Como muitos, tenho profunda admiração por Dietrich Bonhoeffer, não só por sua história de vida, mas também pela ousadia de sua reflexão. Ainda assim, não posso deixar de avaliar sua interpretação e argumentação. Estou lendo o livro Ética. Ao longo de uma interessantíssima reflexão sobre a supressão do julgamento (e do uso de um saber do bem e do mal) a partir da identificação da pessoa com Jesus Cristo, Bonhoeffer apresenta o seguinte argumento:
"Na parábola do juízo final (Mt 25.31ss), o que afirmamos recebe sua complementação e conclusão. Quando Jesus efetuar o julgamento, os seus não saberão que lhe deram de comer, de beber, que o vestiram e visitaram. Não conhecerão o próprio bem; Jesus o revelará a eles." (p. 27) Ora, não me disponho a avaliar a reflexão como um todo, que, como eu disse, me agrada bastante. O que quero é só negar que esse uso da parábola como prova do que se propõe não me parece adequado. Considere o texto: κύριε, πότε σε εἴδομεν πεινῶντα καὶ ἐθρέψαμεν, ἢ διψῶντα καὶ ἐποτίσαμεν; πότε δέ σε εἴδομεν ξένον καὶ συνηγάγομεν, ἢ γυμνὸν καὶ περιεβάλομεν; πότε δέ σε εἴδομεν ἀσθενοῦντα ἢ ἐν φυλακῇ καὶ ἤλθομεν πρός σε; καὶ ἀποκριθεὶς ὁ βασιλεὺς ἐρεῖ αὐτοῖς· ἀμὴν λέγω ὑμῖν, ἐφ᾽ ὅσον ἐποιήσατε ἑνὶ τούτων τῶν ἀδελφῶν μου τῶν ἐλαχίστων, ἐμοὶ ἐποιήσατε. Senhor, quando te vimos faminto e alimentamos, ou sedento e te demos de beber? Quando te vimos como estrangeiro e acolhemos, ou nu e vestimos? Quando te vimos enfermo ou em cárcere e fomos para junto de ti? E, respondendo, o rei lhes dirá: Em verdade vos digo, cada vez que o fizestes a um destes meus menores irmãos, a mim o fizeste. Você já deve ter entendido meu ponto por causa do que marquei em negrito. A questão da surpresa dos que praticaram o bem não está na suposta novidade da informação de que praticaram o bem. Não está na qualidade da ação, nesta parábola, a novidade que só se conhece no julgamento final. Está, isso sim, na identificação do objeto da ação. A pergunta é sobre quando fizemos isso ou aquilo a ti! Qualquer leitor simples percebe que é disso que se trata. O texto não informa sobre um desconhecimento prévio (ou conhecimento, é verdade) sobre o caráter bom da ação por parte daqueles que agiram bem. Informa claramente, por outro lado, uma surpresa no reconhecimento de que sua ação em favor de outras pessoas menos notáveis era, no fim das contas, ação contada como sendo em favor do próprio Senhor. Ira além disso é ir além do texto. Assim penso. Repito que não estou indo contra a reflexão de Bonhoeffer. Só estou contestando esse argumento pontual, que é um entre outros tantos.
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O procônsul quer que Policarpo deseje a morte dos ateus? (Sobre Martírio de Policarpo, cap. 9)8/13/2017 O amigo Matheus Moreira me enviou o seguinte trecho do Martírio de Policarpo:
"Quando o 'conduziam armou-se grande tumulto por parte dos que perceberam que haviam prendido Policarpo. Logo, quando se aproximou, perguntou-lhe o procônsul se ele era Policarpo. Tendo ele confessado, aquele tentou persuadi-lo a que renegasse, dizendo: 'Tenha consideração a tua idade', e outras coisas parecidas a estas, como tem costume de dizer: 'Jura pelo gênio do César. Muda de pensar.' Diga: 'Morram os ateus!'" Ele disse que não entendeu. Parece confuso mesmo! O romano quer que Policarpo clame pela morte de ateus? Como assim? Cabe tentar uma explicação. Se você lê a continuação da cena, a coisa pode ficar mais confusa ainda! Policarpo olha para a multidão de gente sem conhecimento da lei (ἀνόμων), faz um gesto, e diz algo como “Morram os ateus!” (Αἶρε τοὺς ἀθέους), repetindo exatamente as palavras que o procônsul lhe havia sugerido dizer. Ora, Policarpo fez o que lhe mandou o romano? Não é o que parece pelo desenrolar da narrativa. Policarpo não nega sua fé em Cristo e é morto! Na verdade, ele repete as mesmas palavras, mas diz outra coisa! Há uma interessante disputa semântica na cena. O significado de “ateu” está em discussão. Para o líder romano, “ateus” são os cristãos. Judeus e Cristãos eram acusados de ateísmo por seu culto sem imagens e por não participarem do culto público de cada cidade em que viviam. Ele quer que Policarpo se volte contra os seus. Policarpo, por sua vez, toma o termo e lhe dá outro significado. Ao que parece, para ele, ateus são os que não servem ao Deus verdadeiro, independentemente de sua devoção aos outros deuses disponíveis. O resultado é um caso interessante de cumprir uma ordem sem realmente cumprir, e de repetir sem repetir. Matheus está fazendo o que é bom fazer, isto é, ele está lendo as fontes primárias e conversando a respeito delas! Muito bom! #3 Não leia somente fontes secundárias
