14º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS TEM OVELHA PERDIDA NO APRISCO? Lucas 15.1-10 e 1 Timóteo 1.1-17 Cesar Motta Rios Há algumas semanas, um pastor amigo meu compartilhou no Facebook uma frase mais ou menos assim: “Tem ovelha perdida que não volta para a igreja por causa do olhar acusador que vai receber das 99.” Minha pergunta imediata e sincera foi: “Então, quem não está perdido nessa história?” E, para hoje, o texto da reflexão é justamente essa parábola da ovelha perdida. Não tinha como eu não me lembrar daquela postagem. E ela tem muito a ver com algo que precisa ser dito sobre esse texto famoso. Jesus está com “gente estranha”, gente de caráter, no mínimo, duvidoso, e os fariseus e escribas se incomodam. Não é o que esperavam de alguém que ocupava um lugar de influência e que quisesse ter certo respeito por ali, progredir na sua carreira. Eles resmungam. Jesus reage com uma pergunta sobre eles mesmos, sobre a atitude que qualquer um deles teria no caso de perceber que uma ovelha do seu rebanho tivesse se perdido. O que ele quer que percebam é o esforço que fariam e a alegria que teriam com a ovelha perdida que tivesse sido reencontrada. Se essa imagem não era suficiente, ele ainda conta uma versão diferente: a da mulher que perde e acha sua moeda. Em ambos os casos, há um esforço para se encontrar o que se perdeu e há uma alegria festiva e coletiva quando ocorre o êxito. E isso seria algo normal, corriqueiro. Se era assim com ovelha e dinheiro, haveria de ser muito diferente com gente? Agora, volto à ideia que está por trás daquela postagem, sobre a qual comentei no início: A ovelha perdida é aquela pessoa que se afastou da igreja, que frequentou, mas já não frequenta. As 99 ovelhas são as que continuaram frequentando a igreja. E o pastor? Seria o pastor da igreja ou algum membro. Essa ideia, esse jeito de ler o texto tem um problema. Não é que eu ache que não possamos falar sobre esse assunto, dos que deixaram o convívio da Comunidade a partir dessa parábola. Mas é preciso ficar claro que não é bem esse o assunto discutido por Jesus. Ele não está falando de frequentar igreja. Perder-se, aqui, não é ficar um mês ou dois meses sem vir para o culto. Estar no aprisco, entre as 99, aqui, não é simplesmente vir para o culto. O assunto é arrependimento. Na explicação da parábola, o paralelo da festa do homem que encontrou sua ovelha ou da mulher que encontrou sua dracma é uma festa no Céu quando uma pessoa perdida se arrepende. O arrependimento é esse movimento interior da pessoa que se volta para Deus, reconhecendo sua total necessidade do amor e do cuidado de Cristo, por causa de sua imperfeição e inadequação à perfeita vontade divina. O problema é que isso não se faz necessário somente para pessoas que não estão vindo à igreja. O problema é que a conversa de Jesus, então, pode ser sobre qualquer pessoa, porque qualquer pessoa pode, em princípio, passar por um tempo na vida em que se esquece da necessidade de se voltar diariamente para Deus, de se arrepender. Então, mesmo que esteja fisicamente num templo cristão, não tem seu coração direcionado a Deus, nem escuta suas palavras como elas devem ser escutadas. Por vezes, seus gestos e suas palavras de conteúdo religioso são vazios, mero protocolo ou costume. Antes que se pense errado sobre o que estou dizendo, fique claro que não me refiro a uma ou outra pessoa específica. Pelo contrário, como disse, refiro-me a algo que pode acontecer com qualquer pessoa. Um ponto que torna essa realidade complexa está no fato de que as ovelhas perdidas nem sempre se reconhecem como ovelhas perdidas. Continuam pastando, de cabeça baixa, sem perceberem a distância que alcançaram (lembrando que podem estar fisicamente juntas com o rebanho), sem viverem arrependimento. Eu conheci a realidade de ovelhas que reconheciam claramente que precisavam voltar o coração para Deus, que precisavam apegar-se a Cristo e com ele andar. Estavam em uma comunidade terapêutica de recuperação de dependentes químicos. Mas, nesse contexto de dependência química, a realidade do afastamento estava estampada em suas biografias. É um caso específico. Na nossa vida socialmente bem ordenada, nós não identificamos tão facilmente nossa situação, porque, via de regra, estamos entretidos com o fluxo normal das coisas ou perplexos com as aflições e incertezas da vida, que são muitas e variadas. Paulo de Tarso, essa ovelha teimosa que esteve completamente afastada e, até mesmo, agindo como um lobo contra o rebanho de Deus, reconhece que foi o pastor Jesus que o fez mudar de direção. E ele se vê como um exemplo do extremo amor de Deus e de sua disposição para acolher o mais perdido dos perdidos. Se até uma ovelha-lobo foi integrada ao rebanho, quem não poderia ser? E você deveria se perguntar agora: Então, essa é a boa notícia do dia? É sim. Mas tem mais. Tem também um fato que não pode passar sem destaque: