12 SÉRIES DA NETFLIX COM QUESTÕES RELIGIOSAS INTERESSANTES
É bem sabido que o sobrenatural passeia por várias obras de ficção das mais diversas épocas. Algumas vezes, há referências claras a formas religiosas específicas. Outras vezes, há somente alguma conexão discreta. As séries da Netflix, assim como obras literárias, o cinema, o teatro, as artes plásticas e diversas outras formas de produtos culturais carregam em si algo do tipo, seja como algo fundamental para o enredo, seja como um acréscimo. É claro que meu pequeno catálogo é restrito àquilo que assisti (no caso de algumas, temporadas completas; no caso de outras, alguns episódios). A proposta é que você descubra alguma coisa que não descobriu ainda, ou se disponha a colaborar com a lista, acrescentando algo nos comentários. Vamos lá! Sua tarefa básica é anotar o que te interessa e contar o que já assistiu. [Observação: Esta não é uma lista de séries “edificantes”.] 1 O SEGREDO DO TEMPLO (Série Turca) A questão religiosa/sobrenatural é fundamental para a trama. Não há exatamente uma definição de religião atual que seja coerente com o que ali se delineia. O mais importante é uma religiosidade apresentada como antiquíssima, que vai se revelando ao longo dos episódios. Há, também, o que é interessante do ponto de vista da sociologia das religiões, uma consideração da interação popular com manifestações (realizadas em pessoas específicas) dessa religião antiquíssima e não institucionalmente localizada. Há algo de instigante. Sugiro conferir. 2 OS CAMINHOS DO SENHOR (Série Dinamarquesa) O enredo todo trata da vida de uma família ligada à Igreja Dinamarquesa (Luterana). Inicialmente, sabemos que há um pai que é pastor e anseia ser bispo. Há um filho pastor, que tem um estilo completamente diferente daquele do progenitor, além de ambições diferentes e outras experiências. E há o outro filho, que estudara para ser pastor, mas desistira do caminho. Por acontecimentos inesperados, ele acaba se envolvendo com o budismo. A mãe desses dois filhos apoia o marido, mas vive uma séria crise com ele também. Acaba se envolvendo em um relacionamento extraconjugal homossexual. A qualidade da produção é excelente e, como você deve ter percebido, não faltam temas interessantes e polêmicos. Além do mencionado, acrescento que há um debate sobre crença-descrença, cristianismo somente-pluralismo religioso, fé-decadência da igreja institucional, dependência química, suicídio etc. Sugiro que você já devia ter visto. Não perca mais tempo. 3 3% (Série Brasileira) Essa eu não consegui acompanhar até o fim. Se não me engano, assisti duas temporadas. Na distopia representada com falhas (o figurino dos esfarrapados é um fiasco), há uma “igreja”, que tem uma “liturgia” que a caracteriza como tal, mas uma substituição do “transcendente” pela situação de vida conseguida e oferecida (a 3% somente) por uma elite privilegiadíssima. O sacerdote desse culto convida à crença e há todo um conflito “de fé” em torno de si. É um tanto óbvio o aspecto meio caricaturesco da religião como alienante. Vale conferir? Olha, se não tiver nada para ver, assiste para comentar. 4 TEMPLÁRIOS (Série norte-americana) Quem procura um documentário pode se frustrar. De fato, embora jogue com personagens históricos e, inclusive com alguns eventos conhecidos, Templários é uma obra de ficção. (Algo que, historicamente, foi motivado por uma questão financeira, por exemplo, passa a ter como fator motivador decisivo uma questão passional. Curiosamente, uma breve fala insere a questão financeira na conversa, como se o enredo quisesse dizer: “Ei, eu sei o que você leu nos livros. Estou mudando por necessidade.”. O enredo, aliás, é bom. Questões de religiosidade estão em voga o tempo todo, frequentemente, em tensão com questões de fidelidade pessoal, castidade e diferença de gênero (essa, num relacionamento conjugal). 5 LA CATEDRAL DEL MAR (Série espanhola) Essa produção espanhola conta uma história de superação no século XIV. A religiosidade entra em cena, de forma um tanto óbvia, pela presença vívida da Igreja Católica Romana. A piedade católica (incluindo a devoção mariana) é bem retratada. Muito interessante é o tratamento da questão judaica. É uma série muito bem feita (e dispendiosa, inclusive). Ótimo enredo, figurino, fotografia etc. 6 THE RAIN (Série Dinamarquesa) Escrevi sobre essa antes. Então deixo os seguintes links para quem quiser conferir: Mas acrescento que recomendo fortemente! 7 RAGNAROK (Série norueguesa) A série lança mão da mitologia nórdica. Em meio a uma maioria de personagens humanos, que vivem uma vida bastante normal no interior da Noruega, há divindades antigas. Os gigantes dos tempos antigos são, agora, um clã milionário que controla a principal indústria da cidade. Um jovem que chega para morar ali com a mãe e o irmão recebe uma nova condição existencial após ser tocado por uma anciã. Ele passa a ocupar o lugar dos deuses na luta contra os gigantes. Usa um martelo eventualmente, inclusive. Não há nada de cristianismo ou religião moderna retratado na série. É boa? Olha... Tem muito jeito de série mais para adolescentes, com esse acréscimo mitológico. Se não tiver nada para ver, vale conferir... talvez. 8 ANNE WITH AN E (Série canadense) Na verdade, essa série que é uma queridinha de muitos brasileiros não trata de religião e religiosidade como seu tema ou como algo fundamental para a trama. Mas, quando a fé cristã se faz presente num momento de tristeza e dor, isso acontece de forma tão bonita e significativa que a série inteira merece estar nesta lista. Recomendo de olhos fechados. 9 MESSIAH (Série norte-americana) Há um sujeito sendo tratado como messias. Ele circula no meio muçulmano, mas vai rompendo esses limites religiosos, sendo também admirado entre pessoas cristãs. Desperta curiosidade de todos pelos sinais que o seguem. O instigante é a contínua dúvida sobre o que há de verdadeiro, o que há de falso e o que há que vá ser descoberto. O paralelo com Jesus é óbvio e aproveitado com certa capacidade no enredo. Num momento, a pergunta pode direcionar ao ceticismo: se esse é falso, o anterior também não seria? Noutro momento, pode suspeitar dos limites da negação: e se esse também não for falso? Vale a pena ver? Eu acho que sim. 10 AD VITAM (Série francesa) Nessa ficção científica, a imortalidade é alcançada pela ciência, não pela intervenção divina. Curiosamente, a possibilidade de não morrer não resolve o dilema humano. E isso se mostra de modo cabal no fato de que há um grupo de resistência, que, numa organização quase litúrgica, cultiva a via tradicional, isto é, o morrer. Boa série. Eu a mencionei numa postagem em que comentei sobre Altered Carbon. O link está aqui: 11 NADA ORTODOXA (Série germano-americana) A série tem como protagonista uma jovem judia norte-americana, que, assim como a mãe antes dela, vai viver a ruptura com a comunidade hassídica, migrando (literalmente e simbolicamente) para um modo de vida diferente. É interessante pela curiosidade que desperta o judaísmo ortodoxo. Certamente, não se trata de um documentário, embora a narrativa seja levemente baseada em livro autobiográfico homônimo de Deborah Feldman. Há alguma polêmica sobre as diferenças e a pertinência ou não de algumas representações. Como ficção, pelo menos, é uma excelente série. 