Esta postagem é resultado da solicitação de um amigo. Segundo ele, muitos de meus leitores se beneficiariam de algumas instruções mais básicas para quem pretende começar a ler os Pais da Igreja. Dentre todas as diretrizes que eu posso aqui oferecer, a menos discutível é a que me serve de título: “Não leia somente fontes secundárias”. Bom, seguindo o conselho daquele meu amigo, deixarei tudo mais bem explicado: No presente caso, fontes secundárias são aqueles textos escritos a respeito das obras dos Pais. Se você pega um livro sobre História da Igreja, mesmo um bem simples como o de González, encontra algumas páginas sobre Irineu de Lyon, por exemplo. Você lê e se informa superficialmente a respeito desse Pai a partir das leituras realizadas por González. E veja que o próprio González não escreve somente a partir dos textos de Irineu de Lyon. Ou seja, ao ler González, você não toma conhecimento direto sobre o que escreveu Irineu de Lyon, mas também sobre a leitura que González (junto com outros) fez de Irineu. Para ser claro: Conhecer o que González diz sobre Irineu não é conhecer Irineu, embora seja conhecê-lo um pouco melhor do que antes de ler qualquer coisa a respeito dele. Meu conselho inicial, então, é: Não leia somente obras sobre Irineu (e outros Pais). Leia as obras de Irineu (e dos outros Pais). Um segundo conselho que me parece pertinente é: Não leia somente fragmentos, trechos das obras dos Pais. Enfrente textos inteiros. É certo que poucos podem dedicar tempo para a leitura da obra completa de um Pai, sobretudo de um daqueles que muito escreveram, como Agostinho. Mas, ao decidir conhecer um autor específico, é bem possível escolher dele um texto para conhecer por inteiro. Isso possibilita uma visão privilegiada a respeito do pensamento do autor, sobre como ele começa um argumento e o conclui, sobre como ele trabalha (ou deixa de trabalhar) com os textos bíblicos no decorrer do texto etc. Diferente do que geralmente se entende, sugiro até mesmo que se enfrente o começo da leitura do texto escolhido do Pai antes de se ler sobre esse Pai em fonte secundária. À medida em que o leitor descobre o texto do Pai em si, pode se valer de fontes secundárias e de trechos de outros escritos do mesmo Pai para começar a fazer conexões bem estabelecidas. Eu deveria, também, fornecer algum roteiro. Desculpem-me. Suspeito que vou frustrar alguns nesse ponto. Pessoalmente, acho interessante começar por uma lógica minimamente cronológica, mas não estrita. Isso significa que me parece sensato começar pelos Pais Apostólicos (que são os cronologicamente mais próximos do Novo Testamento) ou, pelo menos, pelos ante-nicenos (aqueles que escreveram antes do Concílio de Niceia). Mas, se alguém quisesse começar por Cidade de Deus ou Confissões de Agostinho, eu não diria que seria um problema. O fato é que a diversão está na possibilidade de cada um traçar o seu percurso, descobrir sua trilha. Eventualmente, lendo certo texto de um Pai, você descobre que precisa conhecer outro Pai para apreender melhor o que ali se desenvolve ou, pelo menos, para compreender um pouco de onde vem o fundamento que possibilita tal ou tal afirmação. Alguns tropeções são inevitáveis. Algumas pausas para repensar o trajeto se fazem necessárias. Mas é justamente nessa experiência que se encontra a instigante dinâmica da leitura de textos antigos. Imagine só se eu percorresse várias obras de diversos Pais, anotando todos os detalhes de minha experiência, e traçasse um mapa para você. Então, você, bem disciplinado, seguiria exatamente conforme o proposto. No final das contas, quando nós nos reuníssemos para uma prosa com café, o que aconteceria? Teríamos lido os mesmos textos. Isso é bom? Em partes. É bom que