Clemente e o cristianismo em Alexandria Cesar Motta Rios Embora seja conhecido como “de Alexandria”, Clemente não nasceu ali, mas, possivelmente, em Atenas (KRAFT, 1964, p. 32; RODRÍGUEZ, 2011, p. 54). Contudo, foi na cidade junto ao Delta do Nilo, depois de ter aprendido a partir de mestres louváveis de diversas regiões (Grécia, Síria, Assíria e, inclusive, um hebreu da Palestina), que Clemente encontrou, por último (ὑστάτῳ), aquele era o primeiro em capacidade (δυνάμει δὲ οὕτος πρῶτος ἤν), e, por isso, permaneceu com ele no Egito (Str. I, 1.38).[1] As palavras que o teólogo usa para descrever o ensino de seu mestre em Alexandria são marcadamente elogiosas: “Realmente era a abelha siciliana: coletando das flores da campina tanto profética quanto apostólica, produziu nas almas dos ouvintes um conhecimento realmente puro (ἀκήρατόν τι γνώσεως χρῆμα)”[2] (Str. I, 1.38). Também em Alexandria, mais tarde, Clemente desenvolverá seu ensino e a escrita de sua obra notável. É razoável, portanto, que o nome da cidade esteja tão atrelado ao do teólogo. De certa forma, o inverso também é verdadeiro. Seria, no mínimo, inusitado falar sobre o cristianismo na cidade de Alexandria sem mencionar Clemente. Ele é o primeiro pensador cristão baseado na cidade a nos legar uma obra, e o primeiro do qual sabemos consideravelmente mais que o nome. De fato, as origens do cristianismo em Alexandria não estão claras. Há hipóteses modernas, como a que atribui a chegada da mensagem cristã à cidade a certo Apolo mencionado em Atos, bem como relatos antigos que relacionam a emergência de uma comunidade cristã ali com trabalhos missionários de Barnabé, uma vez companheiro de Paulo, ou do evangelista Marcos. Não há, contudo, comprovação de qualquer das versões. Ainda assim, parece razoável entender que o cristianismo se desenvolveu na cidade muito antes da chegada de Clemente, possivelmente nos inícios do século II d.C. ou mesmo ainda no século I d.C.. Como indícios favoráveis a esse entendimento, Gilles Dorival menciona a evidência material do papiro Rylands 457 e a preservação da obra de Fílon de Alexandria (DORIVAL, 1999, p. 165). A seguir, considero brevemente a validade de cada um desses indícios. Dorival reconhece de passagem que as datações de manuscritos envolvem incertezas, mas não dá o devido peso a esse problema. De fato, o papiro em questão, mais conhecido atualmente como P52, está envolvido em uma delongada discussão a respeito de sua datação. Não há consenso de que o fragmento de papiro contendo trecho do Evangelho de João provenha do primeiro quarto do século I d.C.. Larry Hurtado observa, inclusive, que Roberts, o responsável por sua publicação durante os anos 1930, construiu sua argumentação a favor da antiguidade do documento em uma espécie de competição com o papiro Egerton 2, possivelmente desconsiderando detalhes e a meticulosidade devida em estudo dessa natureza (HURTADO, 2003, p. 7). Hurtado está interessado na questão específica do (não) uso dos nomina sacra no manuscrito. Nongbri, por sua vez, oferece uma reconsideração das comparações paleográficas empreendidas por Roberts, demonstrando que uma análise criteriosa dos manuscritos comparados (e de outros pertinentes a serem trazidos para a comparação) não restringe a datação à primeira metade do século II d.C. (NONGBRI, 2005). Atualmente, portanto, assim como não seria sensato evocar o papiro como evidência minimamente segura da antiguidade do Evangelho de João, como ressalta Nongbri, tampouco seria criterioso utilizá-lo para explicitar a presença de cristãos em Alexandria no início do século II d.C..
Quanto à preservação da obra de Fílon de Alexandria, o argumento se constrói da forma que passo a expor. Sabe-se que a comunidade judaica alexandrina foi aniquilada em 117 d.C.. Mas, ao final do século II d.C., Clemente faz uso da obra filoniana.[3] Ora, se não havia judeus em Alexandria para preservarem os escritos de Fílon entre 117 e o período de Clemente na cidade, é plausível que cristãos que já estivessem na cidade enquanto a comunidade judaica ainda existia sejam os responsáveis por isso. Dentre os dois argumentos levantados por Gilles Dorival como evidência da presença de cristãos em Alexandria, no mínimo, no início do século II d.C., apenas esse último, que depende da obra de Clemente, permanece como pertinente. Ou seja, além do valor que a obra do teólogo tem em si mesma e do testemunho que dá a respeito da comunidade cristã de seu tempo, pode também ser o único vestígio de uma presença cristã na cidade aproximadamente um século antes de sua produção. Em contraste com o século I d.C., que nos lega tão somente um discreto indício da presença de cristãos em Alexandria, o século II d.C. revela uma diversidade de formas de cristianismo na cidade. Havia cristãos gnósticos, “gnósticos segundo a verdade” (expressão de Clemente para os crentes mais esclarecidos), cristãos simples, que rejeitavam a filosofia grega, e cristãos judeus. Além dessa diversidade de pensamento, ainda havia diversidade social, com ricos e pobres integrando a Igreja (DORIVAL, 1999, p. 166-173). É nesse contexto diverso e complexo que Clemente desenvolverá seu pensamento e aplicará seu ensino. ----------------------------------------- [1] O nome do mestre não é mencionado no trecho, mas se entende tratar-se de Panteno a partir da informação e exposição de Eusébio de Cesareia em H.E. V, cap. 10 e 11. O historiador informa que Panteno teria sido educado no estoicismo. [2] Todas as traduções de textos antigos citadas aqui são de minha responsabilidade. [3] O fato está bem demonstrado, por exemplo, em HOEK, 1988. REFERÊNCIAS DORIVAL, Gilles. Les débuts du christianisme à Alexandrie. In: LECLANT, Jean (ed.) Alexandrie: une mégapole cosmopolite. Actes du 9ème coloque de la Villa Kérylos à Beaulieu-sur-Mer les 2 & 3 octobre 1998. Paris: Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1999. p. 157-174. HOEK, Annewies van den. Clement of Alexandria and his use of Philo in the Stromateis: An Early Christian reshaping of a Jewish model. Leiden: E. J. Brill, 1988. HURTADO, Larry. P52 (P. Rylands Gk. 457) and the Nomina Sacra: Method and Probability. In: Tyndale Bulletin, v. 54, n. 1 (2003). p. 1-14. KRAFT, H. Early Christian Thinkers: An Introduction to Clement of Alexandria and Origen. London: Lutterworth Press, 1964. NONGBRI, Brent. The Use and Abuse of P52: Papyrological Pitfalls in the Dating of the Fourth Gospel. In: Harvard Theological Review, v. 98, n. 1 (2005). p. 23-48. RODRÍGUEZ, Marcelo Merino. Razón y fé en Clemente de Alejandría. In: Teología y Vida, v. 52, (2011), p. 51-92.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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