ciente de todos os variados casos e contextos. Não é meu propósito controlar nada nem ninguém. P.S. Não estou afirmando que tudo é válido. “Faça cada um como quiser!” Não é isso. Façamos com ordem, respeitando nossas Confissões, o critério da comunicação do Evangelho e sem causar escândalos. P.S.’’ Não estou dizendo que não se possa mostrar a existência de tradições bonitas, significativas e edificantes. Só estou dizendo que não se deve impor como norma necessária tudo o que é bonito, significativo e edificante. P.S.’’’ Nos contextos em que convivi, sempre tive como muito proveitosos muitos dos elementos que são tidos como tradicionais, bonitos e significativos, mas tenho para mim que posso encontrar contextos em que outros elementos é que serão bonitos e significativos, alguns dos quais poderão, eventualmente, ser diferentes do que se entende como tradicional. Falo de possibilidade. P.S. (o último) Não estou afirmando que a forma não tem nada a ver com o conteúdo, que o conteúdo não sofre influência da forma. MAS entendo que NÃO posso usar o fato de que forma e conteúdo se inter-relacionam como meio de impor uma só forma, como se um conteúdo não pudesse ser bem comunicado por mais de um meio. P.S. (Ah... só mais um, por favor!) Ninguém se sinta desestimulado a trabalhar em prol do que acredita. Só convido a uma reconsideração de forma de atuação ou de tom. E o convite vale para mim também, claro. Eu, porém, vos digo: comunhão!
Cesar Motta Rios A série de afirmações contrastantes de Jesus em Mateus 5.21-48 pode ser lida a partir de diversas perspectivas e suscitar também variadas interpretações. Um caminho possível é olhar para o texto a partir de uma noção individualista e, consequentemente, encontrar nele somente uma afirmação sobre cada pessoa diante de Deus. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma leitura espiritualizada. Jesus estaria simplesmente demonstrando que o ser humano é incapaz de responder devida e profundamente à Lei em seu sentido último. A pessoa, no confronto com esse discurso, vê a si mesma isoladamente. É possível, também, encontrar leituras mais sociais, que encontram uma aula de ética fundamentada em normas estritas, sem atenção para um aspecto espiritual/teológico. Uma terceira via poderia reconhecer algo como uma dimensão ética e, ao mesmo tempo, considerar como ela se relaciona com um aspecto teológico. O assunto seria simultaneamente o relacionamento entre pessoas e a questão da justiça e do pecado. Nossa falta de justiça e nosso pecado sempre presente nos impedem de viver em comunhão verdadeira e satisfatória. Não podemos negar que todas as leis evocadas e comentadas por Jesus dizem respeito ao ser humano em sua dimensão social. O aprofundamento de sentido operado por Jesus não só revela nossa incapacidade de agir corretamente o tempo todo, mas também o fato de que o dano do pecado, enquanto descumprimento da lei em seu sentido mais superficial e imediatamente percebido, também acontece em ações mais sutis. Assassinar outra pessoa é a forma extrema de aniquilar a possibilidade de comunhão. Nega-se ao outro o direito de existir. Você simplesmente elimina alguém com quem deveria conviver, colocando um ponto final em qualquer intento de convivência. Odiar outra pessoa também faz você estar sob esse juízo. Afinal, essa disposição interior com relação ao outro, ainda que não manifestada em aniquilação física, estabelece uma ruptura, de modo que, para aquele que odeia, a pessoa odiada deixa de ser pessoa com quem se possa conviver. Certo é que o pecado nos faz querer rupturas. O adultério certamente desestabiliza a convivência. Jesus coloca sob essa categoria o simples olhar lascivo. É curioso que o adultério parece prejudicar a vida social por fazer ruir a família. Mas a colocação de Jesus acaba enfrentando um problema mais fundamental: a objetificação do outro. O olhar lascivo acusado nas palavras do Cristo faz com que uma mulher não seja respeitada como pessoa, como profissional, como cidadã, mas desejada como objeto a ser possuído. Rompe-se a convivência entre pessoas com igual dignidade. Estabelece-se uma relação de consumo e posse. É nesse mesmo sentido que se pode compreender também o dano do divórcio banalizado. Certo é que o pecado faz com que não vejamos as outras pessoas sempre como pessoas. Em vez de comunhão, temos uma relação utilitária com elas. A restrição ao juramento, por sua vez, vem com a afirmação radical da necessidade da verdade e da confiança nas interações. Certo é que o pecado perturba esse caminho necessário. Vivemos sob o signo da desconfiança, da mentira astuta, do convencimento desleal. O regramento para se revidar proporcionalmente – olho por olho - é sombreado pelo apelo ao não revidar. Em vez de fazer ecoar a perturbação da convivência, que, contra o pretendido estabelecimento de um limite para a retratação, pode acabar perpetuando a ruptura, Jesus propõe uma atitude radical, que suporta a injustiça pacificamente, com vistas à supressão do processo de oposição. Certo é que o pecado não nos conduz à pacificação das