Lutero e Economia: Ganância é idolatria!
(Anotação de leitura) Qualquer um que leu o Catecismo Maior de Lutero sabe bem da marcante explicação dele para o primeiro mandamento. Como ele entende que nós criamos falsos deuses para nós mesmos quando depositamos nossa confiança em algo além de Deus, é bem fácil prever que ele colocaria o dinheiro e as posses como candidatos fortes a serem nossos ídolos favoritos. Lá está o argumento. Mas é interessante como uma pesquisa mais ampla nos escritos do reformador pode mostrar como essa associação entre ganância e idolatria é consistente e importante em seu pensamento. Quem desenvolveu um estudo sobre o tema foi Ricardo W. Rieth. Dois artigos publicados por ele na primeira metade da década de 1990 dão um excelente direcionamento para caminharmos por esse bosque escorregadio. (Isso não é surpresa, já que, mesmo em âmbito internacional, Rieth é uma das pessoas que mais entende de Lutero e Economia.) Apesar de limitado em seu contexto, Lutero conseguia perceber, pela forma como a ganância está arraigada no ser humano, a possibilidade de variados recursos e variadas formas de sua operação: "Para Lutero, a “ganância” era uma forma de pecado, que oculta a injustiça e a exploração do homem pelo homem sob uma fachada de boas obras e aparentes boas intenções. Ela se expande ininterruptamente. Desenvolve-se a partir da natureza egoísta das pessoas e assume dentro do contexto econômico sempre novas formas e estruturas." (RIETH, 1993, p. 160). Além disso, apesar da falta naquele tempo de uma ciência econômica e social bem desenvolvida, a partir das Escrituras, Lutero conseguia perceber que as consequências da ganância não eram as mesmas para todos: “Quem mais sofre as conseqüências da “ganância” são, segundo Lutero, os pobres. Ela faria com que os representantes do poder público se esforçassem pelos interesses dos poderosos e opressores. Ao final, ninguém estaria preocupado em combater a injustiça contra os pobres, a não ser Cristo e aqueles que verdadeiramente o seguem, ou seja, aqueles que acolhem a Lázaro em sua miséria.” (RIETH, 1993, p. 160). É claro que essa opinião de Lutero perturbada alguns e pode ser vista como um atraso para o desenvolvimento econômico e das potencialidades do ser humano. Isso não o demovia de seu propósito: “Lutero, como intérprete da Escritura, confrontou-se com os problemas de sua época, a fim de denunciar e combater a injustiça. Deste modo, queria uma melhora das condições de vida e não estava preocupado com o fato de estar, através de sua prática, barrando ou não um desenvolvimento econômico pré-capitalista.” (RIETH, 1993, p. 164). No artigo em que trata especificamente da idolatria “econômica”, Rieth desvela um Lutero não muito conhecido, ávido por ver as pessoas não só ouvindo a Palavra, mas a praticando, com ações efetivas. “Por outro lado, Lutero também identificou a ganância com a idolatria ou culto às riquezas, em oposição à verdadeira adoração, ao verdadeiro culto a Deus. A ganância arruína os frutos da fé. Ela destrói as boas obras que brotam da fé e não podem ser separadas dela.” (RIETH, 1994, p. 73). Novas atitudes eram imprescindíveis: “A ganância causa a ira de Deus, citada no mesmo versículo, da mesma forma como junto com a licenciosidade causou o dilúvio. Também outros textos bíblicos — p. ex., Nm 25.18; 1. Co 10.8 — comprovam a dura ação divina nesse caso. Quem não confirma sua fé com a ação vale diante de Deus tanto quanto um gentio, é um desertor de Cristo e da fé. Por causa da ganância já estaria se manifestando em sua época, segundo Lutero, a ira de Deus, na forma de carestia, peste, guerra e derramamento de sangue.” (RIETH, 1994, p. 75). Para quem gosta de enfatizar que, em algum sentido, há diferença entre pecado e pecado, pensar com Lutero pode levar a uma conclusão pouco divulgada: “Os evangelhos e Paulo ligam a maioria das vezes a ganância — e não os outros pecados, como luxúria e ira, que também são contra Deus — com a idolatria.” (RIETH, 1994, p. 76). Talvez evitemos essas conclusões por estarmos sendo guiados pelo modo de ver do presente século, o que se percebe claramente em cultos, palestras e cursos que se propõem a enriquecer cristãos: “A respeito desta [da ganância], que por sua vez é um ídolo contra a fé, Deus e o mundo fazem juízos absolutamente distintos. O mundo não a castiga, considerando-a uma virtude.” (RIETH, 1994, p. 76). Esse reconhecimento, diferente do que se possa pensar, não nos leva somente ao pedido de perdão, sem mudança de prática. “A fé não deveria se restringir apenas ao que os cristãos dizem e ouvem, mas converter-se em boas obras e aperfeiçoar-se.” (RIETH, 1994, p. 76-77). Concluo esse passeio pelos textos do Ricardo W. Rieth com uma última citação, que desmorona nossa tentativa de evasão, de fuga da responsabilidade: “Para Lutero também jamais seria suficientemente descrito quão bem a ganância consegue vender-se como algo belo, virtuoso, correto e honrado. Na idolatria de Mâmon estar-se-ia usando a desculpa da busca — necessária e ordenada por Deus — da subsistência pessoal e familiar a fim de encobrir a ganância ou a ânsia pela riqueza iníqua. Isso estaria tão propagado e inserido na coletividade que nem os pregadores nem as autoridades podiam combatê-lo com eficiência.” (RIETH, 1994, p. 77). P.S. Acho que vou postar o link disso daqui em cada propagando de "cristão rico" e "vida próspera" por aí. É chique por aí ter ambição. Para Lutero, o nome é idolatria. -------------------- Link para os artigos: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/938 http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/877
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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