12 THE LAST KINGDOM (Série inglesa) Essa é brilhante! The Last Kingdom traz uma trama intensa ambientada num contexto interessantíssimo. A invasão dinamarquesa na Grã Bretanha do século IX d.C. O protagonista é um saxão que foi criado por dinamarqueses invasores e, em certo momento, volta ao convívio com os saxões. Ele vai viver aquele dilema de pertencimento e fidelidade. Acaba sendo guerreiro ao serviço do Rei Alfredo de Wessex (o sujeito que põe na cabeça a meta de unificar a Grã Bretanha). A religião está em cena o tempo todo: há um Deus ou deuses? Os deuses dinamarqueses são tão verdadeiros quanto o Deus dos saxões? O que acontece com a pessoa após a morte (curiosamente, esse ponto aparece mais na perspectiva dos dinamarqueses)? O protagonista é cristão? Como vivem e agem os clérigos? Clérigos podem lutar? Dinamarqueses podem se converter ao cristianismo? Quando isso acontece, é por fé ou por conveniência política? Enfim, há muito para pensar. Mas mesmo quem não se interessa por isso pode gostar da produção, que é excelente na música, na fotografia, no enredo e no jogo com a história. Óbvio que, novamente, não se trata de documentário. Mas há até algum humor nessa construção de diferenças, já que a própria narrativa insere um motivo para ser ela mesma diferente do que está registrado como histórico. -------------------- É isso! Sei que há outras, mas não tenho tempo para assistir tudo. Diga você! [Eu disse que não era uma lista de séries “edificantes”, mas, certamente, toda reflexão teológica, bem orientada pela Palavra, sempre será edificante, independente de seu ponto de partida.]
1 Comment
As palavras “Lei” e “Evangelho” ecoam facilmente em todas as tradições cristãs. Deve ser difícil encontrar uma pessoa (que frequente qualquer igreja) que não esteja a elas habituada. Mas o par assim colocado, “Lei e Evangelho”, é especialmente comum no âmbito luterano. E isso não surpreende, uma vez que vem de longa data, da década de 1570, uma tarefa tida como seríssima para o luteranismo: “Cremos, ensinamos e confessamos que a distinção entre lei e evangelho, como luz especialmente gloriosa, deve ser mantida com grande diligência na igreja” (Fórmula de Concórdia, Epítome, V). Como tudo que é assunto, também essa distinção pode suscitar longas conversas, desdobramentos e aprofundamentos instigantes. Aqui, contudo, meu objetivo é bem despretensioso. Quero somente traçar umas linhas fundamentais, pensando em pessoas não luteranas que queiram entender como se movimenta a teologia, a liturgia e a piedade luteranas. (Claro que pode haver também pessoas luteranas desejosas de uma rápida revisão. Serão sempre bem-vindas!) Faço, então, uma seleção de pontos que entendo carecerem de mais imediato esclarecimento. Primeiro, observo que há uma questão semântica, uma questão de sentido dos termos, que precisa ser bem entendida. Quando falamos de Lei e Evangelho, não estamos falando de gênero do discurso. Lei não será necessariamente um texto legislativo, com afirmações organizadas e precisas de ordens e proibições. Evangelho não será um dos quatro primeiros livros do Novo Testamento, nem o conjunto total do que ensinaram Cristo e os Apóstolos. Sim, os termos podem indicar isso e aquilo, mas, quando falamos do par Lei e Evangelho e de sua distinção, estamos falando de outra coisa. Lei é toda Palavra de Deus dirigida a nós que nos confronta, demonstrando que somos pecadores, demandando ou cerceando uma ação (ou disposição interior etc.). Essa Palavra pode ter a forma de conjunto de regras explícitas (“Faça isso... Não faça aquilo...”), mas pode ser apresentada na forma de uma narrativa, por exemplo. Aliás, justamente, porque narrativas fornecem exemplos positivos e negativos que definem comportamentos aprovados ou reprovados. Então, a Lei nem sempre contém a forma gramatical de um imperativo, mas sempre demanda algo de nós. O Evangelho, por outro lado, é a Palavra de Deus dirigida a nós para nos consolar, nos garantir que Deus nos acolhe, nos perdoa e nos dá vida. Num sentido mais completo e estrito, o Evangelho afirma que Deus nos concede tudo isso de graça por meio de Cristo. Evangelho é sempre sobre Deus fazer algo em nosso favor. Evangelho é essa boa notícia simplesmente. Não há uma demanda. Não há exigências como parte do Evangelho. E o Evangelho não tem a finalidade de mostrar que somos pecadores. Isso é função da Lei. Veja que tanto a Lei quanto o Evangelho são Palavra de Deus. Não se trata de invenção humana ou muleta religiosa. Palavra de Deus. E Deus usa tanto Lei quanto o Evangelho de modo dinâmico para conduzir as pessoas à comunhão consigo mesmo. Não há Evangelho bem pregado sem que se faça escutar também a Lei. E não há Lei realmente útil em seu objetivo final se o Evangelho não é proclamado com todo vigor e toda radicalidade. Agora, considere as seguintes afirmações (que você, como eu, já deve ter encontrado por aí): “Tem que pregar o Evangelho inteiro, e não só a parte boa!”, “O Evangelho exige mudança de vida” e afins. Se pensamos no sentido estrito de “Evangelho”, em sua distinção para com “Lei”, essas afirmações não se sustentam. O Evangelho não tem parte que não seja boa. O evangelho não exige nada, mas afirma que toda exigência foi cumprida. Imagino que quem muito diz essas frases esteja pensando sempre num sentido mais amplo. Evangelho seria, nesse caso, o ensino dos apóstolos, talvez. Mas pode haver nesse hábito, se constante, um problema também. Se só se usa o termo nesse sentido, pode ser que se perca de vista o Evangelho no sentido estrito, essa Palavra de graça, uma vez que sempre que se pensa nela, está misturada e confundida com a Lei. Toda vez que esse risco se avizinha, a teologia luterana fica alerta, porque está empenhada em manter “com grande diligência” a distinção entre Lei e Evangelho, sem a qual a doutrina da justificação pela fé se esmorece. Cesar M. Rios
E por que fazer isso? Por que não simplesmente viver a fé como se não houvesse ontem? Ou, talvez para ser mais correto, por que não simplesmente viver a fé como se o único passado que importasse fosse o das páginas da Bíblia e da história grandiosa de mártires e reformadores? Penso em uns poucos motivos que me fazem afirmar a importância da história da Igreja Local. Não são todos os possíveis, mas podem dar alguma ideia:
Algo mais? É certo que há. Você conhece a história de sua congregação/comunidade/igreja local? Cesar M. Rios Talvez a pergunta pudesse ser “Quem é Lesslie Newbigin?”, porque, ainda que já falecido, Newbigin é alguém que ainda tem muito a dizer ao mundo, e à Igreja inclusive. E, felizmente, deixou uma obra extensa para isso acontecer. Ao final deste texto, deixo uma lista de seus livros para dar uma ideia melhor disso. Por agora, melhor contar sobre o que faz dele alguém tão especial a meu ver.
