Há quem sugira que ser vegano é reproduzir, ainda que indiretamente, um posicionamento inspirado em algum tipo de panteísmo ou, mais especificamente, no hinduísmo. Há, talvez, alguma imprecisão na menção do hinduísmo, já que o vegetarianismo é também bem visto por muitos integrantes dessa religião. Bom, mas meu assunto não é tanto o que pensam os panteístas ou hindus sobre o veganismo, mas a necessidade/conveniência ou não de se associar toda e qualquer decisão pelo veganismo como recorrência ou eco de uma pensamento panteísta ou hindu.
Alguém habituado aos estudos do cristianismo antigo lembrará de O Pedagogo de Clemente de Alexandria e sua aparente simpatia para com o vegetarianismo. Outro remeterá aos pitagóricos (ainda que Diógenes Laércio e Porfírio divirjam sobre o vegetarianismo ou não de Pitágoras). Eu, porém, encontrei um exemplo que me parece mais adequado para defender meu ponto de vista: Daniel na Babilônia. Todo mundo conhece a história. Daniel e três companheiros foram levados para o cativeiro babilônico. Eles seriam muito bem tratados com a mesma comida do rei e treinados durante um tempo, antes de passarem a servir o governante. Problema! Comer qualquer coisa vinda da mesa do rei implicava em sério risco ou em uma quase certeza de comer algo proibido pela Lei Mosaica. Daniel decidiu tomar uma atitude para não se tornar impuro (לֹֽא־יִתְגָּאַ֛ל) por causa de comida alguma. Obviamente, não dava para exigir uma triagem minuciosa que fizesse respeitado cada detalhe da dieta do povo de YHWH. Imagina: - Vai lá, meu amigo, e tira qualquer traço de porco. - Ok. Peixe vocês podem comer? - Sim. Não. Espera. Bagre não pode ser. - Bagre não. Por quê? - Tem couro. Não tem escamas! - Tá. E se estiver já cozido sem a pele para eu ver? - Aí, não traz. Bom, eis solução simplificadora e viável: Só traga vegetais (הַזֵּרֹעִ֛ים) e água! A complexidade da dieta mosaica surge quando se fala de bicho! Não tem legume que pode comer e legume que não pode! O mesmo para frutas, verduras e grãos. E o que é que quero com toda essa conversa? Demonstrar claramente que, até mesmo no âmbito do cânone bíblico, temos um exemplo de abstenção de produtos de origem animal por um motivo completamente diverso de qualquer religiosidade panteísta ou hindu. Em determinada situação, o vegetarianismo ou veganismo era recurso para se manter sem riscos a dieta prescrita na Torah. Assim também, é possível ser vegetariano ou vegano por diversos motivos também hoje. Conheço pessoas que seguem essas dietas alternativas por motivo de saúde. Algumas, também atualmente, o fazem por praticidade para manter a observância da Torah. Outras, por razões ecológicas. Outros ainda não comem animais por motivos éticos que se resolvem nesta vida, sem qualquer recurso ao sobrenatural. Dizem que não julgam justo causar sofrimento a um animal para seu próprio prazer. Não é mesmo preciso pensar que há algo de divino em uma vaca para perceber diferença entre ela e um pé de alface. Há cientistas que ajudam nessa perspectiva ao afirmarem que os seres humanos não são os únicos seres conscientes no mundo (veja aqui). Claro que todos esses motivos podem ser discutidos. Mas, seja bom ou ruim o argumento, essas pessoas têm pleno direito de manterem um estilo de vida diferente do da maioria sem serem tidas como ingenuamente influenciadas por qualquer religião diferente da delas. Há cristãos mais simples que poderiam ter peso na consciência pensando nisso. Bom, é possível que haja uma onda de interesse no veganismo no ocidente motivada indiretamente por algumas concepções que podem ser mapeadas até certo contato com religiões orientais? Não haveria alguma relação com o crescente interesse nessas formas mais exóticas de religiosidade? Não seria fenômeno semelhante, de alguma forma, ao das abundantes postagens no Facebook assinadas com "Osho"? Bom, não nego que certo número de interessados nesse estilo de vida possa ser ter sido influenciado por algo do tipo. Mas usar tal fato (ou essa possibilidade) para tecer afirmações sobre as origens do hábito das mais diversas pessoas já é outra coisa bem mais complicada. Eu não sou nem vegano nem vegetariano. Como vegetais, fungos, peixes, ovos e derivados de leite. Não me vejo sem comer queijo! Mas respeito a diversidade dos hábitos alimentares. Quem quer comer coma sem incomodar quem não come. E vice-versa. Quando houver vontade de trocar opiniões, que se faça isso com argumentos claros e razoáveis somente. Por fim, é preciso dizer: Não se deve usar Daniel para defender o vegetarianismo. Óbvio que não! Também não vejo como usar a Bíblia como um todo para defender o consumo ou abstenção do consumo de carne. É forçar a barra.
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A academia exige rigor na linguagem. Se você for um biólogo e disser que todos os micróbios precisam de uma temperatura menor que 60 graus centígrados para viverem, mas houver alguns deles que apreciem viver no Rio de Janeiro, seus pares vão cobrar explicações. Se você estiver escrevendo um artigo sobre os judeus no século I d.C., e disser que havia comunidades judaicas em todas as cidades romanas com alguma expressividade, seus pares vão pedir evidências. Academicamente, seu discurso não terá sido verdadeiro por um micróbio ou por uma cidade longínqua! Mas os Evangelhos não foram escritos para passarem por esse tipo de avaliação. Trata-se de outro tipo de discurso. Há alguns anos, em um grupo de estudos bíblicos, líamos Marcos 2.1-12, aquele episódio do paralítico descido por uma abertura no telhado. Depois de discutirmos sobre a contenda de Jesus com os escribas ali presentes, sobre o significado de ‘filho do homem’, e coisas assim, alguém reparou no versículo 12: “de modo que todos ficaram maravilhados e glorificaram a Deus dizendo: Nunca vimos coisa assim!”