O reduzido volume de páginas de O Ensino da Igreja a Respeito do Batismo de Karl Barth pode levar o leitor a subjugar a importância de seu conteúdo. A leitura de umas poucas páginas, contudo, será suficiente para revelar a profundidade da reflexão, a veemência argumentativa e a perspicácia da reflexão do teólogo. Ademais, o leitor logo percebe que há certa imprevisibilidade no texto. Os caminhos de Barth não são exatamente os mais trilhados. Não que não haja um recurso ao legado da história da Igreja e do pensamento teológico. Ao contrário, com frequência, Barth recorre aos Pais da Igreja Antiga, aos reformadores e a teólogos mais próximos de seu tempo. Mas não se compromete inteiramente com nenhum deles. Nem mesmo os grandes representantes da tradição em que se insere, a Reformada, lhe parecem inteiramente satisfatórios ou coerentes. Isso torna a leitura de seu texto um tanto emocionante, no sentido próprio do termo, como quando o usamos para descrever a leitura de um romance policial. Há um certo suspense e uma ansiedade por entender aonde nos levará cada novo argumento concatenado. O batismo é essencialmente entendido como selo, sinal, uma representação ou cópia. Conforme Barth, nenhum ensino da Igreja contesta diretamente “a visão de que o batismo deva ser também e, de fato, primariamente, entendido como um símbolo” (BARTH, 1965, p. 13). Parece-me que ele se excede ao acrescentar “e, de fato, primariamente”. A dimensão simbólica não está ausente na concepção sacramental, mas instaurá-la como necessariamente primordial é desconsiderar boa parte da tradição cristã. Esse posicionamento poderia nos levar a supor que haja uma acomodação de Barth a um ramo específico do protestantismo. Contudo, isso não acontece. A linguagem utilizada pelos pais da Igreja e por Lutero, por exemplo, para descrever o batismo como algo efetivo é acolhida por Barth. Logo, percebe-se que ele não considera dizer que o Batismo é um sinal como sendo o mesmo que dizer que é um mero sinal. Essa representação parece ser mais que mera representação por causa da efetividade do que é por ela representado e dado à vista e à biografia do batizado: a união com Jesus Cristo em sua morte e ressurreição por meio da ação do Espírito Santo (BARTH, 1965, p. 12; 18). Não se trata de sinal desprovido de potência. De fato, conforme Barth, não há potência no batismo por si mesmo, como ato, mas pela ação e palavra de Cristo, que confere potência ao batismo, o que dirá respeito a todos os batizadores e batizados em seguida. Embora a Igreja profira a Palavra no batismo e execute o ato, o que precisa sempre ser crido, amado, esperado e pedido em prece é o poder de Sua livre Pessoa, enviado para esse propósito específico. Isso não pode ser manipulado por homens. É sempre um poder que o próprio Cristo pessoal e livremente concede. É algo prometido que só Ele mesmo pode providenciar. (BARTH, 1965, p. 19.) Coerentemente, Barth divergirá explicitamente de Zwinglio. Após demonstrar concordância com o reformador a respeito do caráter simbólico do batismo, critica-o por ter afirmado que a potência do batismo está limitada ao poder da fé que é fortalecida pelo uso do batismo como símbolo. Barth nega veementemente que a fé seja um poder dependente de si mesma e fortalecida por si mesma a partir de uma cerimônia. Antes, a fé como poder e também o poder de Jesus Cristo ou o poder do batismo estão sustentados e são dependentes da realidade objetiva da aliança divina da graça (BARTH, 1965, p. 21). O poder do Batismo não estaria depositado na Igreja, mas seria, pelo contrário, sustentado em sua capacidade de fazer a Igreja ver que sua fé não depende de si mesma, mas que está estabelecida no amor divino, pelo ato sacrificial de Cristo. Com isso dito, fica mais viável entender o que propus antes: que o batismo em Barth é sinal, mas não mero sinal. Em seguida, por não considerar o batismo como potência dependente de si mesma, Barth mostra divergência previsível com a ideia da opus operatum da Igreja Romana. Contra Lutero e os luteranos, Barth afirma que teriam acertado caso tivessem ficado satisfeitos, “contra todo separatismo e espiritualismo, ao dirigirem a atenção à inter-relação ordenada de sinal e substância, de representação e realidade, e, por conseguinte, de Batismo e Espírito, Água e Palavra de Deus” (BARTH, 1965, p. 22). Nesse sentido, Lutero estaria certo ao falar da Palavra de Deus