Reflexão É justamente essa experiência diferente que faz com que, voltando à Grã Bretanha, ele tenha muito a dizer. Ele conhece uma realidade diferente para o cristianismo. Ele vê o encontro com outras religiões a partir de uma perspectiva diferente: não a do teólogo inglês que vê surgirem algumas manifestações de outras crenças religiosas em sua grande cidade, mas a do cristão que foi minoria em um mar de diferenças. O diálogo, para Newbigin, tem outro tom. Ele conhece o olhar dos outros, o olhar que não é eurocêntrico, Ocidental. Sendo convidado para falar em diferentes instituições acadêmicas, Newbigin produz uma reflexão densa e sábia ao longo da segunda metade do século XX. Esse trabalho dá origem a diversos livros. Diálogo inter-religioso Destaco que Newbigin não propõe um olhar arrogante do cristianismo para as outras religiões. Por outro lado, não é um simples pluralista. Percebe como incoerente a afirmação de que todas as religiões são igualmente “verdadeira”. Nesse sentido, destaca o cristianismo como verdade. Mas defende que o papel do cristianismo no diálogo é o de testemunhar, e não o de impor ou atacar a fé alheia. A tarefa seria testemunhar, contando a história que Deus está realizando em Cristo, convidando os que ouvem a fazer parte dessa história. Secularização Outro ponto bem interessante no pensamento de Newbigin é sua forma de se colocar diante do processo de secularização. Como esteve acostumado a viver o cristianismo em um contexto no qual era minoria, não se assusta com o fato de a Igreja não deter poder no século XX como noutros tempos. Convida, inclusive, a olharmos para os tempos do Novo Testamento e nos lembrarmos de que a Igreja vivia naquele contexto sem poder, sem influência nas decisões de governantes, sem maioria da população ou grandes monumentos. Igreja Pela forma como desenvolve sua reflexão, e pela profundidade que alcança, eu julgo muito necessário afirmar que Lesslie Newbigin não era somente uma pessoa que falava sobre missão. Não era um homem da missiologia somente. Ele falava da natureza da Igreja. Sempre que fala de missão, está tratando de eclesiologia, e nos convida a vivermos nossa identidade como Igreja, como gente que vive pelo evangelho. Cesar M. Rios Obras de Lesslie Newbigin · A South India Diary, 1951. · The Household of God: Lectures on the Nature of the Church, 1953. · Sin and Salvation, 1956. · A Faith for this One World?, 1961. · Trinitarian Doctrine for Today's Mission, 1963. · Honest Religion for Secular Man, 1966. · The Finality of Christ, 1969. · The Good Shepherd, 1977. · The Open Secret: An Introduction to the Theology of Mission, 1995. · The Light Has Come, 1982. · The Other Side of 1984, 1983. · Foolishness to the Greeks: Gospel and Western Culture, 1986. · The Gospel in a Pluralist Society, 1989. · Truth to Tell: The Gospel as Public Truth, 1991. · A Word in Season: Perspectives on Christian World Missions, 1994. · Proper Confidence: Faith, Doubt and Certainty in Christian Discipleship, 1995. · Truth and Authority in Modernity, 1996. · Signs amid the Rubble: The Purposes of God in Human History, 2003. O movimento rabínico se estabelece após a destruição do Templo pelos romanos em 70 d.C., ainda que se fundamente em tradições anteriores. Um erro comum por parte de leitores cristãos consiste na aplicação do conhecimento a respeito do judaísmo rabínico ao judaísmo dos tempos de Jesus. Isso acontecia frequentemente em círculos especializados até meados do século passado. Atualmente, é atitude mais restrita aos leitores sem formação específica. O erro é considerável, uma vez que leva a conclusões precipitadas a respeito da relação entre vida ou ensino de Jesus e seu entorno. Alguns chegaram a dizer com uma certeza inabalável que o nazareno roubara de Hillel a famosa regra de ouro. De fato, na Mishnah, está registrada uma fala do sábio em muito semelhante à que Jesus profere, diferente apenas por ser negativa e não positiva:
Não faça a teu próximo aquilo que não gostaria que te fosse feito. Nisso se resume toda a Lei. O resto é apenas explicação. (Shabbat 31a) Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem. Nisso se resume toda a Lei de Moisés e os profetas. (Mt 7:12) A semelhança pode parecer muito grande para que se considere a possibilidade de uma coincidência, uma conclusão semelhante por meio de reflexões absolutamente desconectadas. Então, já que Hillel viveu antes de Jesus, à primeira vista, este último foi quem aproveitou ensino daquele em seu discurso. Isso não seria exatamente um problema. Jesus poderia se apropriar e corroborar elementos já presentes na tradição de seu povo, e ele o faz, a meu ver, em algumas ocasiões. O problema é que essa conclusão, no presente caso, é apressada por desconsiderar o fato de que a fala de Jesus, dita por volta de 30 d.C. foi registrada no Evangelho ainda no século I, enquanto a fala de Hillel, dita por volta de, no máximo, 10 d.C., só foi registrada entre o fim do século II e início do III d.C., quando a Mishnah foi redigida. A fala de Hillel foi transmitida oralmente por tanto tempo? É possível que os rabinos tenham aproveitado ensinamento de outra fonte e atribuído a um de seus precursores? Não é possível discernir categoricamente o que a Mishnah conserva inalterado e o que foi modificado ao longo da transmissão oral ou deliberadamente inventado. Assim, ainda que se refira a personagens históricos anteriores a Jesus, o documento não nos serve como fonte confiável a respeito de tal contexto ou universo discursivo. Se é assim, por que motivo um cristão se interessaria pela literatura rabínica? Penso imediatamente em três respostas: 1) Para conhecer a história de uma das três grandes religiões monoteístas do mundo moderno; 2) Para conhecer o caminho que tomaram os judeus que não reconheceram Jesus como Messias, sobretudo os fariseus, e, assim, tentar entender um pouco melhor, ainda que de modo sabidamente precário, possíveis características de seu sistema de pensamento; 3) Para conhecer um movimento que crescia e se fortalecia paralelamente à Igreja Cristã nos