3º Domingo na Quaresma – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A SURPREENDENTE E (TALVEZ) INCÔMODA DUPLA IGUALDADE DAS PESSOAS CRISTÃS Sl 85; Ez 33.7-20; 1Co 10.1-13; Lc 13.1-9 Cesar Motta Rios [O pregador está descalço durante o culto.] Em nome de Jesus de Nazaré, Senhor dos vivos e dos mortos, tanto dos primeiros que cultuaram entre essas paredes há um século, quanto dos últimos que haverão de sair por essas portas após o último culto celebrado aqui, em um futuro distante. Amém. Acontece um acidente com algumas vítimas fatais em uma grande cidade brasileira. Durante dois ou três dias, redes de televisão e portais de notícia online dedicam um bom tempo/espaço cobrindo esse acontecimento. As pessoas querem entender o motivo de acontecer aquilo, a maneira como aconteceu, as consequências. Como estamos em um tempo de destaque da ciência como mediadora da verdade, investe-se em perícias, explicações a partir da física, simulações computadorizadas etc. Mesmo com informações detalhadas, parte do público continua incomodada com questões que não são para a ciência responder. Por exemplo: Por que essas pessoas e não outras? Gente do povo é morta pelo governante ou uma torre cai e mata dezoito pessoas em Jerusalém. Incidentes assim também levantavam muitas questões no século I, geravam muito assunto. E o pessoal daquele tempo também se perguntava: Por que essas pessoas e não outras morreram? Alguns podiam pensar que as vítimas dessas tragédias eram mais culpadas. Eles e não outros teriam perecido justamente por algo de diferente neles mesmos: mais pecado, mais culpa, mais injustiça. “Até mereciam morrer desse jeito.” E, com um pensamento assim, as pessoas podiam se aquietar, crendo que estava tudo em ordem, e que elas eram diferentes daqueles que partiram. Mas Jesus nega essa interpretação dos fatos de modo bem direto. “De modo nenhum! Mas se vocês não se arrependerem, todos igualmente perecerão!” Todos! Do mesmo jeito! Sem diferença! E, aqui, preciso contar outra história. Vai parecer que esqueci do texto do Evangelho e que me perdi no sermão. Mas garanto que retornaremos logo às palavras de Jesus. Só precisamos de uma passada pelo Reino Unido. Acontece que um sujeito chamado Tony Saint escreveu algo bem interessante. Ele foi funcionário do serviço de imigração num aeroporto em Londres por 10 anos. Era daqueles oficiais que conversam com passageiros que chegam ao país para decidir se são suspeitos de quererem morar lá ou se são, como dizem, somente turistas. Ele definia, digamos assim, se a pessoa tinha a dignidade/confiabilidade suficiente para entrar no país. Depois de sair desse emprego, Tony escreveu um livro muito bem-humorado a partir de suas experiências. Nesse livro, conta que há um critério pouco conhecido para se definir sim ou não para o viajante: a observação dos sapatos. Diz que os viajantes do terceiro mundo que querem morar e trabalhar na Inglaterra ilegalmente, mas que fingem ser turistas bem tranquilos e experientes, têm um ponto cego, uma parte que não sabem trabalhar em sua simulação. Vestem roupas adequadas. Têm malas adequadas. Mas se esquecem dos sapatos. Então, haveria um curioso método de observar os sapatos de latino-americanos e africanos, por exemplo, para definir se são aptos ou não, se não realmente turistas ou não. Sapatos de tais e tais tipos entram. Gente calçando certos tipos fica de fora. Com essa imagem em mente, eu volto a Jesus. E volto à afirmação dele de que se não nos arrependermos, todos igualmente pereceremos. Imagino, então, Deus fazendo uma triagem como aquela. E nós tentamos mostrar a Ele pés bem calçados com boas obras, títulos, tradição familiar, experiências. Fazemos uma fila e cada um pensa que está bem calçado com sapato italiano de grife, com um scarpin de muito bom gosto ou com um tênis esportivo de última geração, e limpíssimo. Mas ao chegarmos a Deus, ele simplesmente olha para nossos pés e diz que o que pensamos ser mostra de dignidade não vale nada, na verdade. Estamos tão manchados pelo pecado que nada podemos mostrar de realmente digno. E Ele revela a cada pessoa um fato chocante: Você está descalço. Não tem dignidade alguma. