Há casos que, vistos de fora, parecem coisa de pura fofoca desnecessária, mas que, vistos de perto, acabam sendo uma fofoca produtiva. Pelo que entendi, Malafaia (o homem que grita com todo mundo e, no final, diz "Deus te abençoe!") divulgou com duras críticas o vídeo de um pastor idoso da Assembleia de Deus em Campina Grande. No tal vídeo, o pastor chama de "lixo" pessoas que abandonaram sua igreja ou igrejas de vertente semelhante. Sabendo disso, estranhei. O homem que xinga todo mundo achou errado o outro xingar? Será que foi ciúme por não ter usado antes esse xingamento? Não. Nada disso! Eu vi o vídeo do tal pastor idoso. Ele xinga justamente os que foram para igrejas sem os tais usos e costumes rigorosos de sua vertente, aquelas em que mulheres usam até brincos, e homens também! Ah, agora, faz sentido, já que Malafaia é desses assembleianos dados ao ouro (Em qualquer sentido que se queira entender, parece que haverá verdade. Mas o contexto convida a entender que estou falando de assembleianos que não mais impõem regramentos rígidos sobre vestes e afins.) Ele foi diretamente ofendido pelo ancião. Mas não para por aí! Há mais aspectos interessantes na querela. O vídeo do pastor ancião revela uma característica muito sabida de seu meio: a performance do pregador é frequentemente avaliada conforme a rigidez de seu legalismo! Quanto mais enfático na reprimenda, na severidade para com os "outros", mais aplausos angaria. E ele surfou essa onda. Nas suas peripécias, fez manobras impensáveis, como transformar um texto claramente pleno de Evangelho em lei, com l minúsculo mesmo. Leu no Apocalipse que aqueles que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro receberiam direito de comerem da árvore da vida. Que texto é mais evangélico - no sentido próprio de comunicar o perdão pela obra de Cristo - que esse? E ele desfez o Evangelho comentando: "Quem é que está lavado no sangue e fica com mancha!?" O texto que mostra Cristo como redentor de gente imperfeita e suja vira pretexto para exigir uma impecabilidade inalcançável! Assim ele fez em sua performance. Assim ele fez quando o assunto eram os outros! Sabe quando a conversa muda? Quando nosso surfista deu com a pedras na enseada (ou quando sentiu do Silas as pedradas, como queira). Para pedir desculpas após o alarde que se deu, ele cita Tiago, que ensina que, se alguém não tropeça no falar, esse é perfeito. Texto claramente de Lei. Não há Evangelho aqui. E Tiago está dizendo, conforme a aplicação, que esse ancião está em erro. Como ele lê? De forma inversa à da leitura anterior. Agora, esse texto de Lei que está diante de si e que o acusa é suplementado por uma lembrança que beira o Evangelho (ainda que não o apresente), que vem no seguinte comentário: "Você vai concordar comigo que o único varão perfeito, que nunca tropeçou em palavras, que viveu como homem nesta terra, foi o Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu creio que todos concordam comigo." Concordamos, sim, pastor. Mas veja como é interessante lembrar disso somente quando o assunto é o próprio pregador. Quando o assunto são os demais, a ausência de qualquer mancha é necessidade imperativa e medida pelo comportamento. Curiosamente, aliás, por um comportamento que se fundamenta em doutrinas de homens, também chamadas, no presente caso, de usos e costumes (não espontâneos, mas exigidos por norma social). Fica parecendo que a lei dos homens, se descumprida, gera mancha que exclui da salvação, enquanto a Lei de Deus, se descumprida, convida a olhar para o fato de que todos a descumprem em alguma medida, para que ninguém seja tachado como manchado na conversa. Mas o ponto nem é esse. O ponto é como a confusão entre Lei e Evangelho é exemplificada de forma gritante nesse episódio lamentável. Conforme quem está implicado, a Lei pode ser amenizada, e o Evangelho pode ser subvertido. Parece que temos aí um problema duplo: Existe o dilema institucional, esse duelo entre vertentes que procuram seu espaço e sua pertinência, com a dificuldade de fazerem isso sem diminuírem o direito da outra à existência. E existe, também, o que é mais grave: a precariedade teológica, a hermenêutica desajustada. É patético. É teologicamente patológico. É triste, mas esse caso pode servir de exemplo para conversas importantes sobre Lei e Evangelho daqui para frente. Fique registrado. E isso que eu nem me atentei para as palavras do outro pastor envolvido, que chamou o ancião de fariseu, sendo ele mesmo um perfume de lavanda, ao que parece (ou não).