. A pessoa disse: “Então, quer dizer que, depois da cura, até aqueles escribas glorificaram a Deus!” Eu parei um tempo. Suspirei e respondi que era possível, mas que talvez não fosse assim. “Mas como está no grego? Não é ‘todos’ também?” - Solicitou. Sim, em princípio, em grego, πάντας indica a mesma coisa que “todos” em português. “Então foram todos!” – Afirmou ainda mais convicto meu amigo. Bom, mas, imagine que você foi a uma festa, e as pessoas sorriam e conversavam animadas. No dia seguinte, alguém pergunta como foi. Você responderá: “Muito bom. Estavam todos muito animados.” Contudo, havia uma ou duas pessoas meio deprimidas por ali. Mesmo assim, ninguém deveria avaliar sua fala com rigor acadêmico. No meio acadêmico, “todos” tem que indicar a totalidade. Mas, na vida comum, usamos “todos” como modo de indicar que algo era geral, abarcando a maioria. Olhando por cima, realmente, todos na festa estavam muito animados. Marcos pode simplesmente estar dizendo algo assim, como nós fazemos. Depois que expliquei esse meu ponto de vista, alguns me olharam um tanto preocupados. Eu pude ver que se questionavam a respeito dos limites do nosso conservadorismo. Será que o Cesar não os estaria ultrapassando? A Bíblia não é precisa? Não seria sempre verdadeira? Como a conversa toda surgiu inesperadamente, se bem me lembro, não tentei realmente comprovar minha perspectiva. Eu deveria ter prosseguido mais um pouco: O Evangelho de Marcos é preciso na medida da comunicação humana. Isto é, ele é escrito para comunicar algo e é precisamente isso que faz, usando linguagem comum para gente comum ler. Não há nada de acadêmico em vista. Nós é que tratamos o texto como acadêmicos, e exigimos dele um comportamento concorde com nosso gosto. E eu deveria ter pedido que me acompanhassem até alguma esquina, esse ponto da caminhada em que a gente tem uma bela oportunidade de ajudar quem está ao nosso lado a olhar em outra direção. E uma boa esquina seria 1 Timóteo 6.10: Ῥίζα γὰρ πάντων τῶν κακῶν ἐστὶν ἡ φιλαργυρία· Pois o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Nessa esquina, eu diria: Bem, se você quer precisão acadêmica no discurso da Bíblia, tem agora a obrigação custosa de me provar exegeticamente que todos os males implicados no caso de Davi com Bate-Seba e Urias se originam no amor ao dinheiro. Aliás, terá que me acompanhar ao Éden e reinterpretar o caso de Adão e Eva com a Serpente também. De minha parte, caso você não tenha êxito, estarei tranquilo e pronto para voltar a conversar sobre meu ponto de vista: Certamente, em 1 Timóteo e, possivelmente, em Marcos, o “todos” que lemos é uma forma de expressar enfaticamente o grande alcance do fenômeno... Sim, a coisa é mais complicada do que aquela leitura rasa que eu mesmo já fiz nos primórdios de minha juventude. Linguagem humana não é algo estável como matemática. P.S. E a foto que ilustra esta postagem? Que relação tem com o texto? Bem, na verdade, é a expressão corporal que eu espero de muitos dos leitores diante desse me argumento. E gostaria de dizer que os entendo e respeito. É a respeito da compreensão sobre as Escrituras que o nome de Karl Barth é mais evocado em discussões teológicas elementares. Isso se dá certamente pelo distanciamento do teólogo com relação às afirmações categóricas da ortodoxia a respeito da inspiração verbal. Barth não pode ser tido como conservador nesse aspecto, por não afirmar, no sentido tradicional, que a Bíblia é a Palavra de Deus. Por outro lado, não pode ser contado no conjunto dos liberais por afirmar, a seu modo, que a Bíblia é a Palavra de Deus. Essas duas afirmações, ou melhor, a negação e a afirmação expostas no parágrafo anterior tornam perceptível a complexidade da questão em Barth. No que segue deste texto, exponho de modo breve o pensamento do teólogo de modo a esclarecer minimamente o que ele entende. Barth entende ser necessário distinguir entre revelação e testemunho da revelação. A Bíblia seria uma forma como a revelação chega até nós, que não somos profetas ou apóstolos. Esses sim eram os recebedores da revelação em si. Ou seja, ainda que se diferencie da revelação por excelência, a Bíblia se constitui como o testemunho pelo qual temos acesso a essa revelação, de tal forma que, para nós, Bíblia e revelação estão estritamente unidas (RUNIA, 1962, p. 18-19). Pois bem, isso significa que o objeto Bíblia em si não é revelação ou Palavra de Deus por si mesmo. Ninguém pode gabar-se de ter a Palavra de Deus guardada em sua estante com capa de couro. A revelação nunca é posse de seres humanos, mas permanece como revelação de Deus. Também não é a apreciação subjetiva que uma pessoa ou comunidade faz da Escritura que a torna Palavra de Deus. Ela se torna Palavra de Deus repetidas vezes por ação da liberdade da graça do próprio Deus, que faz com que o testemunho cumpra seu objetivo de tornar a revelação uma realidade para o leitor/ouvinte, de modo que, por meio das palavras, essa pessoa também veja e ouça o que os que testemunharam viram e ouviram. A Palavra de Deus não é objeto, mas um evento. E quando esse evento tem lugar na realidade de alguém, para esse tal, a Bíblia é a revelação e a Palavra de Deus. Fizeram-se para ela uma só coisa (RUNIA, 1962, p. 