Se nós estivermos nos desligando do rebanho que escuta a voz de Deus em algum momento, quem está interessado em nos fazer voltar, em nos trazer de volta, não é, em primeiro lugar, um religioso, um membro de igreja, mas o próprio Senhor Jesus. Ele veio ao mundo para procurar ovelhas perdidas. Ele as ajuntou. E ele continua fazendo isso acontecer. E continua havendo festa no Céu quando alguém se arrepende. Às vezes, para nós, esse movimento é imperceptível. Mas, lá, a festa é grande. Continuemos como ovelhas satisfeitas por fazerem parte do rebanho do Senhor Jesus, sendo conduzidas por ele, nutridas por ele, de modo que vivamos o amor que só pode vir de um coração purificado, de uma boa consciência e de uma fé sem fingimento. É o que se espera encontrar em nós: um coração purificado, boa consciência e fé sem fingimento. Com isso, vivemos o amor verdadeiro. E ovelha não olha estranho pra outra ovelha. Pelo contrário, abraça e diz: “Que bom sermos do mesmo rebanho!” Que coisa boa para vivermos! Isso só pode ser resultado do trabalho incansável do pastor Jesus. Eu sei que não vemos isso sempre em nós mesmos e nas ovelhas que conosco caminham, muitas das quais nós amamos profundamente. Mas não nos deixemos enganar pelas aparências. Parece haver inatividade, às vezes. Mas o pastor Jesus continua seu trabalho em nós. E, se necessário, ele vai buscar suas ovelhas onde quer que elas estejam: seja numa calçada em meio a outros usuários de crack, seja num banco de igreja ou numa sacristia. Ele nos encontra e carrega. Ele é o Bom Pastor. Naquilo que falhamos, ele acerta e conserta o que estragamos, suprindo nossas falhas com uma capacidade e uma dedicação inexplicáveis. Por graça, seguimos sendo rebanho do Bom Pastor. Sigamos escutando a voz dele, rebanho de Jesus. Amém.
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12º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS O OLHAR DE JESUS PARA O SER HUMANO Lucas 14.1-14 Cesar Motta Rios Ali está Jesus comendo na casa de alguém, mais uma vez. Agora, é na residência de um fariseu importante. Ele come com gente de boa fama e com gente infame. Convidou? Ele vai. Às vezes, ele mesmo se convida, como no caso de Zaqueu. Ensinando tanto à mesa, não demorou que viessem a acusá-lo de comilão e beberrão (Mt 11.19). Mas vamos à refeição que nos está preparada para hoje. Jesus diz três coisas no trecho que lemos: Uma sobre o sábado, outra sobre o comportamento humilde, e outra sobre o convite para o jantar. Meu foco estará na primeira e na última, que exigem uma consideração atenta do contexto para melhor compreensão. O pessoal que está com Jesus para a refeição o observa, o vigia. E aparece uma pessoa que sofre com hidropsia. Essa enfermidade é, em muitos casos, perceptível. O acúmulo de líquido no corpo pode gerar alguma deformação. A gente pode se perguntar: “Colocaram essa pessoa na frente de Jesus de propósito para ver a reação dele? Para ver como ele agiria no sábado? O objetivo seria, em seguida, acusá-lo de haver trabalhado no dia do descanso?” Isso não está explícito no texto, mas a reação de Jesus pode levar a crer que sim. O versículo 3 narra que Jesus falou aos doutores da lei como que em resposta (ἀποκριθεὶς), como se houvesse já um diálogo em andamento. A presença dessa pessoa enferma parece ser, em si, uma questão, um dilema colocado. E a resposta é a explicitação do problema: “É permitido curar no sábado ou não?” Com o silêncio dos observadores, um silêncio estranho, já que uma pergunta sobre Lei para doutores da Lei deveria gerar muita conversa, Jesus propõe outra pergunta retórica: “Qual de vocês não socorreria um filho ou um boi que tivesse caído num poço em um sábado?”. Eles permanecem em silêncio. O interessante é que essa pergunta que Jesus parece tirar do nada não é completa novidade. Por incrível que pareça, já existia uma conversa sobre o que fazer se um animal caísse num buraco ou poço no sábado. Não sabemos exatamente o que pensavam aqueles fariseus. Só entendemos um pouco de seu posicionamento, por causa da pergunta retórica feita por Jesus, que espera concordância, e por causa do silêncio, que mostra que a estratégia funcionou. Mas, é interessante que o Documento de Damasco, texto escrito em hebraico e anterior a Jesus, afirma o contrário do que pareciam pensar aquelas pessoas ali reunidas: “Nenhum homem deve ajudar um animal em seu resgate no dia de Sábado. E se esse animal cair em um buraco ou canal d’água, ele não deve erguê-lo de (ou ‘preservar sua vida’) lá no Sábado” (XIII 22-23). A discussão existia, mas Jesus sabia que aqueles com os quais ele conversava não eram desse grupo mais rigoroso, que mandava deixar morrer o animal nessa situação. Diferente daquele outro grupo de judeus, eles permitiam essa atitude de socorro a animais. Jesus sabia que eram mais flexíveis nesse ponto e eles também reconheciam isso. Então, a questão é: se vocês, queridos fariseus, não