primeiros séculos da Era Comum, com muitas diferenças, mas também inevitáveis semelhanças. A primeira das respostas deve ser livre de polêmicas. As duas outras podem suscitar discussões. Sobre a segunda, apenas acrescento que a semelhança entre o pouco que sabemos a respeito dos fariseus por meio do Novo Testamento e Flávio Josefo e o que encontramos na Mishnah[1] me parece suficiente para entender que o movimento rabínico é continuidade (ainda que com rupturas) de muito do antigo farisaísmo (ainda que a Mishnah em si não se refira aos sábios mais antigos como fariseus, esquecendo-se completamente do termo). A terceira resposta pode gerar alguma estranheza pela forma como aproximo judaísmo rabínico e Igreja Cristã não meramente como opostos, mas especialmente como semelhantes. Isso faço por considerar que uns e outros estão inevitavelmente ligados enquanto reconhecerem no Antigo Testamento / Tanakh o começo e fundamento de sua história. Ambos acusaram o outro grupo de adicionar uma novidade a esse fundamento (as escrituras neotestamentárias de um lado, e a tradição oral de outro). Ambos, por outro lado, reconhecem o próprio “acréscimo” não como intruso, mas naturalmente relacionado com o Antigo Testamento / Tanakh. O movimento rabínico deve gerar, no mínimo, uma curiosidade em quem se dispõe a olhar para o cristianismo antigo. Na melhor das hipóteses, esse olhar poderá ensejar uma melhor percepção de sua própria história e tradição, por meio da convidativa comparação. No pouco que segue, então, apresento uma breve descrição de elementos centrais da tradição do judaísmo rabínico, não no sentido de munir o leitor de informação definitiva, mas de oferecer uma luz mínima sobre um universo profundamente complexo e rico. MIDRASH Tipo de interpretação judaica que explora o texto além de seu sentido mais óbvio. A interpretação midráshica recorre frequentemente a evocação de um segundo ou mais textos para a elucidação de uma passagem que, em princípio, nada teria a ver com esses textos secundários trazidos para a discussão. No entrelaçar desses textos independentes (mas inevitavelmente relacionados pela ideia de que as Escrituras se constituem como uma unidade), o interprete desvenda o sentido do trecho antes obscuro. Para tanto, compõe um novo texto, que deve ser lido em conjunto com os trechos bíblicos a que se refere. Característica comum do midrash é o preenchimento de lacunas do texto bíblico. A informação que falta em uma narrativa, por exemplo, é preenchida pelo estudioso, por vezes, de modo bem criativo e sofisticado. MISHNAH Primeira grande obra escrita do judaísmo. Não se apresenta como texto de um único autor a respeito de um único assunto. Pelo contrário, e a compilação do ensino de diferentes sábios a respeito de variados assuntos. O mais interessante para o leitor cristão, acostumado na tentativa de harmonização de todos os ensinamentos, e o fato de que, respostas discordantes para uma mesma pergunta são arroladas sem que haja esforço para se chegar a um denominador comum ou para se eleger a melhor resposta. A Mishnah nasce desse diálogo aberto. Talvez, também, seja melhor lida em um contexto dialogal, e não individualmente, já que as discussões dos sábios judeus convidam a uma inserção do leitor no debate. Curioso também é o fato de que essas opiniões diferentes não são consideradas como meras opiniões, mas como uma Lei Oral, que teria sido entregue juntamente com a Lei Escrita. Certamente, no meio secular ou não especificamente judaico ortodoxo, essa concepção não recebe muito apoio. Antes, pensa-se que o início dessa tradição esteja no século II a.C. ou, na mais antiga das hipóteses, V a.C., tempo de Esdras (HELYER, 2002, p. 452). Assim como a Torah escrita, a Mishnah, primeira codificação da tradição oral, está registrada em hebraico. Devido a mudanças no idioma entre o período vetero-testamentário e o período rabínico, adjetivos são acrescentados. Diz-se “hebraico bíblico” e “hebraico mishnaico”. Outro adjetivo constantemente associado a Mishnah e “tanaítico”. Os sábios tanaítas são aqueles que viveram e transmitiram a sabedoria judaica desde as escolas de Hillel e Shammai até Rabbi Judah (165 – 200 d.C.), compilador da Mishnah. E bem compreensível que o surgimento desse material escrito encerre uma etapa (que portanto merecera um nome especifico) e de início a outra. Pela primeira vez, a tradição que era transmitida de pessoa para pessoa pode ser lida, o que promove uma uniformidade maior e facilita a subsequente expansão do movimento rabínico como algo unificado. Isso não significa que os rabinos tenham fácil e imediatamente convencido todos os grupos judaicos da necessidade de se submeterem a essa tradição. Há evidências no sentido contrário, indicando que demorou longo período até que as sinagogas espalhadas pelo mundo aderissem ao movimento (COHEN, 2006, p. 215-217). TORAH Os cinco primeiros livros da Bíblia, mais conhecidos no meio cristão pelo nome grego “Pentateuco”. O sentido comum do termo Torah é algo como “instrução”, mas é geralmente traduzido simplesmente como “lei”. TANAKH Nome que se dá à Bíblia hebraica como um todo, que corresponde em conteúdo ao Antigo Testamento dos cristãos protestantes (que se iguala ao dos Católicos Romanos se do cânone desses se desconsiderar os deuterocanônicos). Apesar da correspondência, a ordem dos livros é diferente. A organização da Tanakh está indicada no próprio nome, que é formado a partir de três palavras, que indicam as três partes do livro: Ta vem de Torah, que indica o Pentateuco. Na vem de Neviim, literalmente “Profetas”, que indica os livros proféticos. Aqui cabe considerar que estes não são exatamente os mesmos da Bíblia dos protestantes. Não há subdivisão entre profetas menores e profetas maiores, mas entre profetas anteriores, Josué aí inserido, por exemplo, e profetas posteriores, como Isaías. Kh vem de Ketuvim, que significa “Escritos”. Nessa parte estão todos os livros que não são parte da Torah nem dos Profetas. Os nossos chamados livros poéticos estão aí, mas também Rute, por exemplo. Certamente, essa