22). É interessante notar que, no pensamento de Barth, Palavra de Deus envolve a segunda pessoa da Trindade, as Escrituras e a pregação, e que o fato de envolver uma pessoa faz com que não se trate de objeto passivo simplesmente. Melhor dito: esse fato faz com que a Palavra de Deus nunca se trate de objeto simplesmente. "A personificação do conceito de Palavra de Deus, que não podemos evitar quando lembramos que Jesus Cristo é a Palavra de Deus, não significa “deverbalização”. Mas naturalmente implica em atenção para o fato de que ela é uma pessoa em vez de uma coisa ou objeto, ainda que e tão longe quanto ela é palavra, palavra da Escritura e palavra da Pregação." (BARTH, 1999, p. 138.) A diferenciação entre revelação e testemunho da revelação, texto bíblico e Palavra de Deus, tem outras repercussões. Barth concebe a Bíblia como conjunto de textos completamente humano. O caráter divino implicado nas Escrituras não anularia nenhuma de suas características estritamente humanas, inclusive a falibilidade de seus escritores (RUNIA, 1962, p. 58-59). Ademais, diferente da abordagem conservadora, que pretende ver as narrativas bíblicas como historicamente verídicas, Barth sugere que os escritores bíblicos não distinguiam história de lendas ou sagas como os modernos fazem. De certa forma, ele parece se aproximar da abordagem histórico-crítica. Contudo, sua reação à possibilidade de textos não historicamente verdadeiros é diferente. Em vez de propor uma assepsia do texto, Barth entende que nossa reação não deve ser a de um tribunal em busca da verdade factual. Pelo contrário, devemos nos colocar diante desses textos crendo na Palavra de Deus, inclusive quando ela se apresenta na forma de uma saga ou lenda (RUNIA, 1962, p. 59-60). Convém esclarecer que Karl Barth não milita contra a atividade da alta crítica. Ele não diz que se trata de algo maléfico em si. Propõe, contudo, que se trata de um passo somente, um começo de abordagem, sendo imprescindível passar ao passo subsequente da interpretação do que o texto comunica. Destrinchar a forma ou a história do texto sem apreender sua mensagem não é propriamente fazer exegese (RUNIA, 1962, p. 63). É emblemática a querela entre Barth e Bultmann nesse sentido. Bultmann criticara Barth por seu conservadorismo, que o havia impedido abordar a carta aos Romanos de modo crítico. Afinal, diz o demitologizador, outros espíritos se faziam ouvir no texto assim como, também, o Espírito de Cristo. Enquanto a primeira reação de teólogos conservadores poderia ser uma negação da existência dessas outras vozes no texto paulino, Barth faz o contrário. Segundo ele, o texto inteiro é formado por vozes desses outros espíritos! Todas as palavras na carta são dos “outros espíritos” que Bultmann chamaria de judaicas, cristãs populares ou helenísticas. Contudo, o que o colega não entendia bem, é que todas essas palavras, toda essa aparentemente mera humanidade do texto, deveriam ser entendidas em sua relação com o verdadeiro assunto, que é o Espírito de Cristo (RUNIA, 1962, p. 64). Entenda-se que o que procurei fazer foi uma apresentação do pensamento de Barth, que não coincide exatamente com minha perspectiva. Então, por que empreender o esforço se não há plena concordância? Porque Barth é um dos teólogos mais importantes do século XX, e ninguém deveria discutir a respeito da inspiração das Escrituras e outros temas semelhantes sem considerar seu pensamento. Além disso, encontro em Barth uma via interessante e instigante, que não se enquadra no âmbito da teologia liberal (ainda que, erroneamente, alguns conservadores o tratem como teólogo liberal), nem no âmbito do protestantismo mais conservador. ----- BARTH, Karl. Church Dogmatics. Volume I: The Doctrine of the Word of God. Part I. Translated by G. W. Bromiley. Edinburgh: T&T Clark, 1999. RUNIA, Klaas. Karl Barth's doctrine of Holy Scripture. Grand Rapids : W. B. Eerdmans, 1962. O que está no olho de cada um em Mateus 7.4-5? Já não sei se usaria esse tipo de ilustração2/13/2017 ἢ πῶς ἐρεῖς τῷ ἀδελφῷ σου· ἄφες ἐκβάλω τὸ κάρφος ἐκ τοῦ ὀφθαλμοῦ σου, καὶ ἰδοὺ ἡ δοκὸς ἐν τῷ ὀφθαλμῷ σοῦ; ὑποκριτά, ἔκβαλε πρῶτον ἐκ τοῦ ὀφθαλμοῦ σοῦ τὴν δοκόν, καὶ τότε διαβλέψεις ἐκβαλεῖν τὸ κάρφος ἐκ τοῦ ὀφθαλμοῦ τοῦ ἀδελφοῦ σου.
Ou como dirás a teu irmão: "Deixa que eu tire o a farpa do teu olho", com essa a viga no teu olho? Hipócrita, tira primeiro a viga do teu olho, e, então, enxergarás bem para tirar a farpa do olho do teu irmão. (Mateus 7.4-5) O que vou dizer é bem elementar, mas confesso que não me ocorreu nas outras vezes que li o Evangelho de Mateus. 1) Se prestarmos atenção, perceberemos que estamos mesmo escutando a conversa de um carpinteiro. Não se trata de pedrinha e montanha, carrapato e elefante. O negócio é com uma pequena lasca de madeira (κάρφος), talvez, até mesmo um gravetinho, e uma viga de sustentação (δοκόν), utilizada em edificações. Que o termo δοκός é praticamente um termo técnico da área da edificação fica claro por diversas ocorrências como a seguinte: δοκοὶ οἴκων ἡμῶν κέδροι (Cântico dos Cânticos 1.17, tradução grega), isto é, “as vigas da nossas moradas são cedros”. 