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“Aborto é uma questão de saúde pública?” É. É, sim. O próprio aborto pode ser causado por um problema de saúde. Além disso, o aborto, espontâneo ou causado, não é algo sempre simples e livre de repercussões. Atendimento hospitalar pode ser necessário em ambos os casos. E esse atendimento posterior não é livre de dor e sofrimento. O ABORTO DEVE SER TRATADO COMO QUESTÃO DE SAÚDE Em alguns discursos, os números aparecem misturados: “foram xxx mil atendimentos hospitalares decorrentes de abortos, espontâneos e causados...”. Às vezes, o objetivo é focar somente nos causados. O número dos demais vem no pacote, sem distinção, sem atenção. Uma pena, pois um grande problema de saúde pública está ali também. O atendimento às mães que perderam seus filhos e filhas em gestação nem sempre é humano como deveria, nem sempre é acompanhado de sensibilidade e cuidado integral. Falo de casos de aborto espontâneo por conhecer alguns de perto. Certamente, não é muito diferente, e talvez seja pior nos outros casos. Por tudo isso, aborto é mesmo questão de saúde pública, e precisa ser discutido por essa perspectiva. Agora, convém questionar: O fato de ser questão de saúde pública torna o aborto uma questão exclusivamente de saúde pública? O fato de ser questão de saúde pública implica em que não há sentido ou necessidade de se falar do assunto a partir de outra perspectiva? ABORTO E SAÚDE PÚBLICA, DESMATAMENTO E ECONOMIA Imaginemos que, numa discussão recém iniciada sobre desmatamento na Amazônia, alguém erga a voz e diga: “Desmatamento é uma questão de economia regional.” Seria um mentiroso a dizê-lo? Não! Desmatamento é uma questão econômica. Diz respeito a renda, lucro, trabalho, necessidades materiais de uma porção de pessoas de carne e osso, para as quais desmatamento é imediatamente uma questão econômica. O ponto é: O fato de ser uma questão de economia regional encerra toda discussão sobre desmatamento enquanto questão ambiental? Faria sentido isso? Não. Claro que não. No fim das contas, uma discussão sobre desmatamento que se propõe efetiva e útil além da salinha de discussão e das vaidades dos divergentes deveria considerar a questão como ambiental e econômica. De forma semelhante, o fato de ser questão de saúde pública não isenta o tema do aborto de ser uma questão ética ou, especificamente, bioética. E, também de forma semelhante, uma discussão sobre aborto que queira ser humana e responsável deveria abranger bioética e saúde pública. POR QUE NÃO SERMOS PRAGMÁTICOS QUANTO AO ABORTO? Alguém poderá dizer: Mas por que insistir em tornar complexo algo que pode ser resolvido com um procedimento médico sem muita reflexão? Aqui está um ponto incômodo aos extremos: Por que, em geral, as pessoas não entendem o assunto como complexo em si? Por que se negam a considerar a profundidade da questão e necessidade de discussão a partir da seriedade do que está em questão? Por que parece acertado ser pragmático em uma questão que envolve vida humana? Não é estranho que, em um tempo de valorização da defesa de minorias, dos sem voz, aqueles seres humanos completamente desprovidos de voz sejam desconsiderados como necessitados de proteção? Aqueles sem fala, que não podem exigir que se respeite seu lugar de fala, ficam à mercê da decisão alheia, e sem que se possa por eles falar com direito. Por quê? Porque, como bebês de 1 mês de idade, não conseguem sustentar a si mesmos. Como bebês de 1 mês de idade, não falam. Como bebês de 1 mês de idade, dependem inteiramente de outro ser humano, que pode não o querer. E, de fato, querer um bebê não é obrigação. Há, contudo, uma responsabilidade, que vai além do desejo. No caso dos bebês, existe, por exemplo, a “entrega legal” como opção. Ninguém poderá julgar mãe e pai sem condições (de qualquer tipo), que decidam entregar filho ou filha para adoção. Há no gesto um cuidado, uma responsabilidade com a vida, ainda que não haja uma vivência da maternidade ou paternidade conforme o mais usualmente esperado. POR QUE ESPECIALMENTE PESSOAS CRISTÃS SE OCUPAM COM ISSO? Pois bem, para concluir, observo que me perturba ver, atualmente, quase a totalidade dos que se detém na reflexão sobre o aborto enquanto problema bioético seja de religiosos! Infelizmente, parece que Nietzsche estava certo n’O Anticristo: Foram os cristãos que semearam a ideia (para ele criticável) de defesa dos mais fracos! “O veneno da doutrina ‘direitos iguais para todos’ – o cristianismo semeou-o por princípio” – diz. Uma parte do princípio cristão conseguiu imiscuir-se no pensamento secular de nosso tempo, ainda que com alguma adaptação. O próprio Nietzsche o nota: “Conceder a «imortalidade» a cada Pedro e Paulo foi até agora o maior e o mais pérfido ataque à humanidade nobre. E não subestimemos a fatalidade que do Cristianismo deslizou para a política! Hoje, ninguém mais tem a coragem dos privilégios, dos direitos de dominação, do sentimento de reverência por si e pelos seus pares – de um pathos da distância... A nossa política enferma desta falta de coragem!” Sim, a fé cristã é subversiva na apresentação dessa igualdade incômoda! Iguais são negros, índios, caucasianos e latinos, pobres, ricos, miseráveis e abastados! E não paramos aqui. Iguais em valor, cada Pedro, Paulo, bebê de 1 mês ou de meses antes do nascimento. Que escândalo para a aristocracia dos dotados de voz! Mas o ethos cristão não pode existir sem tensões num mundo hedonista e egoísta em sua integridade. Permanece escandaloso, incômodo e desagradável, quase intragável, quando não coincide com uma ou outra agenda pragmatista. O aborto é uma questão de saúde pública. O aborto é uma questão bioética. E, infelizmente, o aborto só será uma questão tratada com a seriedade que requer exclusivamente por religiosos, muito em breve. Para os muitos, permanecerá como coisa sem sentido defender esse amontoado de células que mal pode se mover, mal pode rastejar. Nós continuaremos nossa conversa com pequena voz, por mais um tempo. Por mais um tempo, pessoas sublimes, donas da decisão e do curso do mundo, bradam suas palavras de ordem, sem perceberem que se alinham com interesses dos poderosos. E Nietzsche venceu em suas consciências: “O Cristianismo é uma insurreição de tudo o que rasteja pelo chão contra o que tem sublimidade: o Evangelho dos «pequenos» empequenece...” |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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