relações, mas à exigência de reparação. Por fim, Jesus alcança o ápice com o “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”. Parece um extremo oposto do início dessa parte da exposição. Começamos com o extremo da ruptura – o homicídio – e terminamos com o extremo da comunhão – o amor. O amor, de fato, aparece não somente como meio de manter convivência que está em andamento, mas de subverter completamente a lógica pecaminosa da ruptura. É certo que o pecado torna essa reviravolta completamente incompreensível e, até mesmo, odiosa. Correndo os olhos pelo discurso de Jesus com esse duplo aspecto em mente – o fato teológico/antropológico do pecado e a valorização da manutenção da convivência, talvez sejamos convidados a vislumbrar que a questão teológica está intimamente relacionada com a vivência em comunidade. Não há dicotomia entre espiritual e social que se sustente. Não há dicotomia entre vida moral e espiritual. A vontade de Deus é que o pecado não perturbe a comunhão entre Ele e a humanidade ou entre nós humanos. Realmente, a supressão absoluta da ruptura causada pelo pecado não é conseguida pela observação de regras elevadas por parte de seres imperfeitos. Essas palavras de Jesus continuam deixando evidente a necessidade de uma intervenção divina nesse sentido. E a intervenção veio pela cruz, sendo chamada de reconciliação. Mas essas mesmas palavras do Mestre não deixam, contudo, de expressar o anseio de Deus para nossa vida, e de nos mobilizar a, unidos a Cristo, sem o qual nada podemos fazer, cultivar uma vida que preze pelo que Deus quer para nós e considere atentamente a verdadeira perversidade do que Deus não quer. Com nossas atitudes e palavras, frequentemente dizemos: “Egoísmo! Ruptura!”. Cristo, porém, nos diz com palavras, com sua vida e até mesmo em nossas vidas: “Comunhão!”. A casa da teologia ainda requer mão de obra (não só de repetidores)
Cesar Motta Rios É preciso pensar teologia? Ou é só questão de memorizar o já teologado por outros ao longo dos séculos? No caso de teólogos confessionais, basta-nos reafirmar a cada dia o que foi bem acabado séculos atrás? Afinal de contas, qual é a tarefa que nosso tempo e cada novo tempo cobra de nós? É pergunta demais para os minutos que tenho para rascunhar este texto. Não pretendo respondê-las realmente. O que quero hoje é simplesmente demonstrar a necessidade desse questionamento e ensaiar um direcionamento pessoal. Ulrich von Balthasar é instigante quando o assunto é esse. Por isso, convido você a lê-lo um pouco comigo: “A uns teólogos parece que a teologia (isto é a explicação da Revelação em conceitos humanos) progrediu tanto a ponto de estar próxima à conclusão. A casa parece já construída, os quartos já atapetados, de forma que para as gerações futuras não resta senão um trabalho mais modesto de acabamento: fazer a decoração nos vãos já terminados, nos espaços internos que se tornam sempre menores, por em ordem em cima das cômodas. Ao final só há o trabalho de tirar o pó.” Aqui, tem um ponto que me parece importante demais: teologia é entendida como explicação da Revelação. E, se entendo que a Revelação está nas Escrituras, como de fato entendo, chegarei à conclusão de que, para mim, toda teologia tem que ser, no fim das contas, teologia bíblica. Teologia sistemática, por exemplo, só será teologia se tiver a capacidade de se submeter à teologia bíblica. Ressalto: Podemos ter formulações belíssimas, cheias de tradição e vigor atual, mas, se não forem fundamentadas nas Escrituras, se não receberem dela a sua seiva, se forem dependentes de fábulas ou invencionices (mesmo que de longa data e muito amadas por nomes da Igreja), ou se forem mero resultado dessa maravilha chamada razão, não será verdadeira teologia; será somente um produto humano, pronto para gerar discussão desnecessária, confusão e, esperamos, algum desprezo futuro. Vamos ler mais um pouco do nosso novo amigo: “Tem-se a impressão deste estilo quando se olha somente para a tradição. Mas se o santo (ou propriamente o crente que vive da fé e em graça) confronta a tradição com as enormes exigências da Revelação, então tudo o que se conseguiu não se reduzirá talvez a um mísero punhado de pensamentos e conceitos, fraca noção de uma verdadeira explicação?” Eu acho essa percepção genial. E volto a dizer: teologia que é teologia é teologia bíblica, impregnada das Escrituras e, sempre de novo, inquietada por elas. Podemos passar ao último trecho que pretendo compartilhar: “E não se trata de demolir, destruir, desprezar quanto é fruto de trabalho de séculos. Tudo o que é genuinamente verdadeiro permanece. Mas os contornos não constituem ainda um desenho terminado. E muitas das linhas traçadas nos séculos III e IV perduraram até aos nossos dias quase imutáveis como se constituíssem já o desenho em si.” Esse trecho era importante para não fazer pensar que o convite para se voltar os olhos para as Escrituras implica em ignorar completamente tudo mais. Dito isso, volto: Cabe a nós cuidar do pó que se assenta ou do pequeno vidro que um desavisado quebra de quando em vez na nossa