Socorro! Acho que meu pastor é de esquerda! / Socorro! Acho que meu pastor é de direita!
Cesar Motta Rios Pr. Romusvaldo chegou à Comunidade esperançoso. Dedicou-se bastante para a preparação do primeiro sermão. Pregou como de costume, apesar de um nervosismo a mais diante do público desconhecido. Ana saiu revoltada. Em casa e reclamou com a família toda, que se reunia para um belo frango assado com laranja, que, aliás, estava bem gostoso. “Esse pastor novo é um direitista! Reacionário! Já vi tudo.” Ana não voltou na semana seguinte. Disse que ia dar um tempo. Seu tio Betão, que fazia tempo que não ia, foi. Queria ver o pastor acabar com os esquerdistas da congregação. Voltou mais revoltado que a Ana. Passando perto da casa dos parentes, ainda aturdido e cheio de revolta, resmungou: “A menina inventou aquilo de o cara ser de direita só para me enganar. É um esquerdopata! Vocês precisam ver a palhaçada que ele defendeu do púlpito.” Pobre Romusvaldo! Ele demorou para saber do caso. Quando soube, não entendeu logo. Não tinha falado de político algum nas últimas semanas. Tinha, como de costume, proclamado a Palavra. Antes que o problema se agravasse, aproveitou a reunião seguinte do povo e tentou explicar de forma muito clara: “Gente, vamos tentar entender uma coisa. Todos os projetos políticos, todas as linhas ideológicas e as que tentam negar que sejam ideológicas, são construções humanas. Todas as construções humanas são marcadas pelo pecado. Todas têm um negócio que eu chamo de “estragado inevitável”, um “podre impossível de tirar”. Então, quando a Palavra chega, ela vai confrontar algumas dessas partes podres dos diversos projetos humanos. Às vezes, vai estar contra aspecto mais de uma linha. Às vezes, vai estar contra aspecto mais de outra. Mas vai ficar contra todas mais cedo ou mais tarde. E isso acontece comigo. Minhas convicções também são confrontadas. Se vocês me perguntam assim: Pr. Romusvaldo, mas tem como ser de esquerda e ser da Igreja? Eu vou responder: Sim. Mas deixe a Palavra confrontar sua ideologia, te incomodar e ser a última palavra na sua vida. Outros vão perguntar: Pr. Romusvaldo, mas tem como ser direitista e ser da Igreja? Eu vou responder: Sim. Mas deixe a Palavra confrontar sua ideologia, te incomodar e ser a última palavra na sua vida. Eu não vou domesticar a Palavra. Não vou fingir que ela não diz o que diz só para não parecer esquerdista num domingo e direitista no outro. Falei da dignidade humana, mesmo dos seres humanos sem voz por não terem nascido ainda? Falei. Falei da dignidade humana, do cuidado de Deus para com os que são injustiçados por leis ultrajantes e de sua vontade de que os pobres tenham amparo? Falei. Vou falar sobre avareza? Vou. Vou falar sobre ganância disfarçada de cuidado com a própria família? Vou. Ah, sim, e o racista tem que ter a oportunidade de saber que seu comportamento é pecaminoso, assim como o que sofre preconceito tem que ser protegido dessa injustiça. Se a Palavra vai ter vez, o amor ao próximo vai ser importante em minhas mensagens e vai confrontar qualquer atividade humana. E, se alguém disser que colocar o amor como tão importante é coisa de cristão progressista, eu vou ter que perguntar se Paulo ou mesmo Jesus seriam cristãos progressistas. Se alguém disser que cristianismo é só sobre absolvição de pecados e que não tem nada a ver com os relacionamentos entre nós, eu vou mostrar que isso é uma ruptura com tudo que se entendeu por cristianismo ao longo dos séculos. Uma fé meramente interiorizada, e que não toca o chão de segunda a segunda eu não conheço. Mostrarei que é diferente. E terei prazer em fazer isso demoradamente para quem tiver interesse no assunto. Chá e café não vão faltar para longas conversas. Agora, se quem é muito de esquerda não quer nunca ser incomodado, façamos o seguinte: Não chamem um pastor. Chamem um político de um partido admirado. Deem uma estola para ele e digam o que pode pregar. Se quem é muito de direita não quer nunca ser incomodado, façamos o mesmo: Não chamem um pastor. Chamem um político de um partido admirado. Deem uma estola para ele e digam o que pode pregar. Se querem chamar pastor, saibam que haverá momentos em que todos nós seremos questionados, confrontados, provocados pela Palavra. Não tem jeito de ser diferente. Posso não mencionar políticos e partidos, mas não dá para parecer isento em tudo que é relação entre seres humanos.” Queria terminar a história dizendo que, com tudo bem esclarecido, todos se deram as mãos e cantaram Kumbaya. Mas não foi bem assim. (De fato, mesmo uma história inventada precisa ter um pouco de conexão com o que vivemos.) Houve quem saiu chateado já pensando em esperar outro pastor. O bom é que Ana e seu tio até que entenderam. Dia desses, num churrasco da família, os ânimos começaram a se exaltar entre os dois. Uma criança passou cantando “leia a Bíblia e faça oração”. Um olhou para o outro e, mesmo que cada um ainda achasse sua posição a melhor, ambos se lembraram que não havia perfeição ali na mesa. Havia uma Mensagem que lembrava que suas convicções não eram sempre perfeitas. Fim? --------------------- Minha posição sobre isso foi "confessada" num sermão que preguei em meio aos estragos dos atritos da eleição de 2018: https://cristianismoeantiguidade.weebly.com/principal/sobre-pedras-e-o-fim-das-coisas-como-as-conhecemos-sermao
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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