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Todos estão igualmente descalços. Todos igualmente perecerão. Essa é a primeira igualdade das pessoas cristãs. Ninguém pode dizer que o outro merece perdição por ser pecador, porque todos somos assim. Mas a frase de Jesus esconde uma boa notícia. Sim! Porque, ao dizer que, se não nos arrependermos, pereceremos, entendemos que, se nos arrependermos, o fim da história será melhor. E, de fato, nós nos arrependemos! Nós reconhecemos que somos pecadores. Nós sabemos que não temos dignidade por nós mesmos diante de Deus e nos apegamos a Cristo, confiando no socorro dele. Então, voltamos à fila da imigração para o Reino de Deus. E nos apresentamos diante do Pai já sabendo e dizendo: Senhor, não temos dignidade alguma com a qual possamos calçar nossos pés. Estamos descalços e carentes de teu socorro. E Ele olha para nossos pés, mas não nos vê simplesmente descalços. Cada um de nós que se apega a Cristo passa diante dos olhos atentos do Criador. E Ele não vê nossos pés, mas vê os pés perfurados de Jesus Cristo. Exatamente isso. Porque todos nós fomos batizados e, conforme escreve o apóstolo aos Gálatas (3.26-27), nos revestimos de Cristo. Deus olha para nós e vê como nossa toda boa obra realizada por Jesus. Os méritos e a dignidade do próprio Filho de Deus são dados a todos nós de presente. Essa é a segunda igualdade das pessoas que se apegam a Cristo pela fé. Aos olhos de Deus, todos somos o que somos: pecadores e santos. Pecadores por nossa própria natureza. Santos por aquilo que Jesus fez por nós. Pés descalços e pés perfurados. Todos iguais. Um só Senhor. Todos iguais. Uma só fé. Todos iguais. Um só batismo. Uma só mesa de comunhão. Uma só comunidade. Pela graça de Deus e para a glória de Deus. Amém.
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1º Domingo na Quaresma – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS MAIS UM SERMÃO SOBRE A TENTAÇÃO DE JESUS Sl 91.1-13; Dt 26.1-11; Rm 10.8b-13; Lc 4.1-13 Cesar Motta Rios Eu começava a pensar nesta mensagem, nos textos, e fui atrapalhado por uma imaginação insistente que invadia meus pensamentos. E era a este momento, ao começo da pregação, que minha mente me trazia. Mas, diferente da tranquilidade de agora, acontecia uma coisa estranha. Eu imaginava que tinha uma pessoa muito inquieta aqui em um desses bancos. Uma pessoa inquieta, atenta e de boa memória. Então, quando eu começava a dar sinais de que o sermão seria sobre o texto do Evangelho de Lucas lido há pouco, essa pessoa não se aguentava, levantava do banco, se aproximava e dizia: - Desculpa, Cesar, mas você vai pregar mais um sermão sobre a tentação de Jesus? - Mas é o primeiro que eu vou pregar sobre isso na vida. - Sim, o seu primeiro. Mas você sabe qual o texto que serviu de base para o sermão do primeiro domingo na Quaresma no ano passado? Marcos 1.12-15, que fala da tentação de Jesus. E sabe qual foi o texto do sermão de 2017? Mateus 4.1-11, que fala da tentação de Jesus. Sabe há quantos anos eu escuto um sermão sobre a tentação de Jesus no primeiro domingo na Quaresma? - Imagino que desde que você frequenta a igreja. Porque, no ano que vem, nós voltamos a esse texto de Mateus, em 2021, será a vez de Marcos, e, em 2022, Lucas 4.1-13 de novo. - Então! Pois é! Mas não dá para ser um negócio desses. Vamos repetir sempre isso? Ainda meio perturbado pela situação, afinal, uma conversa no meio do sermão não é coisa que se vê todo dia numa igreja luterana, eu tentaria explicar sobre a importância do texto para essa data. Primeiro, observaria que tem o detalhe numérico. Jesus jejuou por 40 dias. E não é à toa que a Quaresma é um tempo de quarenta dias. É um número comum nas Escrituras para esses períodos de privação e preparação para um acontecimento especial: 40 anos no deserto do povo de Deus antes de entrar na terra prometida, 40 dias que Moisés jejuou antes de receber as tábuas da Lei, 40 dias que Elias caminhou em jejum... Então, ficamos 40 dias em reflexão e preparação, acompanhando o caminho de