O desenho é provocativo. Um muçulmano, um cristão e um budista (?) esperam com apreensão e temor pelos resultados que um cientista trará para a cura de uma doença. É criativo e provocativo, mas não reflete a realidade muito bem. O problema mais óbvio é o isolamento entre ciência e religião. O cientista não pode ser adepto de uma dessas três religiões? Os homens da religião precisam estar assim temerosos, como que confiando no cientista como fonte de salvação? Afinal, um bom budista teme assim a morte? E o cristão? E o muçulmano? No caso do cristão, que é o que me interessa, é bom lembrar que a fé cristã se vive na vida cotidiana, nas variadas ocupações da vida comum. Servimos ao próximo no nosso trabalho diário, como pais, mães, bancários, músicos, professores, médicos, mecânicos, cientistas... Ou seja, o trabalho de um cientista é visto como um trabalho como outros, que deve ser feito em prol da vida do próximo. A pessoa que é cristã e cientista realiza esse trabalho justamente entendendo que serve ao próximo, seguindo, na profissão diária, os passos de seu Mestre. A pessoa não-cristã não vê seu trabalho como seguimento de Cristo, já que não o segue. Ainda assim, seu êxito é alcançado dentro do âmbito da bondade de Deus para com sua criação. A cientista cristã serve ao próximo com sua descoberta para a glória de Deus e para o bem das pessoas. A cientista não-cristã serve ao próximo no desempenho de sua carreira, e esperamos que um dia reconheça a dádiva de Deus na possibilidade do exercício dessa profissão. Nessa dinâmica, já se vê que a religião não espera da ciência como se esperasse de uma concorrente. Espera de uma vocação como de outras tantas. A Igreja não faz pão. Mas vê com bons olhos os pães que são feitos por padeiros por aí, sejam eles cristãos ou não. O padeiro cristão acorda cedo e sabe que, além de garantir seu sustento, como seguidor de Cristo, serve ao próximo... (Bom, você já entendeu isso.) Também seria bom lembrar que a Igreja cristã não é concorrente da / oposta à ciência por aquilo que se vislumbra na própria história da ciência. Boas notícias, tanto de medicamento quanto de possível vacina para a COVID-19 aparecem por agora desde Oxford. Não vamos nem mencionar que as universidades europeias nasceram da Igreja. Mas Oxford me lembra que é lá que se encontra um importantíssimo centro de reflexão e pesquisa sobre Ciência e Religião (https://www.theology.ox.ac.uk/science-and-religion). E a concorrente Cambridge não se silencia também sobre o assunto (https://www.faraday.cam.ac.uk/). Aprendemos com esse pessoal que o conflito Ciência vs. Religião é mais inventado que historicamente necessário. Mas é conversa longa isso. E, popularmente, é mais fácil manter a ideia de simples e inegociável disparidade, oposição, alteridade absoluta. Agora, tem uma coisa que me incomoda há muito tempo nas conversas sobre Ciência e Religião. É que, sempre que surge o assunto, pensa-se em ciências naturais. Quase sempre, a conversa descamba para o assunto do evolucionismo. Isso me incomoda. Certamente, deixa muita gente com sono. Há alguns anos, quando eu tinha que falar sobre os desafios para a fé cristã no ambiente acadêmico, não hesitei e investi na minha percepção: Nosso maior desafio não é Darwin, mas Deleuze. Não, não especificamente o pensador em si. Estou usando os nomes para indicar áreas amplas. Queria dizer que nossa pedra no sapato não está nas ciências naturais, mas nas ciências humanas. Quem não “frequentou” o ambiente acadêmico pode ter dificuldade para perceber isso. Darwin está tranquilo na dele, comparativamente. Pois bem, era uma percepção. Lendo Lesslie Newbigin estes dias, encontrei justamente a afirmação de que a rejeição à religião é mais forte no âmbito das ciências humanas. Isso na década de 1980. Mas eu, que conheci a universidade já nos anos 2000, penso que se sustenta aquela pesquisa. Como explicação, há a hipótese de que, sendo ciência num sentido mais difícil de definir, e tendo seus limites de diferenciação com respeito