como “cerne na água”, ao passo que teria exagerado ao chamar a água de “água de Deus” ou “água divina, celestial, santa e bendita”, o que teria sido sistematizado por luteranos posteriores (BARTH, 1965, p. 22-23). Ao discutir o assunto, o teólogo assume a posição que lhe é própria como reformado e afirma certo caráter dispensável do meio: “A palavra e a obra livres de Cristo podem fazer uso de outros meios. O fato de a Igreja ter sido ordenada a usar esse meio não significa que o próprio Jesus Cristo esteja limitado a ele” (BARTH, 1965, p. 23). No mesmo sentido, contra luteranos, anglicanos e católicos romanos, ele afirmará que “nosso batismo não é mais a causa de nossa redenção que nossa fé” (BARTH, 1965, p. 27). Seu alinhamento com a doutrina reformada é realçado por uma citação do Catecismode Heidelberg: “Então, é o banho externo o lavar dos pecados? Não. Somente o sangue de Jesus Cristo e o Espírito Santo nos limpa de todo pecado” (BARTH, 1965, p. 27). Contudo, novamente, Barth não demonstra concordância com Zwinglio. O Batismo não tem poder em si, mas tem importante função sacramental, no sentido de mostrar e conferir de modo particular a realidade do poder redentor, que não está nele mesmo, mas no sacrifício de Cristo, ao batizado. Ou seja, mesmo não tendo um objetivo causativo (como fonte mesma da redenção ou da fé), o batismo permanece com sua importância sacramental no pensamento barthiano por ter um especialíssimo objetivo cognitivo (BARTH, 1965, p. 28-29). A segunda parte de O Ensino da Igreja a Respeito do Batismo enfatiza a questão do batismo infantil. Não há espaço para reproduzir todo o argumento de Barth no presente trabalho, inclusive por sua complexidade e sofisticação. Ressalto somente o suficiente para demonstrar que, também nessa questão, há um diálogo insatisfeito com as propostas apresentadas antes na tradição cristã. Barth entende que a ordem correta do batismo inclui uma tarefa responsável do lado da Igreja e uma prontidão e voluntariedade responsável por parte do indivíduo que recebe o batismo (BARTH, 1965, p. 34). Coerentemente, ele afirma que a ordem correta do batismo não é possível no caso dos infantes. Barth interpela luteranos, anglicanos e católico-romanos com um questionamento um tanto irônico a respeito do rito de confirmação (ou similar) e sua relação teológica com o batismo. Conforme sua perspectiva, o estabelecimento da confirmação como tendo um caráter quase “complementar” ao batismo tira do batismo sua inteireza validade sacramental. O próprio Calvino não escapa da crítica de Barth nesse assunto. Com veemência, o teólogo critica uma inconsistência nas Institutas entre o ensino a respeito do batismo e a defesa do batismo de infantes por parte de Calvino (BARTH, 1965, p. 48). Poder-se-ia pensar, então, que há uma concordância com os batistas, anabatistas ou grupos de pensamento semelhante. Não obstante, o autor deixa claro que não nega a validade ou o efeito do batismo de infantes. Mas não pode haver questão sobre nenhuma destruição objetiva da natureza do batismo, nenhuma anulação objetiva de seu poder, nenhum impedimento à sua obra e, por conseguinte, nenhuma ineficácia objetiva do batismo por causa da administração inadequada ou do recebimento inadequado do sacramento. (BARTH, 1965, p. 36.) Em seguida, afirma claramente que não reconhece o rebatismo como forma adequada de ajuste por qualquer inadequação em uma primeira administração (BARTH, 1965, p. 36). Considero útil encerrar essa exposição com a citação razoavelmente longa do parágrafo final do texto de Barth: Exatamente por causa dessa sua última eficácia válida, o batismo não precisa nem de repetição nem de sobre-batismo. Exatamente por causa disso, qualquer rebatismo arbitrário envolve uma difamação do batismo e é, como Vilmar corretamente disse, blasfêmia contra Deus. A Ceia do Senhor, a pregação e a oração podem e devem ser repetidas. O louvor de Deus é tema que se renova a cada dia, a cada hora. A glória do batismo entre todas as partes da proclamação da Igreja é sua singular administração. Pois Jesus morreu uma vez pelos nossos pegados e despertou uma vez de entre os mortos para nossa justificação: ἐφάπαξ, de uma vez por todas. (BARTH, 1965, p. 64.) BARTH, Karl. The Teaching of the Church Regarding Baptism. London: SCM, 1965.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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