2) Agora, o problema. Como é isso de ter uma viga de madeira maciça no olho? Até então, eu sempre entendia que se tratava de uma linguagem hiperbólica usada propositadamente por Jesus, mais ou menos como ele faz com o camelo e o buraco da agulha em outra ocasião. É bem possível ler assim. Mas me ocorreu outra obviedade frequentemente esquecida. Se você coloca uma farpa de madeira bem perto do próprio olho, deixando-a praticamente na pupila, você a enxerga como se fosse grande em comparação com as coisas do ambiente. Um fragmento de madeira no próprio olho impede sua visão como se fosse uma viga a uns poucos metros de distância. Assim como uma viga a um passo de você em um estádio ou teatro faz com que você perca parte de um espetáculo (e isso costuma gerar reclamações!), uma farpa no olho impede o uso adequado da visão. Então, não será possível que Jesus estivesse falando de duas pessoas com farpas nos olhos simplesmente? A farpa no olho alheio é farpa. A farpa no próprio olho é [como] uma viga! Você precisa livrar-se da farpa do próprio olho para retirar com precisão a farpa do próximo. 3) Aqui, há outra coisa não tão comentada: A fala de Jesus não parece exatamente adequada para o uso que frequentemente se faz dela. Quero dizer que não serve para negar a possibilidade da correção entre as pessoas. Serviria se ele parasse ao falar da viga pela primeira vez. Mas ele vai adiante. Propõe a retirada da própria viga (farpa?) para a posterior retirada da farpa do próximo. Há um aperfeiçoamento de si com vistas ao aperfeiçoamento do próximo, e não simplesmente a proposta de um isolacionismo ou de um pessimismo absoluto a respeito das relações. Por tudo isso, acho que eu NÃO utilizaria a imagem que ilustra este texto para falar do ensino de Jesus. Ao menos, não a utilizaria sem ressalvas. Um amigo levantou a questão sobre a origem do costume de se libertar um prisioneiro por ocasião da Páscoa. Não posso deixar de tentar comentar algo a respeito. Mas já adianto que a resposta não deve satisfazer a curiosidade do amigo ou de qualquer outra pessoa. Talvez, possa complicar ainda mais algo que parecia simples. Antes, vejamos o que dizem os Evangelhos: Mateus: Por ocasião da festa, o governante tinha o costume de libertar para a multidão um prisioneiro, aquele que quisessem. (27.15) Marcos: Por ocasião da festa, [Pilatos] libertava um prisioneiro, aquele que eles requisitassem. (15.6) Lucas: - João: "Há o costume entre vós para que eu liberte um na Páscoa." (18.39) A primeira dificuldade é entender se o costume é dos judeus ou de Pilatos. Mateus e Marcos não afirmam nem de longe que se tratava de um costume judaico. Era uma ação costumeira do governante ou, mais precisamente, daquele governante, Pilatos. É até significativo que Mateus torne o sujeito explícito, enquanto, em Marcos, estava implícito. (Se você está lendo a Almeida Revista e Atualizada, não perceberá isso. Ali, o imperfeito grego é transformado em uma espécie de verbo impessoal: "era costume". Entendo que se trata de um verbo em terceira pessoa bem comum, cujo sujeito é "Pilatos", nome com o qual se encerra a frase anterior no texto em grego.) Mateus não só afirma que o governante soltava um preso, mas que o governante tinha o costume de soltar um preso. Quase parece que ele, evangelista judeu, dizia a seus leitores judeus: "Era coisa dele!". O quarto Evangelho, por sua vez, coloca na boca de Pilatos as palavras de João 18.39. Ele diz que há um costume entre os judeus para que ele liberte um prisioneiro. Lucas, que poderia explicar um pouco melhor a coisa, se cala. E agora? Os leitores costumam ficar entre duas possíveis atitudes: 1) procurar evidências de um costume judaico semelhante, ou 2) procurar evidências de um costume romano semelhante. Outra opção será, para muitos, 3) negar a historicidade do costume e entendê-lo como mera invenção dos evangelistas. (Para ser justo, é preciso dizer que a ideia de "invenção" não é necessariamente pejorativa. Poder-se-ia entender o caso como uma invenção literária bastante criativa com o objetivo de ressaltar uma verdade a respeito de Jesus.) Essa última opção não me parece necessariamente a mais plausível. E não digo isso por uma questão de fé. Acontece que tendo a concordar com os que pensam em uma produção completamente isolada do Quarto Evangelho. O autor não teria sequer tido contato com o Evangelho de Marcos para começar a escrever seu texto. (Na verdade, quem propõe isso de modo muito claro é Peder Borgen, mas explicar detalhadamente a questão não cabe agora.) Por que cargas d'água esse tal "costume" apareceria inventado tanto em João quanto em Marcos (e, por conseguinte, em Mateus)? E por que apareceria inventado de forma não idêntica, o que diminui ainda mais a possibilidade de uma influência entre os textos nesse ponto? Entendo que até mesmo os nada conservadores devem admitir a possibilidade de historicidade do "costume", ao menos para julgarem de modo menos apressado a plausibilidade da hipótese (muito precária, confesso) que apresento aqui. A busca por evidências históricas sobre o perdão pascal fora dos Evangelhos não é frutuosa. Vou ser claro: Não há, até onde eu saiba, relatos dando conta de tal costume nem entre romanos, nem entre judeus. Então, Marcos e Mateus estariam errados ao dizerem que o costume era dos romanos, e João também ao dizer que o costume era dos judeus? Vamos com calma! Marcos e Mateus NÃO dizem que o costume era dos romanos. Eles só afirmam que Pilatos costumava fazer aquilo. Pilatos era romano. Sim. Mas, veja bem, alguém pode dizer que eu, Cesar, costumo comer cogumelos. Contudo, quem escuta isso não pode afirmar que foi dito que os belo-horizontinos têm costume de comer cogumelos. Quanto à informação em João, é preciso lembrar que é colocada na boca de Pilatos! Não é o narrador que apresenta um fato. É, antes, uma fala do romano, que pode ter (como é costume) intenções além da