organização diferente produz uma ordem diferente dos livros. HALAKHAH O termo provém da raiz do verbo hebraico halakh, “caminhar”. Refere-se a toda discussão judaica de caráter legal, definição do que e permitido e do que é proibido. As discussões halákhicas surgem por causa da necessidade de se pensar em formas de aplicar a Lei aos novos contextos em que os judeus viviam. Para entender tal necessidade, e necessário que se lembre que a Torah já era documento antiquíssimo no início da Era Comum. AGADAH Em oposição a halakhah, a agadah e a discussão judaica que cuida do que não se relaciona com as leis, com a noção de permitido e proibido. O verbo hebraico agad significa `relatar`, `contar`. As narrativas da Torah, da Tanakh como um todo, e lendas tradicionais, assim como elementos doutrinários de base constituem o material e objeto principal das reflexões agádicas. TARGUM Os targumim são traduções simplificadas ou mesmo paráfrases de textos da Tanakh em aramaico. Devem ter surgido no contexto das sinagogas pela necessidade de ensinar aqueles que já não entendiam bem o texto em hebraico. Ao produzir um texto facilitado, os responsáveis pelos targumim registravam suas interpretações de modo discreto, isto é, sem anunciar que acrescentavam palavras e expressões para explicitar determinado entendimento do texto original. Não é sem sentido comparar esse tipo de literatura com o empreendimento de traduções facilitadas da Bíblia para o público simples hoje em dia. TALMUD Quando falamos em Talmud, na verdade, deveríamos usar o plural e dizer Talmudim. Ha dois Talmudim igualmente importantes para a tradição judaica: o Talmud de Jerusalém e o Talmud Babilônico. O primeiro e mais curto e se desenvolveu por escrito por volta do séc. III d.C.. O segundo e consideravelmente mais amplo e foi registrado somente por volta do séc. V d.C.. Ambas obras se colocam como registro da tradição oral dos sábios judeus. Ambas contem a própria Mishnah em seu texto, em um quadro central. Além da Mishnah, em hebraico, há um conjunto de comentários escritos em aramaico, a Gemarah. Esses comentários, contudo, não se limitam a explicar a Mishnah. Ha novas reflexões autônomas nos documentos. Eles se ocupam sobretudo das discussões de caráter halákhico e chegam a um nível de detalhamento impressionante na definição do que e preciso fazer e do que é proibido. Referências HELYER, Larry R. Exploring Jewish Literature of the Second Temple Period. Downers Grove: InterVarsity Press, 2002. COHEN, Shaye. From the Maccabees to the Mishnah. Second Edition. London: Westminster John Knox Press, 2006. [1] Por exemplo, os fariseus, no NT e em Josefo (B.J. 2.163), são os defensores da ideia da ressurreição, que é enfaticamente apregoada e exigida pela Mishnah. O tratado Sanhedrin (10.1) afirma que aqueles que negam que a ressurreição seja doutrina da Torah estão excluídos do mundo vindouro. De modo mais geral, a importância dada a uma tradição oral de caráter legal, que viria a se chamar Torah Oral, também aproxima os fariseus dos rabinos. [TEXTO ORIGINALMENTE POSTADO EM MINHA VERSÃO ANTERIOR DESTE BLOG EM MARÇO DE 2015.] Literatura apocalíptica é o nome utilizado para designar um gênero do discurso em seu conjunto. Isso significa no mínimo uma coisa que pode não condizer com a preconcepção da maioria dos leitores (adeptos) da Bíblia: Há mais de um texto identificado sob esse nome, de modo que o Apocalipse de João não está sozinho. Quais seriam, pois, as características dos textos agrupáveis sob tal rótulo? O que eles têm em comum com o único apocalipse canônico? Em que contexto surgem esses textos? Essas e muitas outras perguntas originaram e ainda originam incontáveis páginas e grande esforço reflexivo de pesquisadores de todo o mundo. Antes de dirimir questões desafiadores, contudo, a primeira grande tarefa desses estudiosos é esclarecer seus interlocutores não especialistas sobre o fato de que o termo "apocalipse" não significa "catástrofe" ou "fim do mundo". É bem verdade que esse gênero do discurso demonstra certo interesse por mudanças radicais na ordem das coisas, eventos significativos, escatológicos, de repercussão impressionante, cósmica inclusive. Mas o que o termo indica de fato é a ideia de "revelação", de desvelamento de algo antes oculto aos olhos do ser humano comum. Essa revelação, em geral, não é alcançada pelo enunciador do discurso ou por seu personagem individualmente, mas é mediada por um ser sobrenatural sob comando de Deus. Com essa concepção menos restrita do gênero apocalíptico, o leitor da Bíblia reconhecerá certamente que o último livro não é o único a reunir tais características. Parte considerável do livro de Daniel tem elementos claros do gênero. Dentro do cânone, esses dois seriam os exemplos claros de literatura apocalíptica. Mas a produção de textos do tipo ocorre tanto entre o surgimento dos dois, quanto depois da escrita do apocalipse neotestamentário, e ocorre tanto em contexto estritamente judaico, quanto entre os cristãos. Não é de se surpreender que houvesse, por exemplo, um apocalipse circulando junto com o joanino entre as comunidades cristãs dos séculos I e II d.C.. O cânone muratoriano (aprox. 170 d.C.) se refere ao Apocalipse de Pedro, sobre o qual afirma: apocalypses etiam Iohannis, et Petri, tantum recipimus, quam quidam ex nostris legi in ecclesia nolunt Aceitamos somente o apocalipse de João e o de Pedro, ainda que alguns de nós não querem que seja lido na Igreja. (minha tradução) Mas é justamente no período intertestamental, mais precisamente entre 250 a.C. e 100 d.C., que o gênero vive sua fase de maior produção (SOARES, 2008, p. 101).