Terceiro Domingo após Epifania – 2020
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A IGREJA, AS INÚTEIS BUSCAS PESSOAIS E O ESCONDERIJO EM CRISTO (À MESA) 1 Coríntios 1.10-18 Cesar Motta Rios É bom fazer parte de um grupo. A gente gosta de fazer uma linha definindo gente que tem certas coisas em comum com a gente. Claro, essa linha tem que deixar alguns de fora. Por exemplo, eu gosto de tomar café sem açúcar. Aí, eu pergunto se mais alguém gosta muito de café sem açúcar. Sempre tem alguém. Então, nós nos sentimos unidos por isso em comum. E podemos olhar para os de fora do nosso grupo como gente menos sofisticada, com menos bom gosto (o que não deixa de ser verdade). Gera-se uma sensação de pertencimento. Eu, que sou um ser cheio de incerteza, ancoro minha identidade em um grupo, em um traço específico a ser mostrado para os outros. Isso acontece de forma mais clara quando o assunto é pensamento. Na Grécia Antiga, ao longo dos séculos, foram se formando correntes de pensamento, geralmente associadas a uma ou mais personalidades importantes. Assim, na virada das eras, já tínhamos os que se diziam platônicos, os aristotélicos, os epicureus, os estóicos (que olhavam para gente como Zenão e Cleantes), os estranhos pitagóricos... E podiam admirar pessoas específicas (Platão, Aristóteles, Epicuro...) como referências e vê-las como superiores às pessoas referenciais dos outros. Claro que o embate entre esses grupos podia gerar atrito. Mas é o atrito mesmo que dava emoção para a coisa. “Eu sigo Platão. E Platão é melhor que Aristóteles”. (De forma muito menos intensa e consistente, nos últimos anos, vimos algo semelhante nos adeptos de um ou outro pensador brasileiro: Pondé, Cortella, Karnal, Clóvis de Barros.) O problema é que o pessoal da Igreja em Corinto parece ter resolvido que era normal reproduzir um pouco disso na Comunidade. Então, uns foram se declarando do grupo de Pedro, outros do de Paulo, outros do de Apolo e, no fim das contas, até uns disseram ser do grupo de Cristo. E, de repente, tínhamos essas “escolas de pensamento” dentro de uma mesma Igreja. Problema? Parece que muitos não perceberam, mas, sim, era problema. E foi o pessoal da Cloé (sobre quem não sabemos nada!) que parece ter visto que isso não estava bem e resolveu tomar a atitude correta: solicitaram a ajuda de Paulo. Agora, o pessoal da Cloé não podia ter também dito que era do grupo de Cristo? Afinal, tem algo de errado em alguém dizer ali em Corinto que é do grupo de Cristo, enquanto os outros dizem que são de Pedro, Paulo ou Apolo? A resposta do apóstolo resolve indiretamente esse dilema. O ponto é que o esquema está todo errado. A divisão está errada. E colocar Cristo nesse esquema errado, assim, não resolve. O pessoal que via essas divisões como erradas poderia dizer “somos de Cristo”, mas não como se fossem de mais um grupo a ser escolhido. Era preciso contar para os coríntios que todos eram de Cristo e o que isso tinha de superior ao que eles vinham fazendo. Eles podiam diferenciar Pedro, Paulo, Apolo e Cristo pela forma de ensino e vida (como faziam os gregos com os filósofos). Sim. Podiam. De fato, Pedro e Paulo, que conhecemos um pouco, não ensinam da mesma forma. Há diferenças na maneira de comunicar a mensagem do Evangelho. Apolo devia ter ainda outras características. Mas Cristo, meus queridos, não é simplesmente um que ensina o Evangelho. Portanto, como diz Paulo, ninguém foi batizado sem ser no nome de Cristo. Ninguém, a não ser Cristo, morreu por eles. Uma coisa é o vaso que traz o tesouro. Outra coisa é o tesouro e quem o fez estar ali. Cristo padeceu e morreu para tornar o perdão uma realidade. Os outros são somente meios de fazer a mensagem do perdão chegar. Uns pregam a doutrina de que Deus dá a justificação por graça mediante a fé. Felizmente, vários pastores