“Assim como nós perdoamos…” uma palavra pastoral para quando é difícil perdoar Rev. Cesar Motta Rios Congregação Evangélica Luterana de Miguel Pereira - RJ Ser perdoado é uma bênção. É motivo de alegria, porque nos faz saber da reconciliação. Uma pendência é tirada. Um fardo que nos cansava os ombros é posto de lado. Quando realmente reconhecemos a gravidade do pecado que cometemos, a notícia do perdão é das melhores coisas que se pode ouvir. O perdão é importante, porque o pecado é real, porque a ofensa é real e séria. Toda pessoa cristã sabe disso. E sabe por experimentar isso em sua caminhada. Sim, porque toda pessoa cristã tem consciência de sua própria e inevitável imperfeição. Sempre de novo, portanto, busca ouvir aquelas palavras que só da parte de Cristo podem ser ditas com todo seu valor: “Os teus pecados estão perdoados!” Toda pessoa cristã também sabe que, tendo entrado no âmbito do perdão, é exortada a também perdoar. É preciso que seja perdoada. É preciso que perdoe. Na própria oração do Pai Nosso, somos cotidianamente lembrados disso. “Assim como nós perdoamos”, na oração, é uma séria afirmação da necessidade de que quem é perdoado também perdoe. Aliás, após ensinar a oração, Jesus enfatiza: “— Porque, se perdoarem aos outros as ofensas deles, também o Pai de vocês, que está no céu, perdoará vocês; se, porém, não perdoarem aos outros as ofensas deles, também o Pai de vocês não perdoará as ofensas de vocês” (Mateus 6.14,15). E, se faz falta de ainda mais clareza, Jesus nos contará a parábola do credor incompassivo, que, tendo sua enorme dívida perdoada, não perdoou a pequena dívida de seu conservo (Mateus 18.23-35). Por isso, no Catecismo Maior, Lutero reconhece: “Agora, se tu não perdoas, então não penses que Deus perdoa a ti. Se, porém, perdoas, então tens o consolo e a certeza de que se te perdoa no céu. Não em vista do teu perdoar - pois Deus o faz inteiramente de graça, porque o prometeu, conforme ensina o evangelho, mas ele nos põe isso para fortalecimento e segurança, como sinal, a par da promessa, que concorda com esta oração, Lc 6.37: ‘perdoai, e sereis perdoados’.” (Catecismo Maior, Pai Nosso, Quinta Petição) É consoladora a oração na medida em que nós reconhecemos no perdoar comum praticado na nossa vida diária, nos nossos relacionamentos, a promessa do perdão maravilhoso de Deus para conosco. Dá-nos segurança e alívio! Um problema surge, no entanto, quando alguém se pergunta: “Mas eu realmente perdoo?” E não são poucas as pessoas que passam por esse questionamento diante da óbvia necessidade de se perdoar o próximo. Pessoas perdoadas por Deus sabem que precisam viver o perdão também perdoando. Elas querem mesmo perdoar. Reconhecem a necessidade da reconciliação, e fazem o possível para terem paz com todas as outras pessoas (Romanos 12.18). Isso significa que não devem se vingar, que não devem retribuir o mal com o mal, mas bem o contrário disso (Romanos 12.19-21). Aqui, nesse texto do apóstolo Paulo na carta aos Romanos, vemos algo bem concreto, bem reconhecível nas ações. Alguém fez mal a você? Não faça mal a ele. Faça o bem. Nós conseguimos observar nitidamente nossas ações. E conseguimos ter certo controle sobre elas. O nosso drama começa mesmo quando passamos a atentar para algo além das ações, isto é, para pensamentos e sentimentos. Grandes ofensas deixam cicatrizes, memórias vivas, mágoas e tristezas. Algumas pessoas podem até dizer que não têm nada disso. Vivem numa leveza impressionante. Pode ser que tenham um jeito de ser e se relacionar diferente, um coração agraciado assim. Pode ser que nunca tenham vivido uma ofensa tão drástica. Não nos cabe discernir isso. Mas todos devem reconhecer que, na vida real da maioria de nós, não é simples tudo isso. Para a maioria das pessoas cristãs, perdoar não é simples como apagar um arquivo na “área de trabalho” do computador. Às vezes, é só como apagar um atalho do arquivo, de modo que não fique sempre em evidência. Mas o arquivo, ou uma versão reduzida dele, permanece em algum lugar. E, vez por outra, nós esbarramos nele. Vez por outra, sem percebermos, clicamos em algo, e ele se abre. É para pessoas assim que quero dizer as palavras que seguem. Antes de mais nada, como você já percebeu: Não, você não está só. Seu drama é compartilhado por diversas pessoas de fé. Em segundo lugar, gostaria de afirmar diretamente: Nossa imperfeição no perdoar não deve nos fazer abandonar o caminho do perdão. Não é por não fazermos o melhor pão do mundo que não podemos nutrir nossa família com uma boa fornada de vez em quando. E, veja bem, João diz que amamos, porque Deus nos amou primeiro (1 João 4.19-21). O amor entre nós tem um paralelo com o amor de Deus. Mas isso não quer dizer que Deus nos ame na medida do nosso amor pelo próximo. Nosso amor é imperfeito e, às vezes, inconstante. O amor de Deus é perfeito e eterno. Parece-me que, no caso do perdão, algo semelhante acontece. Deus conclama os perdoados a perdoarem. Os perdoados precisam se dispor a isso. Mas é certo que não o farão à perfeição, como faz seu perfeito Senhor. A imperfeição do amor vivido pelo cristão no dia a dia faz esse amor ser dispensável ou inexistente? Não. Talvez devamos ver assim também o perdão. Já que mencionamos o amor, aproveitemos o ensejo para conduzirmos a reflexão por essa trilha: Conceder o