informação. Avalie, então, a seguinte hipótese: Pilatos (ou alguém antes dele) pode ter instaurado essa prática de modo individual, como estratégia em sua relação com o povo judeu que ele governava na Judeia. Ele estabeleceria o costume ou hábito "entre os judeus da Judeia" para ganhar simpatia dos judeus mais poderosos, que poderiam dirigir, por sua vez, o pedido de soltura gritado pelos demais, e, assim, beneficiar quem lhes aprouvesse. Ganham os judeus influentes, que poderiam incitar ou diminuir a possibilidade de revoltas. Ganha Pilatos a simpatia do povo como um todo e a camaradagem dos judeus influentes. Pois bem, em seguida, Pilatos expõe essa ação dele mesmo como um hábito "entre vós", de modo a fazer parecer que, ao executar algo de sua própria inventividade manipuladora, está respeitando algo próprio dos governados. O dominante acaba criando costumes para os dominados. De certa forma, governar os judeus exigia habilidades e maleabilidades peculiares. Pilatos já sabia disso por experiência. Portanto, não é impensável que se criassem práticas peculiares para aquele contexto, já que ações e negociações peculiares eram frequentemente necessárias ali. Nesse sentido é que entendo que não é preciso buscar evidências de tal costume entre os romanos nem em fontes judaicas necessariamente. O fato de ser costume ali não implica em que seja necessariamente costume romano ou judaico. Pode ser costume, em Jerusalém, entre o povo dali (não os judeus como um todo) e o governante dali (não os romanos em geral). E por que não sabemos isso sobre Pilatos por outras fontes? Porque sabemos pouco sobre Pilatos por outras fontes! Há uma quantidade absurda de coisas que desconhecemos a seu respeito. Enfim, provisoriamente, é o que tenho pensado. É óbvio o caráter especulativo dessa construção hipotética que exponho. Eu não a apresentaria como algo comprovável. Alguém poderia propor que Pilatos podia mesmo achar que, ao fazer aquilo, no caso de ter sido algo iniciado por antecessor, estava respeitando um costume dos judeus! E essa hipótese, como a minha, não poderia ser refutada sem novos dados. Estamos no reino das elucubrações. Admitamos! Mas alguns movimentos aqui realizados me parecem importantes para demonstrar que o fato de pouco sabermos não exclui necessariamente a possibilidade de historicidade. Nossa ignorância sobre o contexto (que deveria ser admitida!) não nos permite impor ao texto algo que não lhe é necessariamente próprio. Pelo menos, não deveríamos fazer isso como se fosse verdade absoluta. O que quero dizer é: Se você entende que há invenção por parte dos Evangelistas nesse ponto, deve perceber que esse seu entendimento é hipotético também. Alguém sugere outro caminho para a reflexão? Abaixo, ofereço um arquivo no formato PDF com o texto grego da carta de Inácio de Antioquia aos Efésios, junto com minha tradução e notas, que explicam decisões tradutórias pontuais. O texto é importantíssimo. Provém dos inícios do século II d.C.. Após o arquivo, segue o texto da tradução (sem o original e as notas). Obviamente, se você não tem muita pressa, sugiro a versão do arquivo. Não se assuste com o número de páginas. Fiz a formatação pensando em tornar o texto bem legível, inclusive em telas pequenas. ![]()
CARTA DE INÁCIO DE ANTIOQUIA AOS CRISTÃOS EM ÉFESO
Tradução de Cesar Motta Rios [Inácio, também chamado Theoforo, àquela que é bendita em grandeza, plenitude de Deus Pai, àquela que está predestinada desde antes dos séculos para existir para sempre com vistas a uma glória permanente e irremovível, unida e escolhida no sofrimento verdadeiro, na vontade do Pai e Jesus Cristo, nosso Deus, à igreja que é digna de ser chamada bem-aventurada, a qual está em Éfeso da Ásia. Saudações intensas em Jesus Cristo e com um regozijo sem mácula.] [Eu escrevo] depois de ter recebido com aprovação [a notícia do] teu nome muito amado em Deus; nome que adquiriste com uma natureza justa conforme a fé e o amor [que há] em Jesus Cristo, nosso Senhor. Agindo como imitadores de Deus, já tendo vos reavivado no sangue de Deus, completaste de modo cabal a obra que vos é congênita. Pois, quando vós ouvistes que eu havia sido levado preso da Síria por causa do [nosso] nome e esperança comuns, esperando, pela vossa oração, chegar a enfrentar as feras em Roma, para que, por conseguir isso, possa ser discípulo, vós cuidastes diligentemente de me ver. Então, no nome de Deus, eu recebi o vosso grupo numeroso na pessoa Onésimo, o qual é inenarrável no amor, vosso bispo. Por Jesus Cristo, eu suplico que vós o ameis, e que todos vós sejais parecidos com ele. Com efeito, bendito é aquele que concedeu a vós, que sois dignos, a graça de possuirdes tal bispo. A respeito de meu conservo Burros, o qual, conforme Deus, é o vosso diácono em tudo bendito, peço que ele permaneça, para honra de vós mesmos e do bispo. E também Krono, digno de Deus e de vós, o qual recebi como mostra do amor que vem de vós. Ele me fez descansar com relação a todas as coisas, como também a ele o Pai de Jesus Cristo há de reanimar, juntamente com Onésimo, Burros, Euplo e Fronto, por meio dos quais eu conheci a todos vós no que concerne ao [vosso] amor. Que eu possa sempre ter contentamento em vós, caso seja digno. Então, é adequado, de todas as maneiras, glorificar a Jesus Cristo, aquele que vos glorificou, para que, já organizados com uma só subordinação, sujeitando-vos ao bispo e ao presbitério, em tudo sejais santificados. Não vos ordeno como se eu fosse alguém [para tanto]. Pois, embora esteja