fazem isso muito bem, mas de formas diferentes, com ilustrações diferentes. Agora, Cristo não anuncia essa doutrina da justificação por graça mediante a fé simplesmente, ele constrói a realidade que torna essa doutrina verdadeira. O que ele faz é maior que qualquer doutrina. Está claro, então, que Cristo está acima desse jogo de personalidades. E está claro que o que ele faz e é torna esse jogo desnecessário e insignificante, porque tem algo muito mais importante a oferecer. E o que ele oferece a nós, seres carentes de definição de identidade, ansiosos por um grupinho em que possamos nos inserir? Eu escolhi a música Rocha Eterna para cantarmos antes da mensagem justamente pensando nessa pergunta (e, coincidentemente, ela se relaciona com o Salmo do dia também). Os primeiros versos dizem “Rocha eterna, meu Senhor, és refúgio protetor”. No texto original, que é de um religioso da Igreja da Inglaterra do século XVIII, fica mais forte isso: “Rock of Ages, cleft for me, let me hide myself in Thee”, literalmente, “Rocha Eterna, fenda para mim, deixa eu esconder a mim mesmo em ti!”. Nesse pedido para se esconder em Cristo está a solução. Nesse pedido, está a aniquilação de todas as nossas inquietações pessoais no sentido de sermos referência, pessoas notáveis, ou de escolhermos pessoas notáveis e cultivarmos nessa adesão a elas nossa existência. Como eu disse, essa vinculação a uma pessoa e a um grupo em torno dela parece bom e prazeroso até, mas, no fundo, gera desgaste e é correr atrás do vento. Perdemos tempo querendo ver valor elevado no outro, torcendo para não sermos desiludidos. Isso sabendo que todos esses vasos de barro são meros humanos e, portanto, falhos. E, mesmo que não falhem tanto ou grosseiramente, não suprem nossa necessidade de identidade. São meros humanos como nós. Então, pedimos a Cristo para ser nosso esconderijo de toda essa canseira e confusão. E ele nos acolhe. Os versos que seguem no hino Rocha Eterna se referem à água e ao sangue que jorram do lado de Cristo na cruz. Remetem, assim, ao Batismo e à Santa Ceia. E, aí, eu me lembro: Quem na Ceia recebe a Cristo, nessa comunhão íntima e verdadeira pelo recebimento de seu corpo e sangue, não carece, não precisa mostrar que é isso ou aquilo. Está escondido. Está seguro além de toda ilusão de segurança. Está unido a Cristo como Igreja e não se prende a um outro ser errante. Não é estranho que, na mesma primeira carta aos Coríntios, Paulo trata longamente da Santa Ceia, enfatizando a unidade da Igreja. Aqui, nesse trecho inicial, ele diz que não deve haver divisão entre eles como em escolas de pensamento diferente. Adiante, mostrará a necessidade dessa unidade na Santa Ceia. Todos, à Mesa de Cristo, encontram seu esconderijo e encontram-se como a Igreja, uma só Igreja. O jovem que, em certos momentos, não sabe bem o que é e o que quer na vida pode encontrar na Ceia o descanso de sua inquietação. A pessoa de meia idade tomada pelo turbilhão de tarefas e responsabilidades, que não dá tempo nem para pensar, pode, na Ceia, em comunhão com Cristo, saber que é mais do que aquilo que faz na correria. Quem já tem muitos anos de vida, olha para trás e não sabe se fez as melhores escolhas, pode, na Ceia, saber que sua vida é mais do que simplesmente os caminhos que percorreu. Quem acha que não tem lugar no mundo pode receber em si, na Mesa do Senhor, aquele por meio de quem o mundo todo foi criado. Descobrimos, assim, que, nele, somos mais do que sempre sonhamos ser. Porque ele nos dá uma nova forma de existir no mundo e para além do mundo. De vez em quando, você precisa ver em alguém ou em um grupo o que você é? Precisa de algo para sentir que tem uma identidade? O que você é? Escute bem: “Se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram. Eis que se fizeram coisas novas!” (2 Coríntios 5.17). Amém.