casa da teologia? Isso é válido e necessário, certamente. Mas concordo com von Balthasar: há muito mais a fazer. Fazer teologia tendo o objetivo de refletir algo novo não é ato de rebeldia. Pelo contrário, é inserir-se na tradição como algo que vive. Não se trata de lançar fora doutrinas bem estabelecidas, mas de explorar riquezas das Escrituras que podem resultar em elaboração de noções ainda não muito consideradas, mas relevantes para nosso tempo. Além disso, trata-se de voltar às Escrituras com as doutrinas em mãos (especialmente, quando essas doutrinas são desafiadas por um contexto estranho ao contexto em que foram formuladas). De novo, não se trata de desprezar doutrinas ou mesmo de questionar sua correção. Trata-se de reconhecer que, para situações diferentes, novos elementos bíblicos precisam ser trazidos para aquela velha conversa em andamento. Ou fazemos essa incursão, ou teremos simplesmente que nos apoiar em nomes admirados e na repetição de bordões. Mas isso não é um recurso muito pertinente. É como construir uma casinha em estilo enxaimel com belas madeiras repletas de cupim por dentro. A aparência pode ser aceitável. Mas aparência não sustenta. E se realmente vamos pelo árduo caminho do retorno às Escrituras com disposição para a reflexão, certamente, encontraremos, além de dificuldades, certos riscos. Riscos - bem sabem os adultos - fazem parte da vida responsável. ------------ O livro citado de von Balthasar é Derrubar as muralhas. Clemente e o cristianismo em Alexandria Cesar Motta Rios Embora seja conhecido como “de Alexandria”, Clemente não nasceu ali, mas, possivelmente, em Atenas (KRAFT, 1964, p. 32; RODRÍGUEZ, 2011, p. 54). Contudo, foi na cidade junto ao Delta do Nilo, depois de ter aprendido a partir de mestres louváveis de diversas regiões (Grécia, Síria, Assíria e, inclusive, um hebreu da Palestina), que Clemente encontrou, por último (ὑστάτῳ), aquele era o primeiro em capacidade (δυνάμει δὲ οὕτος πρῶτος ἤν), e, por isso, permaneceu com ele no Egito (Str. I, 1.38).[1] As palavras que o teólogo usa para descrever o ensino de seu mestre em Alexandria são marcadamente elogiosas: “Realmente era a abelha siciliana: coletando das flores da campina tanto profética quanto apostólica, produziu nas almas dos ouvintes um conhecimento realmente puro (ἀκήρατόν τι γνώσεως χρῆμα)”[2] (Str. I, 1.38). Também em Alexandria, mais tarde, Clemente desenvolverá seu ensino e a escrita de sua obra notável. É razoável, portanto, que o nome da cidade esteja tão atrelado ao do teólogo. De certa forma, o inverso também é verdadeiro. Seria, no mínimo, inusitado falar sobre o cristianismo na cidade de Alexandria sem mencionar Clemente. Ele é o primeiro pensador cristão baseado na cidade a nos legar uma obra, e o primeiro do qual sabemos consideravelmente mais que o nome. De fato, as origens do cristianismo em Alexandria não estão claras. Há hipóteses modernas, como a que atribui a chegada da mensagem cristã à cidade a certo Apolo mencionado em Atos, bem como relatos antigos que relacionam a emergência de uma comunidade cristã ali com trabalhos missionários de Barnabé, uma vez companheiro de Paulo, ou do evangelista Marcos. Não há, contudo, comprovação de qualquer das versões. Ainda assim, parece razoável entender que o cristianismo se desenvolveu na cidade muito antes da chegada de Clemente, possivelmente nos inícios do século II d.C. ou mesmo ainda no século I d.C.. Como indícios favoráveis a esse entendimento, Gilles Dorival menciona a evidência material do papiro Rylands 457 e a preservação da obra de Fílon de Alexandria (DORIVAL, 1999, p. 165). A seguir, considero brevemente a validade de cada um desses indícios. Dorival reconhece de passagem que as datações de manuscritos envolvem incertezas, mas não dá o devido peso a esse problema. De fato, o papiro em questão, mais conhecido atualmente como P52, está envolvido em uma delongada discussão a respeito de sua datação. Não há consenso de que o fragmento de papiro contendo trecho do Evangelho de João provenha do primeiro quarto do século I d.C.. Larry Hurtado observa, inclusive, que Roberts, o responsável por sua publicação durante os anos 1930, construiu sua argumentação a favor da antiguidade do documento em uma espécie de competição com o papiro Egerton 2, possivelmente desconsiderando detalhes e a meticulosidade devida em estudo dessa natureza (HURTADO, 2003, p. 7). Hurtado está interessado na questão específica do (não) uso dos nomina sacra no manuscrito. Nongbri, por sua vez, oferece uma reconsideração das comparações paleográficas empreendidas por Roberts, demonstrando que uma análise criteriosa dos manuscritos comparados (e de outros pertinentes a serem trazidos para a comparação) não restringe a datação à primeira metade do século II d.C. (NONGBRI, 2005). Atualmente, portanto, assim como não seria sensato evocar o papiro como evidência minimamente segura da antiguidade do Evangelho de João, como ressalta Nongbri, tampouco seria criterioso utilizá-lo para explicitar a presença de cristãos em Alexandria no início do século II d.C..
