Logo de início, vou dizendo que não consigo responder satisfatoriamente essa pergunta. Se o leitor quer respostas convictas e sistematizações absolutas, deve procurar outras fontes. O que farei é simplesmente assinalar alguns pontos que percebo serem frequentemente esquecidos quando o assunto é abordado.
1. Eu não digo que há diferentes tipos de amor em grego. Essa é uma afirmação feita a partir de nossa perspectiva. Um falante de grego antigo não tinha o termo “amor” para identificar agapáo, philéo e outros termos como tipos de tal coisa. O que acontece é que agapáo, philéo e outros termos fazem parte de um mesmo campo semântico (grupo de significados pertinentes a uma mesma área de sentido). São coisas ou fenômenos diferentes, mas parecidos. Como todos sabem, não há correspondência perfeita na diversidade de palavras entre uma língua e outra. Por isso, um idioma pode usar um só termo para traduzir mais de um termo de outro (e o contrário também pode acontecer, claro). 2. Não entendo que agapáo e philéo sejam sinônimos pelo simples fato de que não acredito em sinônimos. Explico: não acredito que existam sinônimos perfeitos em textos extraordinários, como os literários ou sagrados, nos quais qualquer variação pode ser significativa. Em bilhetes de geladeira, jornais populares ou cartas comerciais pode haver sinonímia, claro. 3. agapáo não é “amor cristão” exclusivamente, nem é um termo inovador peculiar do cristianismo. Embora não seja extremamente frequente na literatura grega, aparece muitíssimas vezes na Bíblia grega. Ou seja, faz parte do vocabulário adotado pelos tradutores judeus da Bíblia hebraica, e de textos produzidos por judeus em grego (como Sabedoria de Salomão, por exemplo). 4. agapáo não é amor de Deus para com o ser humano e do ser humano para com Deus somente, pois os humanos são convidados a vivenciar tal “coisa” entre eles mesmos (Lv 19:18, na tradução grega; e suas retomadas no NT). E essa tal “coisa” é narrada de fato como acontecendo entre pessoas de distintas relações, tanto na Bíblia grega (Gn 22:2, Abraão-Isaque, isto é, pai-filho), quanto no NT (Ef 5:25, marido-esposa). 5. agápe, substantivo correlato do verbo agapáo, não deve ser traduzido por "caridade". Primeiro, porque em vários contextos a ideia soaria estranha demais. Segundo, porque o texto de Coríntios 13 impede definitivamente essa leitura (ver verso 3). Pois bem, perguntaram-me sobre a diferença entre agapáo e philéo, e eu acho que não sei muito bem. Procurei alguma resposta pronta, um estudo que considerasse essas observações que expus acima. Ainda não achei. Suspeito que não sei muito bem. Mas suspeito também que tem muita gente que acha que sabe bem, mas não sabe. O que sugiro então é que cada um continue sua busca, lendo o que encontrar pela frente, e, se julgar conveniente ou suportável, que tenha esses cinco pontos que adiantei em consideração, para não aceitar respostas fáceis facilmente. Confesso suspeitar, pelas ocorrências de que me lembro, que agapáo envolva algo mais forte ou enraizado que philéo. Mas isso serviria para todos os contextos e ocorrências dos termos? É possível encontrar um padrão de significado para esses dois verbos em todo o corpus judaico-cristão? Se não, deveríamos investigar um sistema de significado específico em um só texto ou autor? Afinal, o estudo do grego não dá todas as respostas. Muitas vezes, o resultado é que o aprendiz se torna mais insatisfeito com as respostas disponíveis, e desconfiado de suas próprias hipóteses. Isso é até bom, pois faz pensar, dá trabalho. Estudar grego, no fim das contas, é um trabalho que te dará mais trabalho pela frente.
2 Comments
E os versículos entre colchetes? Você concorda que eles não são inspirados? - Pergunta de um leitor9/12/2017 Um amigo e leitor me perguntou: “Gostaria de fazer uma pergunta para ti que sempre tive dúvida. Nós entendemos que Bíblia é a Palavra de Deus inspirada por ele. Penso que você deve crer nisso. Como entende aqueles versículos que alguns falam que foram colocados posteriormente, como por exemplo doxologia do Pai nosso?” Bom, vou tentar responder da forma mais breve e simples possível. E nem vou me preocupar em explicitar minha opinião mais pessoal. Quero só pontuar algumas perspectivas diferentes. O problema vem a nós por meio da Crítica Textual, esse campo do conhecimento que pretende encontrar, a partir da comparação entre os manuscritos disponíveis, ao texto mais próximo possível daquele que teria primeiro circulado. Os grandes nomes da Crítica Textual preparam edições do texto do Novo Testamento Grego. Os tradutores, revisores, estudiosos em geral adotam essas edições (em geral, a Nestle-Aland) para suas tarefas. Então, se um versículo foi acusado como adição posterior pelos críticos textuais dotados de autoridade acadêmica, ele vai aparecer marcado como não sendo parte do texto bíblico tal qual escrito inicialmente (ou vai ser logo excluído mesmo). Pois bem, há muitas possibilidades de posicionamento pessoal diante de um problema como esse. Comento apenas três que parecem unir mais pessoas em grupos discerníveis (Atenção: eu uso um modo de falar que pode dar a entender que concordo com cada uma delas, o que é impraticável. Apenas escolhi manter uma imparcialidade.)
Acho que é por aí. No Brasil, temos todas essas opções em circulação por aí. Respeito-as. P.S. A imagem não é das melhores, mas foi a que consegui do 2437, manuscrito grego com os Evangelhos, que faz parte do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|