O bandido sangrando no asfalto e o dever de amar
Cesar M. Rios A imagem é de um bandido sangrando após levar um tiro. Uma mulher que seria médica e estaria passando por ali tenta estancar o sangramento com uma camisa ou coisa assim. Pessoas ao redor têm opiniões diversas. Um homem critica. Diz que tinha que deixar o bandido sangrar para morrer. Uma jovem tenta defender a médica. É insultada. Isso tudo é num vídeo curto. Nos comentários, alguns usuários do Facebook concordam com o homem. Estão fartos da violência urbana. Todos estamos. Outros dizem que a mulher só deveria ajudar o bandido se realmente for médica. Se é médica, fez um juramento. Tem que salvar a vida dele. Se não for médica, segundo uma jovem, é uma idiota. Minha reflexão é a mais genérica possível: e se fosse qualquer um de nós, com um pano acessível e o bandido sangrando, deveríamos ajudá-lo a viver ou não? Minha resposta é simples demais. Temos algo muito maior que um juramento médico e que nos envia ao auxílio do bandido sangrando: o Batismo. Já não sou mais eu quem vivo, Cristo vive em mim. Isso tem a ver com o perdão recebido imerecidamente. Tem tudo a ver com o fato de que minha salvação depende do que Cristo fez por mim e não do que eu, na minha inconstância, farei ou não pelo bandido. Mas... Isso também tem a ver com quem eu sou e com quem é Cristo para mim. Eu não sou senhor de mim mesmo. Mesmo que eu ache que bandido merece morrer, o meu achar não se sobrepõe ao que meu Senhor manda. Na verdade, minha opinião se submete. Com meu Senhor, sei que o inimigo é para ser amado e não odiado (Mt 5.4348). Deixá-lo morrer podendo salvá-lo não é amá-lo, mas o contrário. Isso não quer dizer que você não queira que o bandido seja responsabilizado judicialmente por seus crimes. Uma frase usada pelo homem no vídeo foi: “Faz carinho nele. Leva ele (sic) pra casa então.” Sim. Ele diz isso para a médica. No caso da pessoa cristã que socorre o bandido, isso não faz sentido. Ela o ajuda não por pensar que ele é bonzinho ou por pensar que não deva ser punido seriamente. Ela o ajuda por submissão ao seu Senhor. Pode, inclusive, deixar claro ao bandido: “Não te ajudo por merecimento seu ou por vontade minha. Ajudo por Cristo, que me salvou quando eu não tinha absolutamente nada de bom, me deu vida quando eu estava morto em meus pecados”. Ela o ajuda por submissão ao seu Senhor. Foi o que eu disse. Sei que, enquanto alguns cristãos amam o dever, outros o abominam. Pensam que a mera ideia do “dever” obscurece a dádiva da justificação por graça mediante a fé. Discordo completamente. E vejo o “dever” como fundamental nesse caso. Com Kierkegaard (As obras do amor), entendo que, se não há “dever”, eu teria escolha de amar essa pessoa e aquela não. Caberia a mim decidir a cada caso. Haveria brecha. Mas Jesus não sugeriu amar. Ele disse “amai”. Vejo um ser humano e, independente do que penso dele, estou no dever de amá-lo. E como amar? O amor a Deus está bem expresso nos primeiros dos 10 mandamentos, como sabemos. O amor ao próximo, por sua vez, está expresso nos demais. E um específico nos vem à mente no nosso caso: “Não matarás!” Mas eu não descumpro esse mandamento se não sou eu quem produz o ferimento no bandido, pensará alguém. Será mesmo? Lutero parte da negativa dos mandamentos para seu oposto. Cumprir o mandamento não é só não fazer o interditado, mas agir pelo seu contrário. No caso deste: “transgride este preceito não só quem pratica ações más, mas, também, aquele que, podendo fazer o bem ao próximo e obviar, obstar, proteger e salvar, de modo que nenhum mal ou dano lhe suceda no corpo, todavia não o faz” (Catecismo Maior, explicação do Quinto Mandamento, 189). “Mas quem é o meu próximo? O bandido não é o meu próximo!” Nossa fuga seria essa, que já foi tentada antes – você bem se lembra. Sem recorrer a todo o relato do samaritano, que lembra que não se faz essa pergunta, vou continuar no Catecismo: “A intenção real de Deus é, portanto, que não permitamos venha qualquer homem a sofrer dano, e que, ao contrário, demonstremos todo o bem e amor. E isto, conforme dito, mira particularmente aos nossos inimigos. Porque fazer o bem aos amigos não passa de comum virtude gentílica, segundo a palavra de Cristo em Mateus 5” (Catecismo Maior, explicação do Quinto Mandamento, 193-194). “Mas minha vontade é...” Eu sei. Mas não é sua vontade que é solicitada para definir sua ação aqui. Lembre-se do seu Batismo. Lembre-se de quem você é e de quem é Cristo para você. Minha vontade também é vingar. Mas o propósito de Deus, com o mandamento, é justamente “sufocar em nós, dessa maneira, o desejo de nos vingarmos” (Catecismo Maior, explicação do Quinto Mandamento, 195). Acrescento que, justamente por eu não ser um novo ser perfeito, e justamente por ter minha velha natureza em mim, com sua vontade corrompida, é que há ainda o que veio a se chamar Terceiro Uso da Lei. Ela está aí também para isso. Para me lembrar e redirecionar. Mas é assunto longo e o deixaremos para depois. Enfim, mas, conforme as pessoas que discutiam o vídeo, quem faz isso de salvar bandido é petista, esquerdista, que pensa que o bandido é vítima da sociedade. Outra pessoa diz que o que acontecia ali era falsa piedade. Queridos e queridas, nossa ação, algumas vezes, pode ser a mesma por motivos diferentes. Eu veria como normal se um cristão estivesse ali salvando o bandido e, ao mesmo tempo, pensando que ele poderia ser justamente condenado à pena de morte em seguida (Não que eu pensaria assim. Estou buscando um exemplo para mostrar que, com diferença grande de opinião sobre o arranjo social, pode-se agir de modo semelhante.). Isso é um grande problema? Agir como pessoas que defendem outras ideias? Será mesmo? Aja segundo a vontade de seu Senhor e testemunhe o motivo: seu Senhor e a obra dele. Pronto. (Essa ideia de agir de modo semelhante por motivo diverso me vem esclarecida via The Gospel in a pluralist society, de Lesslie Newbigin.) “Ah... essa questão ética é muito complicada, porque o bandido pode ser salvo e fazer mais dano a outras pessoas”. A ética se resume não “a mal maior” e “mal menor”, nem a “certo” e “errado”. A ética – vou com Bonhoeffer (Ética) nessa – se resume a fazer a vontade de Deus. E essa, para mim, nesse caso, está muito clara – desde o Sinai e desde a boca do Messias. "- Quem desses três te parece ter sido próximo do que caiu na mão dos ladrões? Ele disse: O que agiu com [fez!] misericórdia para com ele. E disse a ele Jesus: Vá e você também faça igual!" (Lucas 10.36-37) Paz, graça e bem!
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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