acorrentado no Nome, ainda não estou completamente aperfeiçoado em Jesus Cristo. Pois, agora, estou começando a aprender, e vos dirijo a palavra como meus condiscípulos. Pois era necessário que eu fosse ungido por vós com fé, instrução, perseverança e longanimidade. Mas, como o amor não me deixa ficar calado a respeito de vós, por isso me antecipei em vos exortar a que corrais juntos no pensamento de Deus. Pois também Jesus Cristo, nosso viver indivisível, é o pensamento do Pai. Assim também os bispos, que foram estabelecidos pelas extremidades [da terra], estão no pensamento de Jesus Cristo. Por conseguinte, é adequado para vós que corrais juntos no pensamento do bispo. Isso também fazeis. Porque o vosso presbitério digno de ser nomeado, digno de Deus, está bem ajustado ao bispo, como cordas à cítara. Por isso, na vossa concordância de mente e no vosso amor harmonioso, Jesus Cristo é cantado! E de indivíduos vos tornais um coro, para que, sendo harmoniosos na concordância de mente, tendo recebido o arranjo de Deus, canteis a uma só voz ao Pai por meio de Jesus Cristo, para que vos escute e reconheça, por meio de vosso bem agir, que sois membros de seu Filho. Então, é vantajoso que estejais em imaculada unidade, para que sempre tenhais comunhão com Deus. Pois se eu, em pouco tempo, tive com vosso bispo tal intimidade, que não é humana, mas espiritual, quanto mais eu considero bem-aventurados a vós que fostes assim mesclados [a ele], como a Igreja a Jesus Cristo, e como Jesus Cristo ao Pai, para que todas as coisas em unidade sejam harmoniosas! Ninguém se engane: Caso alguém não esteja dentro do altar, falta-lhe o pão de Deus. Pois se a oração de um ou de um segundo tem tal poder, quanto mais a do bispo e de toda a igreja? Então, aquele que não se reúne com os demais, esse já age com arrogância e condenou a si mesmo. Pois está escrito: “Deus se opõe aos arrogantes”. Então, esforcemo-nos diligentemente para não nos opormos ao bispo, para que sejamos submissos a Deus. E quanto mais alguém vir o bispo mantendo-se em silêncio, mais deve temê-lo. Pois todo aquele que o senhor da casa enviou para a própria administração da casa, é preciso que nós o recebamos como [se fosse] aquele que o enviou. Então, é óbvio que é preciso contemplar o bispo como o próprio Senhor. De fato, o próprio Onésimo louvava veementemente a vossa boa ordem em Deus, [afirmando] que todos viveis conforme a verdade, e que nenhuma dissidência tem morada entre vós, mas que nem ouvis a ninguém além de quem fala com verdade a respeito de Jesus Cristo. Pois alguns, com dolo perverso, têm o costume de portar o nome [de Jesus], mas praticando certas coisas indignas de Deus. É preciso que vós os eviteis como a feras, pois são cães raivosos que mordem sem aviso. É preciso que vós vos guardeis deles, que são de difícil tratamento. Há um só médico, que é ao mesmo tempo corpóreo e espiritual, gerado e não gerado, Deus no ser humano, vida verdadeira na morte, vindo tanto de Maria quanto de Deus, primeiro, sofredor, e, logo, livre de sofrimentos, Jesus Cristo, nosso Senhor. Então, que ninguém vos engane, como de fato não sois enganados, sendo inteiramente de Deus. Pois, desde que não se fixou no meio de vós nenhuma contenda capaz de vos causar sofrimento, assim viveis conforme Deus. Sou vosso humilde servo e coloco-me como sacrifício de vós, Efésios, igreja de grande fama pelos séculos. Os carnais não podem praticar as coisas espirituais, nem os espirituais, as coisas carnais, assim como a fé não pode praticar as coisas próprias da incredulidade, nem a incredulidade, as coisas próprias da fé. Até mesmo as coisas que praticais segundo a carne são espirituais, visto que tudo fazeis em Jesus Cristo. E eu soube de alguns que passaram por ali, trazendo ensino ruim. Não deixastes que eles semeassem em vós, tapando os ouvidos para não receberdes a semeadura que deles provinha, visto que sois pedras do templo do pai, preparadas para a edificação de Deus Pai, levados para as alturas por meio do mecanismo de Jesus Cristo, o qual é a cruz, usando como corda o Espírito Santo. A vossa fé é vosso guia para cima, enquanto o amor é o caminho que eleva a Deus. Então, sois também todos unidos no caminho, portadores de Deus, portadores do templo, portadores de Cristo, portadores do santo, em tudo adornados nos mandamentos de Jesus Cristo. Alegrando-me também convosco, julguei digno por essas coisas escrever para vos falar e congratular, porque, ao longo da vida como seres humanos, nada amais a não ser a Deus somente. Orai incessantemente em favor das outras pessoas, pois há para eles esperança de arrependimento, para que aconteça de encontrarem a Deus. Deixai, então, que sejam como discípulos vossos, ainda que a partir das obras. Diante da ira deles, vós sois mansos. Diante da arrogância deles, tendes espírito humilde. Diante de suas blasfêmias, vós tendes as orações. Diante da errância deles, sois firmes na fé. Diante da selvageria deles, vós sois civilizados, não tratando de imitá-los. Sejamos achados como irmãos deles pela gentileza. E tratemos de ser imitadores do Senhor (Quem foi mais injustiçado? Quem foi mais usurpado? E rejeitado?), para que nenhuma planta do diabo seja encontrada entre vós, mas, com toda pureza e prudência, permaneçais em Jesus Cristo, tanto espiritualmente quanto corporalmente. São os últimos tempos. Resta que fiquemos envergonhados; que temamos a longanimidade de Deus, para que não nos seja para julgamento. Com efeito, ou temamos a ira vindoura ou amemos a graça que se