Jesus para a cruz na Quaresma. É claro que o número não convenceria essa pessoa completamente. “Só por causa do número 40 eu vou ter que escutar mais de 40 sermões sobre o mesmo assunto na vida?” Então, eu tentaria ir por outro caminho: Observar como esse momento da tentação é decisivo para a caminhada de Jesus até a cruz. É tão decisivo que nós voltamos a ele nesse momento. Sim, porque já estávamos lendo lá o capítulo 9 no domingo anterior. Agora, voltamos ao momento imediatamente posterior ao Batismo do Senhor! É antes de ele começar todas as curas e milagres, as pregações... E é decisivo, porque é o momento em que Jesus define claramente que não se desviará do caminho proposto, que não escolherá outro rumo. Após dias no deserto, em meio à fome e à fraqueza, ele diz “não” às alternativas oferecidas pelo Tentador. Diferente do primeiro Adão, ele segue o plano. O Filho de Deus, depois de viver décadas como ser humano, de experimentar o que é dor e sofrimento, e de provar dessa limitação de forma aguçada no deserto, olha para frente, olha para a cruz, e diz: “Mesmo assim, minha meta é lá e eu não vou desistir.” Sem essa determinação de Jesus no deserto de não ceder às tentações, não haveria Sexta-feira santa, não haveria Domingo da ressurreição, e não haveria, também para nós, ressurreição. Aquela querida pessoa inquieta, atenta e de boa memória, que estaria aqui, quase ao meu lado, diria assim: - Ok! Eu entendo que o evento é importante. Entendo que se encaixa no nosso tempo da Igreja... Agora, seu sermão vai ser só sobre isso, sobre Jesus, tentação e cruz? Não vai falar sobre nossas tentações também? É claro que eu ficaria ainda mais incomodado. A pessoa não queria mais um sermão sobre a tentação de Jesus, e, agora, quer definir o conteúdo do meu sermão sobre a tentação de Jesus! Eu tentaria, então, explicar que falar de nossas tentações aqui, a partir desse texto, não seria uma prioridade para mim. Há outros textos mais propícios para isso. Observaria que acho arriscado tentar encontrar nessa cena da tentação de Jesus um método para se resistir às tentações. As tentações que vêm sobre nós não são exatamente como essas. Não levamos um diálogo com o Tentador nas manhãs de segunda-feira, mas somos tentados em detalhes mínimos do cotidiano de forma rápida e até imperceptível: como quando tenho que decidir se respeito o próximo que tem a preferência de usar a faixa de pedestres ou se beneficio a mim mesmo, roubando o tempo do outro; como quando fico entre dar uma resposta cheia de raiva ou ficar em silencio, paciente. Coisas assim, variadas e dispersas ao longo de nossos dias. Coisas que não se enquadram necessariamente no imaginário popular mais básico criado em torno da palavra tentação: comida ou sexo. O caso ali no deserto foi algo muito atípico, muito específico, na caminhada dessa pessoa muito especial que é Jesus. O texto é mais sobre Ele do que sobre nós. Nós entramos aqui como beneficiados, mais do que como aprendizes, mesmo quando o assunto são as nossas tentações cotidianas. Sim, porque o fato de que Ele persistiu e venceu a tentação, e foi para a cruz por nós, para morrer e pagar pelos nossos erros, pelas nossas derrotas nas tentações fez com que o Salmo 91 se tornasse nossa realidade. Porque Ele venceu, nós nos escondemos nEle. Como pintinhos que nada podem fazer contra os predadores e escondem sob as asas da galinha, assim fazemos nós, recorrendo a Ele. E, assim, somos salvos e somos feitos vencedores. Não por um método trabalhoso, mas porque invocamos o nome daquele que realmente venceu. E nós fazemos isso diante das tentações, das nossas tentações, quando nos voltamos para Deus e oramos de coração e com toda a simplicidade as palavras do Pai Nosso: “Pai nosso que estás nos céus... Não nos deixes cair em tentação.” Com essas palavras, nós reconhecemos que, por nossas forças e maquinações, nós não poderíamos resistir nem àquela tentação do trânsito, nem a da má resposta numa contenda, nem à menor das tentações. O resistir nos é dado no esconderijo. A pessoa inquieta, atenta e de boa memória estaria aqui ainda, e