perdão é uma necessidade. Nós devemos fazer isso com nossas palavras e com mudança em nossa ação. A pessoa que pede nosso perdão não deve receber silêncio ou negativa. Deus nos perdoou muito maior pecado, sendo ele Santo. Como alguém imperfeito haveria de negar o perdão a outro imperfeito arrependido? Não é o caso de eu avaliar se sou capaz de perdoar. É o caso de perdoar. E depois, com todas as sabidas dificuldades? Depois, é o caso de amar. Nosso desafio não deve ser nos adentrarmos cada vez mais num ciclo vicioso de incessante e infrutífero questionamento sobre termos ou não termos perdoado realmente. Nosso desafio é vivermos o amor cristão. O amor, é bom lembrar, não é sentimento, mas disposição para com o próximo, vivida não com palavras somente, mas em ação, como verdade que atua na nossa realidade concreta, cotidiana e comum. “Eu te perdoo”. A consequência disso deveria ser: “Agora, eu ajo diferente para com você. Eu te faço o bem.” Por quê? “É assim que meu Senhor fez e ensinou. Eu pequei contra ele. Eu merecia punição. Ele se dispôs a me perdoar. E me fez bem, sem que eu merecesse nada de bom.” Nesse momento, sentimentos não vêm ao caso. Eles poderiam até gerar pensamentos ruins, que produziriam atitudes ruins. Mas negamos a nós mesmos. E vivemos nosso cotidiano para Cristo, para a glória de Deus e para o bem do próximo. Isso pode fazer parecer que os sentimentos não são nada, que simplesmente os desconsideraremos, o que não seria exatamente praticável. Não é assim. Reconheçamos o problema. Simplesmente, antes de dele tratarmos, deixemos que esteja no seu devido lugar, com seu devido tamanho. Propus até aqui que você pode perdoar e ainda ter memória do ocorrido (aliás, memória haverá inevitavelmente) e algum sentimento incômodo. Não precisa esperar o céu no coração para dizer “eu te perdoo”. Agora, lidemos com a mágoa e seus parentes próximos. Antes de mais nada, lembremo-nos de novo da nossa imperfeição. Demos um passo a mais, lembrando-nos de que essa nossa imperfeição é partilhada por todos os seres humanos (exceto Cristo, homem-Deus). Além de sabermos, assim, que nossa resposta à exortação divina não será perfeita, saberemos também que nós também ferimos a outras pessoas, assim como fomos feridos. “Assim como”, aqui, é claro, não indica necessariamente mesma proporção, mesmo tipo de ofensa. Antes de dizermos “Assim como nós perdoamos”, nós pedimos que Deus nos perdoe, porque reconhecemos, na oração, a nossa imperfeição e a necessidade de sermos continuamente perdoados. O fato é simples: Nós também agimos mal para com o próximo. Nós também precisamos do perdão dos outros, mesmo que não necessariamente daquela pessoa a quem perdoamos ou por mesmo tipo de malfeito. O ponto é: O perdão entre nós precisa existir, não só apesar da nossa imperfeição, mas também por causa da nossa imperfeição. Ainda com essa imperfeição em mente, recorremos àquele que é Perfeito, em oração. Lançamos também essa preocupação diante dele, porque ele tem cuidado de nós. Pessoas imperfeitas oram mais. Isto é, pessoas que reconhecem sua carência clamam àquele que realmente pode suprir suas faltas. Por meio de Cristo, nós nos aproximamos de Deus como de um Pai querido e misericordioso, pedindo que, por seu Espírito, nos ajude naquilo que parece faltar no nosso relacionamento com a pessoa que nos ofendeu, e a quem já estendemos o perdão. Nós estamos dispostos a amá-la, nós mudamos nossas atitudes, negando-nos a ação maldosa e praticando a ação benéfica. Mas, sim, resta algo no coração, e nós o confessamos a Deus, e pedimos seu auxílio. O perdão está dado. Mas o coração ainda está machucado. Em resumo, toda essa reflexão sugere os seguintes pontos: 1. Você deve perdoar. 2. Perdoar não significa apagar da memória o ocorrido e ter somente sentimentos bons para com a pessoa perdoada. 3. Uma mudança na ação, agora marcada pelo amor, expressa o perdão que podemos viver entre nós. 4. Nossa imperfeição é um fato. 5. Deus é perfeito e misericordioso. É a ele que clamamos por socorro em meio a isso. 6. O Espírito Santo pode mudar nosso coração, nossos afetos. Por fim, uma lembrança sempre necessária: Nossa peregrinação neste mundo não é aquela de um herói solitário. O amor de Deus nos leva a uma comunhão, a uma grande comunidade de santos-pecadores, de pecadores perdoados e que recebem de Cristo santidade para uma vida nova. Por isso, não pensemos que viver tudo isso que aqui foi pensado se faz somente e de uma vez por todas com uma reorientação das nossas ideias, uma reprogramação cognitiva. A vida cristã é caminhada pessoal e comunitária. Não vamos sozinhos. Vamos nos apoiando. Vamos como rebanho do Bom Pastor. É assim, como ovelhas de seu pastoreio, que ele nos conduz, nos alimenta e fortalece. Estejamos juntos para ouvirmos a Palavra. Estejamos juntos à Mesa da Comunhão. E não nos desanimaremos. Pelo contrário, sempre mais nos apegaremos à Mensagem da ação decidida de Deus em nosso favor: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. Ora, tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos seres humanos e nos confiando a palavra da reconciliação.” (2 Coríntios 5.17-19) Ele o fez! Está feito! Nisso nos alegramos. A partir disso, caminhamos! Miguel Pereira – RJ, 27 de abril de 2023
0 Comments
|
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|