[i] Parte dos chamados livros de Enoque, o Livro de Jubileus, e 4 Esdras são exemplos comuns de livros que se enquadram no gênero. Os nomes de Enoque e Esdras nos títulos mencionados fazem lembrar que é assaz comum que os textos apocalípticos sejam pseudepígrafos, isto é, que se declarem como textos de algum personagem bíblico importante, sem que haja qualquer relação real genética entre tal texto e tal personagem. É possível que esse fato seja consequência de uma tentativa de autoridade, isto é, que o escritor real procure no nome histórico-bíblico escolhido um respaldo para sua composição, o que seria importante numa época em que a credibilidade estava em jogo, por considerar-se que a profecia havia cessado (HELYER, 2002, p. 117). Há, certamente, alguma semelhança entre esses escritos apocalípticos e os textos proféticos da Bíblia hebraica. Também os profetas têm frequentemente informações privilegiadas sobre o devir. Também eles dependem do sobrenatural para acessar tais informações. Não é estranho que se considere a tradição apocalíptica como uma continuidade da tradição profética (COHEN, 2006, p. 186-192). Porém há traços peculiares que distinguem os gêneros, junto com outros que os aproximam. Em geral, e sobretudo após a profanação do Templo por Antíoco Epifanes (167 a.C.), a literatura apocalíptica se interessa de modo marcado pela história (COHEN, 2006, p. 187). Os textos apresentam desenvolvimentos da história em que há uma intervenção divina decisiva, que inaugura uma nova fase ou era, de modo que o conhecimento simples dos fatos concretos ou históricos se mostra insuficiente. Só a revelação viabiliza uma compreensão real do que estaria por vir. E o que estaria por vir não seria de outro modo esperado. Seria algo verdadeiramente surpreendente, marcante e escatológico. É importante considerar a existência e, ainda mais, a popularidade desses escritos nos tempos de Jesus e dos apóstolos. Eles são parte do universo discursivo e do imaginário que recebe pela primeira vez a mensagem do Messias Jesus. Ainda que, conceitualmente, haja diferenças notáveis, é também por causa desse arcabouço prévio que a mensagem dos cristãos pode ser acessada por muitos do povo comum. Caso haja algum leitor ainda suspeitando da pertinência de se querer conhecer a literatura apocalíptica no meio cristão, cito um texto que será bem familiar dos leitores do Novo Testamento, e que copio de um relato apocalíptico intitulado Testamento de Moisés: Ὁ δὲ Μιχαὴλ ὁ ἀρχάγγελος ὅτε τῷ διαβόλῳ διακρινόμενος διελέγετο περὶ τοῦ Μωϋσέως σώματος οὐκ ἐτόλμησεν κρίσιν ἐπενεγκεῖν βλασφημίας, ἀλλὰ εἶπεν· Ἐπιτιμήσαι σοι κύριος. E o arcanjo Miguel, quando, em uma contenda com o diabo, disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou proferir contra ele um juízo com duras palavras de reprovação, mas disse: Repreenda-te o Senhor. (Testamento de Moisés 1:8 - minha tradução). Referências HELYER, Larry R. Exploring Jewish Literature of the Second Temple Period. Downers Grove: InterVarsity Press, 2002. COHEN, Shaye. From the Maccabees to the Mishnah. Second Edition. London: Westminster John Knox Press, 2006. SOARES, Dionísio Oliveira. A literatura apocalíptica: o gênero como expressão. In: Horizonte, v. 7, n. 13. Belo Horizonte, 2008. p. 99-113. [i] Considero todo o século I d.C. ainda como período intertestamental, não afirmando que algum texto do NT tenha sido produzido posteriormente, mas por ter em mente que a consolidação do cânone se dá posteriormente. Ou seja, o NT não existia enquanto livro unificado, embora suas partes existissem e já estivessem se ajuntando de alguma maneira. [TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM BLOG ANTERIOR NO MÊS DE MAIO DE 2015. PESQUISEI E ESCREVI SOBRE APOCALÍPTICA POSTERIORMENTE.] Há um objetivo, em certo sentido, ecumênico na Dieta de Augsburgo (1530), que é reconhecido e ponderado no Prefácio da Confissão de Augsburgo, proposta pelos representantes “luteranos”. O cenário histórico subjacente, que é motivador da busca por unificação pacífica, é referido no início do texto, como um dos motivos da convocação: “Porquanto Vossa Majestade Imperial convocou uma dieta imperial para Augsburgo, destinada a deliberar sobre esforços bélicos contra o turco, adversário atrocíssimo, hereditário e antigo do nome e da religião cristãos” (Prefácio da CA, 1 – Grifo meu, como nos outros trechos). Há um adversário comum, que não só realça a unidade do grupo que lhe é oposto, mas torna a realidade dessa unidade conveniente para um enfrentamento adequado. Por isso, o outro assunto a ser tratado na dieta, apresentado em seguida, tem uma relação com o primeiro. Cito o trecho a ele referente, de modo a comentar detalhes que me parecem importantes: [T]ambém quanto às dissensões com respeito a nossa santa religião e fé cristã, e a fim de que neste assunto da religião as opiniões e sentenças das partes, presentes umas às outras, possam ser ouvidas, entendidas e ponderadas entre nós, com mútua caridade, brandura e mansidão, para que, corrigido o que tem sido tratado incorretamente nos escritos de um e outro lado, possam essas coisas ser compostas e reduzidas a uma só verdade simples e concórdia cristã, de forma tal, que, quanto ao mais, seja praticada e mantida por nós uma só religião pura e verdadeira; e para que assim como estamos e militamos sob um mesmo Cristo, possamos, da mesma forma, viver em uma só igreja cristã, em unidade e concórdia.” (Prefácio da CA, 2-4.) O primeiro dado a se destacar consiste no método que se espera para o encontro entre os dois grupos com posicionamentos divergentes. Os posicionamentos (“opiniões e sentenças”) de cada lado não permanecem ocultos ou reservados ao próprio grupo, mas são apresentados. Assim, espera-se que haja atenção, entendimento e reflexão (“ouvidas, entendidas e ponderadas”) entre os diferentes grupos. Há uma consideração respeitosa e inteligente do que pensa o lado oposto. Esse modo de se atentar para o outro é caracterizado por “caridade, brandura e mansidão”. Decerto, essa postura não se realiza exatamente como se propõe em encontros do tipo. Mas parece ser a prática cristã correta para a busca do entendimento a respeito da doutrina cristã correta. Outro dado notável está na humildade dos representantes “luteranos” nessa apresentação, pois o caminho proposto prevê uma possível correção do que vinha sendo “tratado incorretamente nos escritos de um e outro lado”. Não há uma afirmação prévia de perfeição em tudo que eles levaram à Dieta. A expectativa