Quanto à preservação da obra de Fílon de Alexandria, o argumento se constrói da forma que passo a expor. Sabe-se que a comunidade judaica alexandrina foi aniquilada em 117 d.C.. Mas, ao final do século II d.C., Clemente faz uso da obra filoniana.[3] Ora, se não havia judeus em Alexandria para preservarem os escritos de Fílon entre 117 e o período de Clemente na cidade, é plausível que cristãos que já estivessem na cidade enquanto a comunidade judaica ainda existia sejam os responsáveis por isso. Dentre os dois argumentos levantados por Gilles Dorival como evidência da presença de cristãos em Alexandria, no mínimo, no início do século II d.C., apenas esse último, que depende da obra de Clemente, permanece como pertinente. Ou seja, além do valor que a obra do teólogo tem em si mesma e do testemunho que dá a respeito da comunidade cristã de seu tempo, pode também ser o único vestígio de uma presença cristã na cidade aproximadamente um século antes de sua produção. Em contraste com o século I d.C., que nos lega tão somente um discreto indício da presença de cristãos em Alexandria, o século II d.C. revela uma diversidade de formas de cristianismo na cidade. Havia cristãos gnósticos, “gnósticos segundo a verdade” (expressão de Clemente para os crentes mais esclarecidos), cristãos simples, que rejeitavam a filosofia grega, e cristãos judeus. Além dessa diversidade de pensamento, ainda havia diversidade social, com ricos e pobres integrando a Igreja (DORIVAL, 1999, p. 166-173). É nesse contexto diverso e complexo que Clemente desenvolverá seu pensamento e aplicará seu ensino. ----------------------------------------- [1] O nome do mestre não é mencionado no trecho, mas se entende tratar-se de Panteno a partir da informação e exposição de Eusébio de Cesareia em H.E. V, cap. 10 e 11. O historiador informa que Panteno teria sido educado no estoicismo. [2] Todas as traduções de textos antigos citadas aqui são de minha responsabilidade. [3] O fato está bem demonstrado, por exemplo, em HOEK, 1988. REFERÊNCIAS DORIVAL, Gilles. Les débuts du christianisme à Alexandrie. In: LECLANT, Jean (ed.) Alexandrie: une mégapole cosmopolite. Actes du 9ème coloque de la Villa Kérylos à Beaulieu-sur-Mer les 2 & 3 octobre 1998. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1999. p. 157-174. HOEK, Annewies van den. Clement of Alexandria and his use of Philo in the Stromateis: An Early Christian reshaping of a Jewish model. Leiden: E. J. Brill, 1988. HURTADO, Larry. P52 (P. Rylands Gk. 457) and the Nomina Sacra: Method and Probability. In: Tyndale Bulletin, v. 54, n. 1 (2003). p. 1-14. KRAFT, H. Early Christian Thinkers: An Introduction to Clement of Alexandria and Origen. London: Lutterworth Press, 1964. NONGBRI, Brent. The Use and Abuse of P52: Papyrological Pitfalls in the Dating of the Fourth Gospel. In: Harvard Theological Review, v. 98, n. 1 (2005). p. 23-48. RODRÍGUEZ, Marcelo Merino. Razón y fé en Clemente de Alejandría. In: Teología y Vida, v. 52, (2011), p. 51-92. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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