2 Comments
Segundo Domingo após Epifania – 2020
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS O NOME QUE NOS FAZ CRER (NA SANTA IGREJA) MESMO COM MUITAS DECEPÇÕES 1 Coríntios 1.1-9 Cesar Motta Rios Você já se decepcionou com a Igreja? Já conheceu alguém que já se decepcionou? Tem uma parte da história da Reforma que não costuma ser muito considerada. Na verdade, são muitos detalhes que ficam esquecidos, mas um me veio à mente para esta mensagem. Lutero, quando já maduro e com a Reforma bem desenvolvida, olha para a realidade à sua volta e parece não encontrar exatamente o que ele previa anos antes. Em alguns textos desse período, por exemplo, no Comentário à Epístola de Paulo aos Gálatas, fica bem explícito o descontentamento do reformador. Ele pensava que a pregação do Evangelho feita de forma clara e enfática traria muitas mudanças positivas. Na prática, percebia certo desleixo das pessoas. E reclama. Nosso assunto não é Lutero ou Reforma, mas eu queria mencionar isso para observar que a decepção com a Igreja não é algo novo, de nosso tempo. Mas também não é algo novo lá no século XVI. A comunidade cristã em Corinto, no século I d.C., já tinha ingredientes suficientes para deixar o apóstolo Paulo profundamente decepcionado: eles tinham divisões (sobre as quais escutaremos no próximo fim de semana); imoralidade sexual (com caso emblemático bizarro); transformaram a Santa Ceia em comilança desordenada. Era sério o negócio. Mas Paulo não desiste. Vai escrever para eles e começa com esse trecho que nós lemos hoje. Ele, o remetente, se apresenta como apóstolo de Cristo Jesus. E o destinatário é “a igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados santos”. Santos, Paulo? Santos, e não estão sozinhos, mas com todos aqueles que invocam o nome do Senhor Jesus Cristo, em qualquer lugar. Santos! Muitos santos! Mas você deve ter percebido que, nesse trechinho inicial, apareceram já três vezes o nome Jesus Cristo. E esse nome, que é invocado pelos tais santos, continua aparecendo insistentemente até o final do trecho lido hoje. Então, compensa lermos com isso em vista e enfatizarmos que esses santos são santificados em Cristo Jesus. Convém enfatizar que é gente que invoca o nome de Cristo Jesus. E tudo fica mais claro no versículo 4. Paulo dá graças a Deus pela gente dessa igreja cheia de problemas, porque a graça lhes foi dada por meio de Jesus Cristo. Novamente o nome e, agora, o termo chave – graça, a graça dada por meio de Jesus – que explica o motivo de pecadores serem chamados santos. Pela graça! Mas o dono do nome pelo qual importa que sejamos salvos (Atos 4.12), Jesus Cristo, não sai de cena com uma doação da graça simplesmente e esse título de santos dado de presente. Ele enriquece essa comunidade com conhecimento e palavra. E ele é aguardado por essa comunidade. E, diz o apóstolo, que essas pessoas serão mantidas firmes pelo próprio Deus até o fim, e, naquele dia de Jesus Cristo, serão irrepreensíveis. Agora, são santos, mas ainda repreensíveis. Naquele dia, serão santos e irrepreensíveis. Por que termina bem assim essa história? Por que gente tão bagunçada vai ficar bem no fim das contas? Por que eles são muitíssimo fiéis? Na verdade, Paulo enfatiza no versículo 9 não uma fidelidade deles, mas a de Deus: “Fiel é Deus, que os chamou para a comunhão com seu Filho Jesus Cristo”. Fiel é Ele. E essa comunhão que ele proporcionou possibilitou com tudo que já aconteceu, tudo que já mudou, e possibilita tudo que está para ser concluído também. A comunhão com Jesus é a realidade que faz existir a Santa Igreja, a comunhão dos santos. E, também, é nessa comunhão com Jesus – como apóstolo de Jesus, lembrando o início da carta, como servo de Jesus, como seguidores e seguidoras de Jesus – que uma pessoa pode olhar para o mundo e crer na existência da “Santa Igreja”. De fora dessa condição, dessa comunhão, é impossível. Você olharia para uma instituição e poderia até ver uma bela logomarca, congressos invejáveis, cursos de capacitação e bons retiros. Mas, olhando mais de perto, levantando alguns tapetes, encontraria incontáveis motivos para decepções. Não é à toa que, no Credo Apostólico, não afirmamos que vemos a Santa Igreja, mas que cremos nela. É algo do âmbito da fé e possível somente numa perspectiva de fé, na comunhão com Jesus. Essa comunhão, nós a temos pelo amor de Deus, que nos conduz por seus meios – Palavra e Sacramentos. Nós a temos por misericórdia e milagre garantidos na cruz. E é nas mãos milagrosas de Jesus que encontramos condições para caminharmos em meio às decepções e às contradições - sabendo que cada um de nós, com a própria imperfeição, contribui um pouco que seja para os problemas existirem - mas tendo esperança e vivendo o amor de Deus em meio a erros. Agora, uma última observação, breve, mas necessária: isso tudo não deve servir como uma autorização para a Igreja ser desleixada com seu procedimento. Saber que a santidade vem de Cristo e que a condição de irrepreensíveis está no horizonte da expectativa somente não deveria jamais nos fazer acomodados hoje. Há um caminho a ser percorrido com seriedade, com a Palavra e o conhecimento que nos foram dados em Cristo Jesus. Por isso, a carta aos Coríntios tem muito texto pela frente, com orientações preciosíssimas, escritas para serem lidas pelos cristãos de Corinto e por todos nós com atenção. A Santa Igreja ouve a Palavra com atenção, temor e amor, e a quer praticar imediatamente. Sob o nome de Jesus Cristo, nós seguiremos, com seriedade, devoção, autocrítica e, sobretudo, em comunhão com Cristo, que nos faz Santa Igreja - muitos santos; todos pecadores; sempre sabendo bem: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça de Deus” (Rm 5.20). Amém. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|