fez presente. Dessas duas coisas, uma [se faz]: somente sermos achados em Jesus Cristo para o viver verdadeiro. Nada seja considerado adequado para vós além dEle, em quem levo em redor as correntes, pérolas espirituais, com as quais me possa acontecer de ressuscitar por vossa oração. Dela me possa acontecer de sempre ser participante, para que eu seja achado na herança dos cristãos efésios, os quais também com os apóstolos sempre concordaram no poder de Jesus Cristo. Eu sei quem sou e a quem escrevo. Eu, condenado. Vós, tratados com misericórdia. Eu, sob perigo. Vós, em estabilidade. Sois caminho dos que são tomados para Deus, companheiros iniciados por Paulo, o santificado, já tendo dado testemunho, digno de ser chamado bem-aventurado, em cujas pegadas eu possa ser encontrado, quando eu chegar a Deus, o mesmo Paulo que em toda epístola se lembra de vós em Cristo Jesus. Então, cuidai de vos reunirdes com maior frequência para a ação de graça de Deus e para a glória. Pois, quando estais no mesmo lugar frequentemente, são demolidos os poderes de Satanás, e se desfaz a destruição dele na vossa unidade de entendimento da fé. Nada é melhor que a paz, com a qual é abolida toda guerra das regiões celestes e terrestres. De tais coisas, nenhuma vos passa despercebida, caso tenhais completamente para com Jesus Cristo a fé e o amor, que são princípio da vida e fim. O princípio, por um lado, é a fé. O fim, o amor. A conformação dos dois em unidade é Deus, e todas as outras coisas relacionadas com a nobreza moral são consequentes. Ninguém que professa a fé peca, nem quem já adquiriu o amor odeia. A árvore se revela a partir do seu fruto. Assim também os que professam ser de Cristo serão vistos por aquilo que praticam. Pois, agora, a obra não é de confissão [de fé], mas se a pessoa se encontra no poder da fé até o fim. Melhor é calar e ser do que, falando, não ser. É bom o ensinar, caso aquele que fala faça. Um, então, é o Mestre, o qual fala e é. E as coisas que fez em silêncio são dignas do Pai. Aquele que já tomou para si a palavra de Jesus pode verdadeiramente escutar também o Seu silêncio, para que seja perfeito, de modo que aja por meio das coisas que ele fala, e aprenda por meio das coisas que cala. Nada passa despercebido ao Senhor, mas até as nossas coisas secretas estão perto para Ele. Então, façamos tudo no entendimento de que Ele habita em nós, para que sejamos templos dEle e Ele, em nós, nosso Deus, o que Ele é de fato e como se revelará diante de nosso rosto. Com base nisso, de modo justo, o amemos. Não vos enganeis, meus irmãos, os destruidores de lares não herdarão o reino de Deus. Ora, se os que fazem essas coisas segundo a carne morrem, quanto mais, caso destruam a fé de Deus, pela qual Jesus Cristo foi crucificado, com um ensino ruim? Tal pessoa, que se tornou impura, se retirará para o fogo que não se apaga, e igualmente também aquele que lhe dá ouvidos. Por isso, o Senhor recebeu perfume sobre sua cabeça, para que exalasse incorruptibilidade para a Igreja. Não sejais ungidos com o mau cheiro do ensino do governante deste século! Que ele não vos mantenha presos fora do viver que vos é proposto! E por que nem todos nos tornamos prudentes, recebendo o conhecimento de Deus, o qual é Jesus Cristo? Por que perecemos de modo tolo, ignorando o dom gracioso, que o Senhor verdadeiramente já enviou? Meu espírito é um humilde servo da cruz, a qual é escândalo para os descrentes, mas, para nós, salvação e vida eterna! Onde está o sábio? Onde está o opositor? Onde, a arrogância dos que se dizem inteligentes? Pois nosso Deus, Jesus, o Cristo, foi formado sob Maria conforme a economia de Deus, por um lado, da descendência de Davi, e, por outro, do Espírito Santo. Ele foi gerado e batizado, para que, pelo sofrimento, purificasse a água. E passaram despercebidas ao governante deste século a virgindade de Maria e o parto, assim como, igualmente, a morte do Senhor. Três mistérios gritantes, os quais Deus foram realizados no silêncio de Deus. Como, então, [esses mistérios] foram revelados nos séculos? Uma estrela no céu brilhou mais que todas as estrelas. Sua luz era indizível. Sua novidade produzia estranhamento. E todas as outras estrelas - junto com o Sol e a Lua - se tornaram um coro (de dança) para aquela estrela. E ela estava fazendo sobressair seu brilho acima de todas. Era perturbador: De onde vinha aquela novidade dessemelhante delas? Assim, era desfeita toda mágica, e destruídas as algemas da maldade. A ignorância era jogada por terra. O antigo reino perecia enquanto Deus se revelava humanamente para novidade de vida eterna. Tinha início o que já havia sido preparado da parte de Deus. A partir de então, todas as coisas se movimentavam conjuntamente com o propósito de se operar a aniquilação da morte. Caso Jesus Cristo, com vossa oração, me considere digno e seja [sua] vontade, no segundo pequeno papiro, que estou para vos escrever, vos exporei – o que já comecei – a administração com respeito ao novo ser humano, Jesus Cristo, em sua fé, em seu amor, em seu sofrimento e ressurreição. Sobretudo, caso o Senhor me revele o seguinte: Que todos vós, indivíduo por indivíduo em consentimento comum, na graça proveniente do nome, vos ajuntais na única fé e em Jesus Cristo, o qual é, segundo a carne, da raça de Davi, filho do homem e filho de Deus, com vistas a obedecerdes ao bispo e ao presbitério com mente constante e atenta, partindo um pão, o qual é remédio da imortalidade, antídoto para não morrer, mas viver em Jesus Cristo para sempre. Eu