é que esse diálogo sério, detido e caridoso tenha como resultado a síntese de “uma só verdade simples e concórdia cristã”. Essa unicidade de pensamento, alcançada pelo diálogo, serve de fundamento para que “seja praticada e mantida por nós uma só religião pura e verdadeira”. Perceba-se que, primeiro, há um pensamento homogêneo, para que, com base nisso, haja a prática unificada e o entendimento de que há uma só religião. Destaco, ainda, que essa religião unificada pode ser considerada, por causa do caminho pelo qual se chegou a ela, “pura e verdadeira”. A parte final do trecho citado evoca o outro motivo da Dieta ao usar o verbo “militar”. Há uma referência à tensão contra os turcos. Há, assim, uma consideração da unidade nominal em contraste com os não-cristãos, mas a imediata observação de que ela não é suficiente, isto é, de que só o sucesso do processo de diálogo e ajustamento doutrinário poderia conduzir à vida de todos eles “em uma só igreja cristã, em unidade e concórdia”. Adiante, no Prefácio, outras informações importantes aparecem, complementando ou esclarecendo o que se tem nesse trecho antes citado: a fonte própria para a definição das doutrinas é a Sagrada Escritura (8); é imprescindível o auxílio de Deus para o que se almeja (10-11); a concórdia buscada deve se alcançar “com Deus e de boa consciência”, de modo que não se concebe fingimento na apresentação ou apreciação de opiniões (13); espera-se que os interlocutores sejam “movidos por sincero amor e zelo pela religião”. No mais, não havendo possibilidade de se concretizar o esperado, os representantes “luteranos” demonstram anseio já anterior pela realização de um Concílio “cristão e livre”. As dificuldades eram sabidas, mas a porta para o diálogo permanecia aberta. Julgo ser essa uma postura pertinente: Nenhum passo além do diálogo antes da concórdia. O primeiro passo, que é o do diálogo, contudo, será dado quantas vezes forem necessárias ou oportunizadas. FÉ CRISTÃ E SUSTENTABILIDADE Quando uma pessoa cristã é instada a pensar ou falar sobre sustentabilidade, é natural que pense imediatamente em recorrer às Escrituras. O que procurará ali? Alguns vão imediatamente ao Éden. “Ah, tudo começa num belo jardim.” Outros podem correr aos salmos e mencionar como o cuidado com as ovelhas é comparado ao cuidado de Deus com seu povo. “Veja como a vida pastoril tem seu lugar.” Alguém mais rigoroso poderá retrucar: “Jardim (ou “pomar”, que é o que o Éden é) e criação de ovelhas não representam exatamente o mundo natural, mas uma intervenção cultural, não é?” Na verdade, a plantação de um pomar enorme e a criação cuidadosa de numerosas ovelhas podem ser ações muito danosas ao meio ambiente com sua biodiversidade natural! Quer dizer que a Bíblia não serve para defender a sustentabilidade? Espere. Não é o que estou querendo mostrar. Não chegamos ao ponto. Isso quer dizer que a questão da “sustentabilidade” é de nossos tempos. Não é uma preocupação dos tempos bíblicos. Por isso, não vamos ver nas páginas da Bíblia uma orientação clara ou mesmo uma consistente e enfática defesa de todos os pontos que apoiam a noção de sustentabilidade. Mas aqui, nessa última frase, há algo que faz o assunto mudar de tom. Sustentabilidade não é simplesmente preservação de habitats naturais ou da biodiversidade. Esse é um ponto importante, mas não é o único. Sustentabilidade não é sinônimo de ecologia ou de preservação ambiental. Sustentabilidade diz respeito à conservação de recursos naturais (e aqui está a questão do cuidado com o meio ambiente), à manutenção da viabilidade econômica e à atenção ao âmbito social. Além disso, a noção de sustentabilidade requer um pensamento diacrônico. Não se trata de preservar hoje simplesmente algo. Trata-se de manter recursos para gerações futuras, de modo que também elas tenham o necessário para a vida, a organização social e econômica. Aqui está um ponto chave que não deve ser esquecido por qualquer pessoa cristã que queira pensar a sustentabilidade. Se a ideia é cuidar para que não falte para outras pessoas, estamos falando de amor ao próximo e não simplesmente de animais, plantas ou belezas naturais em geral. E, se o assunto é amor ao próximo, as Escrituras não têm que ser esquadrinhadas para se encontrar algo útil para a conversa. Essa é uma questão escriturística de raiz. Não é difícil imaginar que alguém pergunte: “Mas amar o próximo inclui amar gente que nem existe ainda?” E eu me lembro da pergunta de certo interlocutor de Jesus ao se deparar com a necessidade de amar o próximo como a si mesmo: “Quem é o meu próximo?” (cf. Lucas 10.25-37) É uma pergunta de fuga. Se eu puder dizer que meu próximo é só gente de meu povo, de minha vila, de minha família, de meu grupo sectário, reduzo o âmbito e poupo responsabilidade. Mas Jesus não autoriza a fuga. Conta a história do “bom samaritano”. A pergunta “quem é o meu próximo?” perde o sentido quando você se dispõe a ser o próximo de quem necessita. Naquele caso específico, rompem-se as barreiras étnicas imediatamente. Outras barreiras podem ruir facilmente também. Se alguém está no meu âmbito de ação, não deixa de ser meu próximo. Num mundo globalizado, minha ação no Brasil pode impactar a vida de alguém do outro lado do planeta. Essa pessoa não deixa de ser meu próximo por estar geograficamente afastada. Então, se entendemos pela ciência e pelo bom senso, que minhas ações hoje afetam a vida de pessoas que habitarão a terra nos próximos anos, preciso reconhecer que são meus próximos (em potencial, pelo menos). Curiosamente, os próximos são os próximos também. Esse é o cerne do argumento cristão quanto à sustentabilidade, a meu ver. A apreciação da criação, do cuidado de Deus para com o todo dela e tudo mais que se encontre nesse sentido nas Escrituras pode ser bem utilizado e ter seu valor. Mas isso tudo não precisa ser visto como centro do argumento, início ou fim dele, inclusive. Enriquece-o, ornamenta e preenche, mas a estrutura se sustenta mais adequadamente na lei do amor, que, não por acaso, é resumo da Lei de Deus. Há já algum tempo, escrevi