tenhamos leituras em comum para que nos entendamos bem. Mas é interessantíssimo que cada um tenha conhecimento de textos específicos, para que, no diálogo, cada um contribua suprindo a falta do outro. Não é bom que o leitor esteja só (ou meramente com uma cópia de si mesmo)! Essa dessemelhança é importante! E, por outro lado, havendo essa dessemelhança, haverá uma semelhança positiva: Nós dois teremos tido experiências próprias, descobertas e atritos específicos com os textos. Seremos semelhantes no fato de termos diferenças peculiares! Nisso está a emoção da coisa! Há anos, um amigo me disse: “Se eu chegar à idade do professor Fulano com o conhecimento que ele tem, eu fico feliz.” Eu discordei. Disse que gostaria de ter o mesmo volume de conhecimento dele, mas não o mesmo conhecimento. Não é que o conhecimento de Dr. Fulano não fosse notável! É que Fulano já existia. Não faria sentido existir outro exatamente como ele. Não seria valioso. O valioso é que haja diversidade de percursos e combinações de conhecimentos. Se você pensar bem, cada pessoa que estuda acaba tendo uma combinação própria. Isso acontece melhor quando o sistema de ensino/aprendizagem fomenta alguma liberdade e autonomia. Minha proposta para a leitura dos Pais tem a ver com isso. Enfim, leia. Não vai bem? Converse com alguém! Procure outro texto! Comente por aqui! Leia e interaja. É esse o caminho. Agora, vamos a uma parte mais prática: Onde encontrar os tais textos dos Pais? Bom, se você lê bem em inglês, eu sugiro um passeio por aqui para ler textos cristãos (e não cristãos, mas pertinentes) mais antigos: http://earlychristianwritings.com/ Para uma coleção mais ampla dos Pais em geral, o seguinte site é fenomenal: http://www.newadvent.org/fathers/ Se você precisa dos textos em português, um bom recurso é a coleção publicada pela Paulus: http://www.paulus.com.br/loja/patristica_c_113_114.html Agora, se seu interesse é mais acadêmico e exige edições mais citáveis e acesso aos originais, você pode recorrer à coleção LOEB da Harward University Press e às tradicionais edições Patrologia Graeca e Patrologia Latina. Uma boa forma de acessar esses livros é visitar uma biblioteca de instituição de ensino de teologia. Se houver uma boa instituição católica em sua cidade, fica mais fácil. Se quiser, pode também se valer dos seguintes sites: http://patristica.net/latina/ http://patristica.net/graeca/ http://latinonline.es/bilingues-latin-ingles-dominio-publico-loebulus/ Esse último link, aliás, interessa não só pela Patrística. Há obras de diversos tipos. Vou encerrar este texto por aqui. Eventualmente, no futuro, posto uma nota sobre fontes secundárias. Abraço fraterno! Cesar #2: Não fuja, despreze ou oculte o que não é de seu agrado (Santa Ceia/Eucaristia e Sacrifício)8/2/2017 Da série Como não ler os Pais da Igreja!
#2: Não fuja, despreze ou oculte o que não é de seu agrado. Na última postagem desta série, adiantei que haveria de comentar sobre outro erro comum entre leitores dos Pais da Igreja: ignorar os dados que desagradam. Trabalharei a partir de um exemplo específico e, a meu ver, significativo. Robert Rosin, professor de História da Igreja no Concordia Seminary (Saint Louis), certamente já leu muito mais que eu dos Pais da Igreja. Contudo, em um texto intitulado “Lutero, a Santa Ceia e Roma”, parece-me que ele deixa de mencionar dados importantes para a exposição que desenvolve. É possível que o faça por esquecimento (do que desagrada) ou para evitar incômodo em seus leitores (por causa do que desagrada). Seja qual for o caso, não se trata de atitude produtiva e academicamente adequada. Para começar, uma citação longa (tome fôlego!): “Ao mesmo tempo, sementes de outros problemas germinaram e cresceram. Uma foi a questão da Ceia ser um sacrifício. O Papa Gregório o Grande (590-604 d.C.) colocou o fundamento quando disse que embora Cristo tenha ressuscitado de modo que a morte não tenha poder sobre ele, Cristo ainda assim era trazido a nós ‘por meio do mistério do santo sacrifício’. Podemos compreender como o ‘sacrifício’ poderia ganhar impulso. Afinal, os sacerdotes ofereciam sacrifícios no Antigo Testamento. E Cristo é mostrado no Novo Testamento como o grande Sumo