sou alguém que oferece a vida em troca da vossa, também daqueles que enviastes para a honra de Deus até Esmirna, de onde também vos escrevo, agradecendo ao Senhor, amando a Policarpo como também a vós. Lembrai de mim, como também de vós se lembra Jesus Cristo. Orai pela Igreja que está na Síria, de onde parto preso para Roma, sendo o último dos que lá creem, fui, por assim dizer, considerado digno de ser achado para honra de Deus. Despeço-me desejando que estejais bem, em Deus Pai e em Jesus Cristo, nossa esperança comum. ποιήσατε οὖν καρπὸν ἄξιον τῆς μετανοίας. καὶ μὴ δόξητε λέγειν ἐν ἑαυτοῖς· πατέρα ἔχομεν τὸν Ἀβραάμ. λέγω γὰρ ὑμῖν ὅτι δύναται ὁ θεὸς ἐκ τῶν λίθων τούτων ἐγεῖραι τέκνα τῷ Ἀβραάμ. Produzi, pois, fruto digno de arrependimento. E nem penseis em dizer em vós mesmos: “Temos Abraão por pai”. Porque vos digo que Deus pode levantar filhos para Abraão a partir destas pedras! (Mateus 3.8-9) Essas são palavras duras que João Batista dirige a fariseus e saduceus que haviam se achegado a ele. A confiança na familiaridade genética com Abraão não valia tudo aquilo que pensavam. Eles precisavam saber que sua relação com Deus não dependia simplesmente disso. Esse discurso de João Batista pode parecer inusitado. É um judeu dizendo a judeus que a ascendência judaica não era tão importante quanto pensavam? Seria concebível tal evento? Seria possível João Batista ter dito isso ou seria necessariamente invenção dos autores cristãos judeus para antecipar uma abertura radical para os gentios? Se não quero, não suporto ou não posso pensar no caso de uma invenção, preciso afirmar que se trata de algo completamente atípico, justificável pelo papel profético do filho de Isabel? Pois bem, apesar do que se costuma pensar, esse tipo de afirmação não existe somente no âmbito do cânone cristão. Também na primeira metade do século I d.C., Fílon de Alexandria, exegeta judeu de grande renome, que nada tinha de cristão, escrevia: “Com efeito, que haja para nós somente uma relação de familiaridade e um só símbolo de amizade: a disposição de servir a Deus e o falar e agir sempre em favor da piedade. Já essas ditas relações de parentesco, oriundas dos progenitores a partir do sangue, bem como aquelas relações de familiaridade que se dão conforme casamentos mistos ou por algumas outras causas de modo semelhante, sejam rejeitadas, se não se dirigem para o mesmo fim, a honra de Deus, que é o elo indissolúvel de toda a benevolência unificadora.” Spec. 1.317 Perceba que ele questiona duramente a relação sanguínea como elo primordial do povo de Deus, entendendo, para usar linguagem mais ou menos bíblica, que o fruto da árvore é importante para a definição do tipo de árvore que ela é, não valendo simplesmente um atestado genético vindo do viveiro de mudas. -------------------------------- P.S. Se algum leitor eventual leitor acadêmico pretender usar essa associação em algum trabalho, saiba que, para citação formal, pode recorrer à minha tese (encontrada tanto na biblioteca digital da UFMG quanto no meu perfil no Academia.edu). Isso está razoavelmente desenvolvido nas páginas 117 e 118. Ἠκούσατε ὅτι ἐρρέθη· ἀγαπήσεις τὸν πλησίον σου καὶ μισήσεις τὸν ἐχθρόν σου.
Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo E ODIARÁS TEU INIMIGO. (Mateus 5.43) Parece só mais um trecho do famoso discurso de Jesus, mas, aqui, há uma dificuldade peculiar: Qualquer um com alguma mínima familiaridade com a leitura da Bíblia Hebraica/Antigo Testamento sabe que realmente foi dito “amarás o teu próximo” (Lv 19.18). Mas, e o resto? E a parte do “odiarás teu inimigo”? Não há isso na Torah ou nos profetas? Não. Será possível que o simples fato de dizer “amarás o teu próximo” sem dizer nada sobre o inimigo já fosse motivo suficiente para Jesus afirmar que foi dito “odiarás teu inimigo”? Será? Mas não parece sensato dizer que "não amar" é já "odiar". Há, no mínimo, a possibilidade da indiferença. Bom, mas, se bem observado, Jesus não afirmou que aquilo havia sido dito na Torah ou nos profetas. Onde então? Há pelo menos uma fonte mais antiga que Jesus, conhecida desde os anos 1950 com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, com algo bem semelhante ao discurso que Jesus “corrige”. Em 1QS (Coluna 1), manuscrito que apresenta a Regra da Comunidade, lê-se: “que eles possam amar (לאהוב) todos os que Ele escolheu e odiar (ולשנוא) todos os que Ele rejeitou”. E, pouco depois, acrescenta: “para amar (לאהוב) todos os filhos da luz, cada um segundo sua parte nos desígnios de Deus, e odiar (ולשנוא) todos os filhos das trevas, cada um segundo sua culpa na vingança de Deus”. Esse era o ensino de um grupo judaico sectário e radical que existia na Judeia, em uma área certamente próxima de caminhos percorridos por Jesus. Não me parece sem sentido entender que a esse tipo de ensino ele se referia em seu discurso. Isso faz lembrar que nenhum ensino acontece em um vácuo discursivo, mas está necessariamente em tensão com ensinos semelhantes e ensinos divergentes (muitas vezes, ensinos com semelhanças e divergências). Assim como, atualmente, uma aula sobre Bíblia em uma comunidade cristã qualquer costuma ser, em parte, influenciada pelos discursos que disputam atenção em nossa sociedade, acontecia no século I. Por isso, um conhecimento mais amplo a respeito daquele universo discursivo tente a favorecer a percepção de detalhes importantes e conexões plausíveis e enriquecedoras. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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