diria algo assim: - Tá bom. Tá bom. Tem coisa importante de ser lembrada aí... Vou sentar ali, pode pregar o sermão. E eu diria a essa pessoa o que digo a cada um de vocês: Se você conseguiu acompanhar até aqui, se foi lembrado ou lembrada de que Cristo decidiu vencer a tentação e ir até o fim, de que ele venceu por nós e de que é nEle que encontramos nosso refúgio, acolhimento, paz com Deus e vitória sobre nossas tentações, o sermão está suficientemente pregado. Mais um sermão sobre a tentação de Jesus. Mais um passo em nossa caminhada. Que estejamos sempre com Cristo, escondidos em Cristo, nosso refúgio e fortaleza. Amém. [arquivo com slides após o texto.] COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA CONCÓRDIA – SÃO LEOPOLDO, RS REFLEXÃO PARA A PRIMEIRA REUNIÃO COM LEIGOS E SERVAS DE 2019 AMIZADE - OPORTUNIDADE PARA O EXERCÍCIO DO AMOR CRISTÃO Cesar Motta Rios Na década de 1980, assistíamos uma série chamada Anos Incríveis. Era uma parte boa do dia, quando nos reuníamos para ver Kevin Arnold, Paul Pfeiffer e Winnie Cooper em seus encontros e desencontros. A amizade cultivada entre eles estava no centro da história que nos atraía. Torcíamos por eles. A música de abertura era emocionante. Não entendíamos uma palavra. Mas parecia carregada de sentimento, e criava uma atmosfera bem adequada para a trama. Mais tarde, quando fui averiguar a letra, deparei-me com algo realmente bonito e apropriado para falar de amizade. A música foi composta por John Lennon e Paul McCartney, mas ficou muito conhecida na versão de Joe Cocker. O título é “With a little help from my friends”. Podemos ouvir e ler alguns versos: O que você faria se eu cantasse fora do tom? Você se levantaria e iria embora? Empreste-me seus ouvidos e eu te cantarei uma canção Eu vou tentar não cantar desafinado Oh baby, eu fico por perto (Com uma pequena ajuda de meus amigos) Tudo que eu preciso é de meus companheiros (Tentar com uma pequena ajuda de meus amigos)... O que eu gosto nessas palavras é que elas lembram que as amizades existem entre pessoas imperfeitas, e que faz parte da amizade justamente a disposição de ajudarem-se uns aos outros em suas imperfeições, e não abandonar ou falar mal sem estender a mão. Ou seja, não se trata só de admiração mútua: “Eu sou seu amigo, porque você faz isso bem, porque é bom em tais e tais atividades, e tem tais e tais características positivas...”. Trata-se de andar junto também quando vacilamos, quando erramos. A música lembra que é função do amigo ser um amparo nas dificuldades. Lembra que a atitude esperada é essa. Além disso, a pessoa que canta demonstra estar em uma situação de necessidade. Ela remete ao tema da solidão e questiona: “Você se incomoda por estar só?”. Nem todo mundo expressa esse tipo de incômodo tão claramente. Muita gente passa por momentos difíceis sem confiar ou pedir “uma pequena ajuda” dos amigos. Mas, se há amigos, eles devem estar atentos e disponíveis para amparar em toda e qualquer situação. Essa percepção sobre amizade lembra a frase mais conhecida e mais citada das Escrituras sobre o assunto: “O amigo ama em todo tempo, e na angústia nasce o irmão” (Provérbios 17.17). Não é só nos tempos de diversão que o amigo ama, mas em todo tempo. E é especialmente nos tempos difíceis, nas dificuldades da vida, que esse amigo se revela como um verdadeiro irmão. É uma afirmação sobre amizade. Agora, as Escrituras, nas histórias que contém, teriam exemplos de amizades assim? Podemos pensar um pouco em Abraão e Ló? Parente de sangue pode ser amigo, não é? E Abraão, no momento mais complicado da vida de Ló, quando ele estava para ser consumido junto com o pessoal de Sodoma e Gomorra, intercede e, assim, Deus poupa Ló e sua família. E Rute e Noemi? A nora resolve ser fiel companheira da sogra em um momento profundamente triste e problemático de sua vida. Em vez de abandoná-la, segue junto em sua jornada de volta à terra de Israel. Podemos pensar em Davi e Jônatas? Mesmo sendo ofendido e agredido por seu pai, Jônatas mantém a fidelidade ao amigo e o ajuda no momento de dificuldade e perseguição. E não é