são tão rigorosos nessa questão quanto outros que há por aí, não vão aceitar também o socorro a um ser humano em aflição? Nem com animais vocês são tão rigorosos! Agora, vamos à fala final. Jesus surpreende ao propor um critério diferente para definir convidados. Era natural convidar gente próxima e com condições sociais semelhantes, de modo que aquele que convidava seria, em oportunidade futura, o convidado para a casa de alguém que ele convidou. Reciprocidade! Assim, eu gasto te agradando, mas serei agradado, depois, com seus gastos. O convidado atípico ali ensina algo diferente: Convide quem não pode te convidar de volta. Convide quem fica sempre esquecido. Convide quem, no máximo, sonha em, um dia, conseguir participar como penetra em um banquete assim. (Esse tipo de coisa aparece na literatura latina, por exemplo. Estou pensando no Satirikon, especialmente.) Você não terá recompensa nenhuma dessas pessoas, mas Deus te recompensará após a ressurreição. Aqui cabe um parêntese: (Quem vem estudando a Confissão de Augsburgo às sextas não vai estranhar essa ideia de uma recompensa por uma boa obra em favor de alguém. A salvação, a vida eterna é por graça, sem obras, mas, uma vez salvos, há recompensas nesta vida e na vida vindoura pelas obras praticadas pelas pessoas. Qual a utilidade desse ensino? Não teria como responder isso agora. É ensino útil? Entendo que sim, já que é ensino claro das Escrituras, tanto no AT quanto no NT, estando isso bem reconhecido pelas Confissões de nossa Igreja.) Mas o meu ponto específico é: A conversa de Jesus tira o foco das características dos convidados (características que me beneficiariam ou me agradariam como anfitrião) e coloca como convidados qualquer tipo de gente, gente sem certas atribuições. Amplia, assim, o que era restrito a alguns para um âmbito maior: agora, quem não caberia cabe. E o que tem isso com o começo do episódio? Aquela pessoa curada é simplesmente pessoa. O termo que a introduz é algo como simplesmente “ser humano” (ἄνθρωπος). Nem se é homem ou mulher o termo em si o diz. Ou seja, nem o dado mais natural de diferenciação entre uns e outros – o sexo - importa. O que importa é que é um ser humano. Por isso também a pergunta sobre o animal que cai no poço em sábado se destaca também. Não se discute a origem dessa pessoa. Não se discute sua religiosidade. Não se discute se é dos fariseus ou se não dá a mínima para a fé. É trabalhador ou era antes de estar enfermo? É amigável? É gente honesta e decente? É o que essa pessoa? É uma pessoa. É um ser humano. E é o que Jesus vê diante dele: um ser humano carente de sua intervenção. Antecipa-se, nesse olhar de Cristo em sua vida na terra aquilo que Paulo exporá de modo completo em sua pregação sobre o Cristo em nós: “Já não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher. Pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 4.38). Jesus, que nos via indistintos por concentrar-se no fato de sermos todos humanos, pecadores e necessitados, faz-nos indistintos por sermos todos unidos a ele mesmo! Esse é o olhar de Jesus para nós e para toda a humanidade. Isso nos aquieta a alma aflita, porque ficamos seguros de que, sendo gente, com toda nossa imperfeição, somos objeto do amor de Cristo, que se interessa em nos salvar e faz isso. Isso também torna inquieta nossa alma acomodada, porque nos convida a olharmos assim também para os outros, sem perguntarmos sobre a condição dessa pessoa com relação a nós, à Igreja, à moral etc. Note-se bem que Jesus, que chamei antes de convidado atípico, é um convidado inquietante, porque nos tira, via de regra, da nossa zona de conforto, da nossa perspectiva limitada sobre a vida. O que importa, em primeiríssimo lugar, é que temos diante de nós gente. “Mas tem gente que é chata demais!” – Alguém pensa ou diz. E eu tenho que concordar. Tem gente que é chata, e eu que o digo posso ser prova viva do que é dito. Consigo ser insuportável tem vez. Tem gente que é chata. Mas podemos fazer como Jesus, não focando no adjetivo, naquilo que qualifica (que pode ser “chata”, “desagradável”, “rica”, “pobre” etc.), mas tendo como suficiente o substantivo: “gente”. Jesus ama tanto o ser humano que morreu por ele. A Igreja é o Corpo de Cristo e está nesta terra para que, por meio dela, Jesus continue amando o ser humano com todas as suas contradições e mazelas. Isso exige algum esforço e comprometimento? Sim. “Negue-se a si mesmo” – diz o Mestre. Parece haver uma luta interior. Mas é a luta que está aí para ser enfrentada. Vamos no poder do Espírito, e sejamos um povo que olha como Jesus olhou, porque o olhar de Jesus é o estandarte que vale a pena erguer todos os dias.[1] Amém. [1] Faço referência ao hino que foi cantado imediatamente antes da mensagem: Ergue-se o estandarte (Hinário Luterano, 327). |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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