ao pensamento não-científico menos nítidos que os limites da física, por exemplo, as ciências humanas teriam criado um ethos que requer a repulsa ao religioso como marca identitária necessária. Pureza. Não sei se é exatamente por aí. Pode ser. Mas a concordância com minha impressão anterior me impressionou. A questão não é, a meu ver, de rejeitar reciprocamente Deleuze e todas as ciências humanas. Óbvio que não. No fim das contas, até nos pós-estruturalistas franceses há coisas bem interessantes e aproveitáveis, em meio aos desafios e incompatibilidades radicais. O ponto é que um diálogo é necessário. Um cuidado é imprescindível. Isso se inicia com o reconhecimento. Eu acrescento uma nota pessoal. Esse fato de haver uma repulsa à religião, uma ideia de que o ceticismo é traço identitário normal do acadêmico das ciências humanas NÃO pode ser lido como evidência de um anti-cristianismo ativista. E, aqui, deixo minha experiência registrada. Entrei para a UFMG aos 17 anos de idade. À época, era não só um cristão, mas também tinha traços bem fundamentalistas em minha formação religiosa. Transitei entre a Faculdade de Letras e a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas por 15 anos. (Não. Não fui um preguiçoso que demorou para concluir o curso, sustentado pelos pais etc. A história é outra.) Tive meus desafios? Sim. O conhecimento sempre envolve desafios. Tive meus dilemas diante de outras visões de mundo? Óbvio. Fui desrespeitado por ser cristão? Estes dias, durante uma live do Francisco Razzo com o Guilherme de Carvalho, nos comentários, alguém acabou me dizendo que era impossível ser cristão “na academia” na época de um governo de esquerda. Olha, eu entrei na época do FHC e saí na época da Dilma. Fui cristão do início ao fim. Li a Bíblia na universidade. Falei sobre minha fé. Tive amigos de diferentes crenças e descrenças. Estudei disciplinas da Letras, da História, da Filosofia e da Pedagogia. Na dedicatória ou nos agradecimentos de meus três trabalhos de conclusão (monografia, dissertação e tese), mencionei minha fé em Deus. Escutei palestras de padres na UFMG! Veja só! Um ótimo biblista jesuíta nos falou sobre as Escrituras e tradução. Um agostiniano nos falou sobre o pensamento de Agostinho. Desses eu me lembro. Também tive aula com uma teóloga luterana numa disciplina sobre crimes e pecados na literatura! Lembrei-me agora. Claro, não posso falar sobre todos os casos em todos os lugares. Mas posso dizer que eu nunca fui desrespeitado ou ridicularizado por ser cristão. Ouvi dizerem também por aí: “Ah, mas não tem financiamento de pesquisa para quem não aborda tema que agrada a esquerda...” Eu obtive bolsa de pós-doutorado do CNPq para estudar um exegeta judeu do século I d.C., sua leitura bíblica e seu combate ao hedonismo! Que que tem de esquerda nisso? Enfim... se tive sorte ou fui muito lerdo a ponto de não perceber uma perseguição contra mim, não sei. Mas sei que foi bom demais o tempo que passei ali. Agora, tenho outra tarefa na vida. E entendo ser a melhor que eu poderia ter. Mas, ali, na universidade laica, consegui me estruturar bem para o que viria depois. Devo demais àquele lugar e àquelas pessoas. Com isso – retorno – quero dizer que, quando afirmo que nosso problema está mais com Deleuze que com Darwin, não quero dizer que seja um problema necessariamente destrutivo e cheio de aflição - com um ou com o outro. Temos como seguir nessa caminhada com paz, desde que reconheçamos o senhorio daquele que nos amou e que morreu por todos, cientistas, filósofos, religiosos e céticos. “A tua paz, vivida e irmanada com a justiça Abrace o mundo inteiro Tem compaixão” Paz, graça e bem! ---------------------- A referência ao governo FHC e governo Dilma (e o do Lula implicitamente, pela cronologia) não implica em aprovação irrestrita a qualquer deles. O que aprovo no texto é a atitude da instituição que me acolheu nesses períodos.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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