Sacerdote que sacrificou a si mesmo. Claro, não se fala no Novo Testamento de outros sacerdotes que sacrificam, mas argumentando que a Igreja é fundamentada em Pedro, a rocha, como vigário – ou substituto (como na expiação vicária) – então Pedro deveria fazer o que Cristo fez. E aos apóstolos também foi dada a incumbência de continuar a fazer o que Cristo fez, a saber, sacrificar. Eu não concordo com esta lógica. Dar os elementos com promessas de salvação não equivale automaticamente a sacrificar. Mas podemos compreender como o argumento é feito. Além disso, lembre-se do contexto. Enquanto um império caía aos pedaços, a Igreja foi incumbida de levantar um sinal de força, esperança e estabilidade. A própria Igreja e o clero como um símbolo de poder visível (por causa dos sacramentos visíveis) poderiam servir muito bem.” (ROSIN, 2009, p. 15) Perceba que a apresentação do entendimento da Eucaristia/Ceia como sacrifício faz o leitor considerar que o responsável foi o Papa Gregório o Grande. É ele que coloca o “fundamento”. O trecho que Rosin cita do referido Papa (‘por meio do mistério do sacrifício’) é tomado da obra História da Teologia de Hägglund. Esse acesso indireto é outro problema sobre o qual haveremos de conversar. Agora, o que me interessa é observar que, para ser honesto e preciso, não se pode sugerir que somente no século VI d.C. tenha ganhado força a ideia da Ceia como sacrifício. É certo que a palavra de um Papa é importante para fortalecer um entendimento. Deveria, sim, ser mencionada. Mas precisa ficar claro que não foi ele que inventou a ideia do sacrifício eucarístico ou garimpou uma ideia existente, mas rara. Pelikan, um leitor atentíssimo dos escritores antigos, observa: “Como a referência de Irineu à Eucaristia como ‘não pão comum’ indica, contudo, essa doutrina da presença real crida pela igreja e afirmada por sua liturgia estava estreitamente vinculada à ideia da Eucaristia como sacrifício. Muitas das passagens que já citamos a respeito da recordação e a presença real falavam também do sacrifício, como quando, em várias passagens ambíguas, Justino contrastava o sacrifício do judaísmo com o sacrifício oferecido em ‘rememoração efetuado pelo alimento sólido e líquido’ da Eucaristia Cristã.” (PELIKAN, 1975, p. 168) A bem da verdade, o termo “altar” associado à Eucaristia/Santa Ceia já é suficiente para se sugerir alguma relação da refeição ritual com algum tipo de ato sacrificial. Entendo que o termo em português já é suficiente para isso, mas, se é preciso fortalecer o argumento, veja como isso acontece em grego no início do século II d.C.: Σπουδάσατε οὖν μιᾷ εὐχαριστίᾳ χρῆσθαι μία γὰρ σὰρξ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ καὶ ἓν ποτήριον εἰς ἕνωσιν τοῦ αἵματος αὐτοῦ ἓν θυσιαστήριον ὡς εἷς ἐπίσκοπος ἅμα τῷ πρεσβυτερίῳ καὶ διακόνοις τοῖς συνδούλοις μου ἵνα ὃ ἐὰν πράσσητε κατὰ θεὸν πράσσητε "Esforçai-vos diligentemente por fazerem uso de uma só eucaristia, pois uma é a carne do nosso Senhor Jesus Cristo; um é o cálice para a unidade do sangue dele; um é o altar, como um é o bispo, junto com o presbitério e os diáconos, meus conservos,para que aquilo que vierdes a fazer, o façais conforme Deus." (Carta de Inácio de Antioquia aos Filadélfios 4:1 - Minha tradução) Agora, considere o termo grego para altar: θυσιαστήριον é formado a partir do termo θυσία, que significa justamente “sacrifício”, juntamente com o sufixo -τήριον, que expressa a ideia de lugar (em que acontece tal ou tal coisa). Trata-se do lugar do sacrifício. No fim das contas, um altar é justamente isso! Como poderiam os primeiros cristãos manterem longe a ideia de sacrifício? Não usando esse termo, mas mantendo a Santa Ceia como algo que acontece à mesa simplesmente. E veja que o problema é tratado sem a devida atenção, de tal modo que, eventualmente, acontece de alguém que nega qualquer ideia sacrificial da Ceia recorrer a Hebreus 13.10 para falar exatamente da Ceia. Ora, se Hebreus 13.10 é para ser lido literalmente como se referindo à Santa Ceia (exemplificando a exclusão de alguém dela), temos que admitir que, dentro do próprio cânone, temos uma Ceia que acontece em um lugar de sacrifício. Pois diz: ἔχομεν θυσιαστήριον ἐξ οὗ φαγεῖν οὐκ ἔχουσιν ἐξουσίαν οἱ τῇ σκηνῇ λατρεύοντες. Temos um altar/lugar de sacrifício do qual não podem comer os que servem ao tabernáculo. (Hb 13.10 - Minha tradução) Discutir isso detidamente exigiria outra série de postagens. Alguém poderá tentar vincular esse lugar de sacrifício com o sacrifício de louvor, o que não resolveria tudo, é claro. Mas, enfim, meu propóstio é bem humilde. Só quero deixar claro que colocar o entendimento de uma relação estreita entre Ceia e sacrifício na conta de Gregório o Grande não tem cabimento. Quem já está satisfeito com o exemplo (ou com raiva demais) pode parar de ler por aqui. O texto já está bem grande. Mas acrescento o outro exemplo planejado, com mais uma citação de Rosin: “Em seu livro “Acerca do corpo e sangue do Senhor” (De corpore et sanguine Domini) do século IX, Pascásio Radberto (c. 790-860) argumentou que, depois de ditas as palavras da consagração, não haveria mais nada além de corpo e sangue – não mais pão e vinho, apenas a forma ou aparência externa. Em outras palavras, o que estava lá talvez tenha aspect, tato, olfato e sabor de pão e vinho, mas era de fato e na realidade a mesma carne e sangue que nasceram da virgem Maria. Para Radberto isto seria um reforço para Agostinho: estes elementos eram não apenas um sinal vazio; de fato eram mais do que aquilo que pareciam ser; eram realmente corpo e sangue exatamente lá e em nenhum outro lugar. Note: Radberto praticmanete ensinou a essência da transubstanciação, porém sem usar o termo.” (ROSIN, 2009, p. 16-17) Radberto é muito famoso (e frequentemente apresentado de modo emblemático em comparação com Berengário e Ratramno), mas, de alguém que se dedica à História da Igreja, espera-se o cuidado de reconhecer a maior antiguidade dessa proposta, ou de algo bem aproximado. Os seguintes trechos de Cirilo de Jerusalém nos servem bem aqui: “Não te aproximes, pois, do pão e do vinho como se meros elementos vazios. Pois acontece de serem corpo e sangue de Cristo, segundo a sentença do Senhor. Com efeito, mesmo que a percepção sensorial te sugira isso [que são simples elementos vazios], a fé te mantenha firme e certo! Não julgues a coisa a partir do paladar, mas, a partir da fé, sem hesitação, fica plenamente seguro, tendo sido considerado digno do corpo e do sangue do Senhor.” “Tendo aprendido essas coisas, e tendo ficado plenamente seguro de que o que aparece como pão não é pão, mesmo que seja assim sensível ao paladar, mas corpo de Cristo; e que o que aparece como vinho não é vinho, mesmo que o paladar isso queira, mas sangue de Cristo...” (Aulas Catequéticas XXII 6 e 9) Ora, no século IV, havia um Pai da Igreja ensinando que os que parecia pão já não era pão etc. Pode desagradar a um luterano ou a seu público que essas ideias circulassem com mais frequência e por mais tempo. Mas os fatos estão aí para serem descobertos e discutidos. Quem não quer enfrentá-los quando não parecem convenientes deve procurar outra área de interesse. Portanto, ao ler os Pais, não fuja dos dados que não te agradam, nem os esconda! Na próxima semana, apresentarei um texto mais ameno. Um amigo me sugeriu uma postagem mais instrutiva, com sugestões para quem ainda não tem o hábito de desbravar a patrística por conta própria. Espero, em meio aos meus próprios devaneios, ser capaz de apresentar caminhos a outrem. Aproveito para comentar que não estou deixando ou pretendendo deixar de ser luterano. Como disse a um amigo por estes dias, o que pode produzir alguma estranheza é o fato de que, quando leio, não leio como luterano ou como não-católico romano, não-pentecostal, não-reformado ou não-qualquer coisa. Leio como um leitor que pretende ser atento, perspicaz e honesto com os textos. Só isso. ------------ PELIKAN, Jaroslav. The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine. Volume 1: The Emergence of the Catholic Tradition (100-600). Chicago: The University of Chicago Press, 1975. ROSIN, Robert. Lutero, a Santa Ceia e Roma. In: BUSS, Paulo (Org.) Comunhão e Separação no Altar do Senhor: Textos do 2º Simpósio Internacional de Lutero. Porto Alegre: Concórdia, 2009. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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