amizade o que parece haver entre Paulo e Timóteo? Estiveram juntos tanto tempo e, ao que parece, no fim da vida, Paulo escreve a ele pedindo que fosse até ele com umas coisas pessoais. Expõe seu sentimento e sua situação (2 Tm 4). Já que falamos de Paulo, lembro que ele era um sujeito que valorizava muito a verdade, o que é correto. Chegou a repreender até ao próprio Pedro. Então, como funciona isso de ser amigo e ter que dizer a verdade, que, algumas vezes, não vai agradar? Como é que a gente lida com o fato de que um amigo erra e precisa parar de errar em uma coisa ou outra? É complicado. Então, antes de enfrentar a questão, vamos ouvir música de novo: Desafinado de Tom Jobim, da qual destaco os seguintes versos: Se você insiste em classificar Meu comportamento de anti-musical Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isso é bossa-nova, isso é muito natural O que você não sabe nem sequer pressente É que os desafinados também têm um coração A pessoa aponta para o fato de que há algo além da perfeição musical a ser considerado. Há também o sentimento daquele que canta. Como ela vai receber essa crítica? Isso deveria, segundo a música, ser considerado por que tece a crítica. Deveria mesmo? Eu entendo que sim. Não como se o sentimentalismo fosse mais importante que tudo, a ponto de se desistir de afirmar a verdade, mas “falando a verdade em amor” (Ef 4.15), nós podemos considerar não somente o que é correto, mas também como a outra pessoa vai se relacionar com a afirmação disso que é o correto. Na Igreja Cristã, a preocupação com outro é importantíssima. Paulo ensina isso no capítulo 14 de Romanos. Mesmo afirmando que é permitido comer de tudo, observa que, se, ao comer, você faz mal a seu irmão que pensa que é errado comer certas coisas, você está cometendo um erro. Veja bem: Você comete erro fazendo a coisa certa, porque faz mal para seu irmão. A verdade pode e deve andar de mãos dadas com o amor cristão. Isso é importante para a vida em comunidade e é importante para a amizade. Mesmo coisas duras podem ser ditas de um modo mais cuidadoso, para que sejam compreendidas ou, pelo menos, recebidas de uma forma mais tranquila. O amigo precisa reconhecer o cuidado que vem do outro e não ver nele alguém que o afronta. Amigos aprendem a cultivar isso com o tempo. E, vendo o outro cometer graves erros, mesmo pecados sérios, não o dão por perdido, mas oram por ele (1 Jo 5.6), porque querem o seu bem. O fato é que devemos agir assim com todos os que nos cercam, não só com amigos. Mas a amizade pode ser uma oportunidade especial para praticarmos esse jeito de agir e interagir.[1] Podemos, em nossas relações de amizade, exercitar o amor cristão, querendo sempre vivê-lo também nos demais relacionamentos e expressá-lo inclusive para com os desconhecidos. Estaremos dispostos a chorar com os que choram e a nos alegrarmos com os que se alegram (Rm 12.15), porque o amor cristão não evita o contato, não evita saber e se envolver, mas se dispõe a estar junto e a escutar. A pessoa amiga que exercita o amor cristão não é, então, aquela que se desvia de modo piedoso (“Ah, a vida tá difícil então. Mas vou orar por você. Fica com Deus.”) ou bohêmio (“Ah, esquece isso. Depois a gente sai para tomar umas.”). Ela fica junto e se dispõe a ser uma ajuda para o outro, pequena ou grande, conforme as possibilidades. E temos na Trindade o exemplo de amigo que se importa, atenta para o problema do outro e se envolve. Envolve-se ao ponto de o Filho ir à cruz para morrer pela humanidade. Não é sem razão que alguns escritores cristãos do primeiro século chamaram a Deus justamente de “amigo da humanidade”. [1] Leitores de Kierkegaard vão certamente pensar que minha proposta não faz sentido. De fato, a argumentação dele contra a amizade, enquanto um tipo de amor de predileção contrário ao amor do “deves amar ao próximo como a ti mesmo” é filosoficamente bem aprumada. Eu a admiro. Contudo, parece-me pastoralmente inviável. Discussões em particular serão bem-vindas. ![]()
Os arquivos abaixo trazem uma lição pensada para escola bíblica. Em minha comunidade, notamos que os materiais disponíveis não traziam lição para a Sexta-feira Santa (da Paixão). Como temos um culto no dia, preparei um material para a ocasião. Deixo-o em arquivo .doc, para que possa ser adaptado conforme a necessidade de quem o venha a utilizar. ![]()
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[O texto abaixo é minha contribuição para o Informativo do mês de março da Comunidade Evangélica Luterana Concórdia, São Leopoldo - RS.]
O Machado está posto à raiz Cesar Motta Rios Ei-lo, vai sobre o alto do Calvário Morrer piedoso e calmo em uma cruz! Povos! naquele fúnebre sudário Envolto vai um sol de eterna luz! “O machado está posto à raiz” é uma frase de João Batista para chamar as pessoas ao arrependimento (Lc 3.9). É oportuna para a Quaresma, já que aponta para o fato de que o pecado é coisa séria. E só entendemos a bênção do sacrifício de Jesus por nós, se entendermos isso primeiro. Mas o título que escrevi traz “Machado” com letra maiúscula. É um nome. Acontece que os versos no início do texto não vêm de nossos hinários. São do grande escritor Machado de Assis, que, na Semana Santa de 1858, escreveu o poema “A morte no Calvário”. Além de bonitas, suas palavras nos conduzem muito bem ao período do calendário da Igreja que logo começaremos. Espero que ninguém se incomode com o trocadilho, mas entendo que Machado (de Assis) vai à raiz, ao que é mais importante no tempo da Quaresma. Primeiro, porque seus versos apontam para o sofrimento e morte de Jesus. Na Quaresma, pensamos justamente nisso, enquanto aguardamos também a Páscoa, a hora de recordar festivamente a ressurreição. Mas há algo mais: Além de falar da cruz, os versos lembram que quem morreu ali não foi um homem bom ou um profeta especial somente. Parecia ser isso. Parecia que, coberto pelo sudário, estava um corpo de gente comum. Mas, contra a aparência, a verdade é que Deus estava ali, sendo morto e sepultado. Como é que aquele ser cheio de luz, por meio de quem e para quem todas as coisas foram criadas (Cl 1.15-17; Jo 1.3-9), pode estar no centro dessa cena triste e sem vida? O poeta convida a reconhecer isso como algo surpreendente: um sol de eterna luz escondido no sudário. Começar a Quaresma lembrando que é o Filho de Deus que se entrega para morrer, que não se trata só de mais uma execução injusta, é importante para que não percamos de vista que essa morte tem um objetivo. E, por isso, nós nos lembramos dela não para chorarmos simplesmente, mas para apreendermos todo seu valor para nossas vidas. Vemos na cruz o castigo pelo pecado. Isso nos diz que o pecado é algo grave, que deve ser evitado. Ao mesmo tempo, vemos o castigo pelo pecado sendo lançado sobre o Filho em nosso lugar. Isso anuncia que já não há condenação para os que se apegam a Cristo (Rm 8.1)! De novo, o poema ajuda: Ide, ao som das sagradas melodias, Orar junto do Cristo como irmãos, Que os espinhos da fronte do Messias São as rosas da fronte dos cristãos! Esses dois últimos versos falam do castigo que caiu sobre o Messias, para que bênçãos pudessem vir sobre nós. Numa linguagem mais conhecida entre luteranos, chamaríamos isso de “troca feliz”. Essa é a boa notícia que conhecemos e que não podemos perder de vista. Vamos com Machado, lembrando que o Filho morreu em nosso favor. Agora, se você não aprecia poesia, certamente encontrará o suficiente para a mesma reflexão quaresmal na explicação de Lutero para o segundo artigo do Credo: “Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, gerado do Pai desde a eternidade, e também verdadeiro homem, nascido da virgem Maria, é meu Senhor. Pois me remiu a mim, homem perdido e condenado, me resgatou e salvou de todos os pecados, da morte e do poder do diabo; não com ouro ou prata, mas com seu santo e precioso sangue e sua inocente paixão e morte, para que eu lhe pertença e viva submisso a ele, em seu reino, e o sirva em eterna justiça, inocência e bem-aventurança, assim como ele ressuscitou dos mortos, vive e reina eternamente.” |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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