sobre a série THE RAIN, série da NETFLIX, em uma perspectiva da religião. O título era “Religião e Cristianismo às avessas em The Rain” (disponível AQUI). Sugeri que a reversão estava no fato de o pai de Rasmus se negar a entregar seu filho à morte para salvar a todos por meio de seu sangue. Nessa leitura, Rasmus ocupava obviamente um lugar análogo ao de Cristo. Agora, a Temporada 3 da série traz de volta o impulso da aproximação. Rasmus ajuda pessoas à beira da morte a terem vida, e isso lhe traz feridas pelo corpo. A figura de Sarah, ressuscitada “pelo poder de Rasmus” forma com ele um par inicial de uma nova humanidade. Rasmus parece ser, também, um novo Adão ao lado de sua Eva. Alguém poderá sugerir que estou indo além da conta, estabelecendo relações a todo custo, forçando a barra. Mas essa pessoa teria que enfrentar o fato de que não estou sozinho nessa. É um personagem da trama, Sten, que percebe a analogia possível no que estava acontecendo (as pessoas tinham que estar absolutamente como mortas para poderem ser “curadas” por Rasmus): “Parece com Jesus. É preciso morrer para poder viver.” É óbvio que o objetivo da série não é ter um enredo alegórico. Não se trata de uma reescrita da narrativa evangélica. Há conexões. (E nem mencionei uma possível relação com a Árvore da Vida!) Assim também, pode ser que haja conexões com outras narrativas. Quando a terceira temporada se encaminha para o final, sinto um leve ar das tragédias gregas (mas escrevo antes de ver o último episódio). De qualquer forma, é interessante como, ao tratar de vida além da morte, mesmo a partir de uma Dinamarca altamente secularizada, ainda se lembre do – e até se mencione o - nome de Jesus Cristo. Machado de Assis! Talvez, o maior, mas, certamente, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Esse sujeito ímpar tem, ao lado de seus romances marcantes, famosos e badalados até fora destes trópicos, uma produção poética também preciosa. E, entre seus poemas, há aqueles que tratam da fé, dialogam com as Escrituras Cristãs, expressam uma bela devoção. Não me interessa tanto se essa religiosidade é expressão do homem Machado de Assis ou se é construção poética de alguma forma distanciada do autor.
Por falar nisso, até acho que se espera de um escritor genial uma postura mais crítica, mais questionadora do que devota. E tem isso em Machado também. A religião não escapa ao seu olhar sagaz. Mas tem esses poemas que mostram uma genialidade diferente, não pela investigação de possibilidades desconsideradas e problemas despercebidos, mas pela expressão sublime da fé simples. Eu vejo Fé, poema publicado em 1864 em Crisálidas, como um exemplo disso. (É claro que há outros, que penso em mencionar eventualmente.) O que segue é um comentário pessoal, um exercício de leitura, justamente, a partir da perspectiva da fé. O poema começa com uma epígrafe de ninguém menos que Santa Teresa D’ávila: Muéveme en fin tu amor de tal manera / Que aunque no hubiera cielo yo te amara. Que bonito isso, não é? Sei que tem gente que conheço que vai logo denunciar essa ideia de um progresso, de chegar a tal estágio em que... “Meio antropocêntrico!” Mas veja o que está como causa desse voltar-se da pessoa para Deus: O amor de Deus mesmo é que faz o ser humano o amar. É a dinâmica. Começa com Deus e muda o humano. Mesmo sem Céu, eu te amaria. Sem recompensa! Sem perspectiva! Só pela ação e essência de Deus mesmo. O poema em si, embora motivado e assentado nessa devoção e Santa Teresa d’Ávila, toma um percurso diferente. Ele começa entre os humanos e olha para uma chegada a Deus – tem céu! A primeira estrofe dá o tom dessa distância entre humanos e Deus. E já olha para o movimento de interação – orações sobem; cânticos de cá são ouvidos lá. A diferença se acentua na segunda estrofe, que se refere à nossa realidade “de baixo” como “turvo mar da vida”. Não é só muita água. É água turva. Não é a beleza de uma praia paradisíaca, mas o risco e a incerteza. O risco se ressalta: “Onde aos parcéis do crime a alma naufraga”. Parcel é o termo usado por navegadores para áreas em que o mar se torna raso, por causa de bancos de areia ou pedras. Quem viu filmes ou leu livros sobre aventuras navais sabe que há um perigo certo nisso. Navios encalham, se quebram, tombam... A alma não passeia. Naufraga! Para que isso não suceda, o navegador precisa de instrumentos. Lá vem Machado e identifica a bússola: “Senhor, tua palavra!” A terceira estrofe reforça essa ideia. Tínhamos visto o mundo dos humanos. Agora, estamos vendo o caminho. E o destino é assinalado: “Esta a luz que há de abrir à estância eterna / O fúlgido caminho”. Pra não me delongar, digo logo que vejo nas estrofes 4 e 5 aquele olhar do caminhante para o mundo que vai deixando. “Quando a alma, despida de vaidade / Vê quanto vale a terra”. Vê bem. Lembra o poema que aquela visão inicial do mundo não é partilhada por todos, não é alcançada indiscriminadamente. E esse percurso faz sentido somente para quem sabe ver bem, que não se engana. E aí, considerando a realidade e não a aparência, a pessoa se apega e confia somente no que realmente a pode salvar. Acho que, como luterano, não posso deixar de lembrar do comentário de Lutero ao primeiro mandamento no Catecismo Maior. É isso. A bem-aventurança da última estrofe é perfeita e encharcada da sabedoria das Escrituras: Feliz o que nos lábios, / No coração, na mente põe teu nome, / E só por ele cuida entrar cantando / No seio do infinito. Chegamos. Havia cânticos que subiam desde a terra na primeira estrofe. Agora, os que cantam se achegam. Agora, a distância se desfaz. O amor de Deus não faz somente amá-lo, mas também torna essas pessoas por ele amadas comungantes com ele, presentes, junto a ele, porque o amor de Deus provê um caminho. “E só por ele” - a pessoa que vai cantando bem sabe junto com Pedro, importa que sejamos salvos (Atos 4.12). O poema está disponível aqui: https://periodicos.ufes.br/machadiana/article/view/28752/217 |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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