Fico aqui pensando com meus botões, que são poucos, já que uso camisa polo: Amigos luteranos costumam ser enfáticos, decididos e, por vezes, até raivosos quando se aventa a questão do ecumenismo. Alguns, citam frases como aquela de Lutero: "A paz se possível. A verdade a qualquer preço." Claro, entendem que nós temos a verdade absoluta. E, bom, isso não está em discussão.
O problema é que fui perceber hoje que há um detalhe muito curioso na Confissão de Augsburgo e na Apologia, textos que os luteranos mais conservadores têm como obrigatoriamente subscritos por seus líderes. No artigo XXI da Confissão, após demonstrarem sua posição sobre assuntos relacionados aos santos (honra, culto invocação), os confessores afirmam: "E mesmo nessas coisas, suposto haja alguma dissimilitude, convinha, todavia, tivessem os bispos leniência bastante para tolerar os nossos em virtude da confissão que agora apresentamos." Ora, eles cogitavam a possibilidade de uma permanência sob a autoridade do bispo (romano!). É o que parece. E é o que fica bem evidente na Apologia referente ao artigo XIV: "Quanto a esse assunto, muitas vezes testemunhamos nesse conclave que desejamos com a máxima vontade conservar a ordem eclesiástica e os graus na igreja, ainda que feitos com autoridade humana. Pois sabemos que o sistema eclesiástico foi constituído pelos Pais da maneira descrita nos cânones com propósito bom e útil. Mas os bispos ou coagem aos nossos sacerdotes a rejeitarem e condenarem a espécie de doutrina que confessamos, ou, com nova e inaudita crueldade, matam os pobres e inocentes. Essas razões impedem os nossos sacerdotes de reconhecerem esses bispos." Perceba que o motivo de não aceitaram a autoridade dos bispos não é a diferença doutrinária em si. Para ser claro: Não é pelo fato de os bispos não confessarem a mesma doutrina, mas pelo fato de não aceitarem que eles a confessem. Se é preciso mais clareza, mais para a conclusão desse trecho da Apologia, Melanchthon ressalta: "Além disso, queremos, aqui, testificar mais uma vez que, de boa mente, conservamos a ordem eclesiástica e canônica, se os bispos tão-somente desistirem de raivar contra nossas igrejas." Não sei se você percebe o que eu percebo. Não é que Melanchthon está cogitando a possibilidade de algo que, hoje, chamaríamos de diocese ecumênica? Acho que é isso mesmo. Se o pedido fosse aceito, haveria uma diocese ligada a Roma com um bispo seguindo a doutrina exatamente como ordenada por Roma, mas com algumas igrejas com certa peculiaridade doutrinária expressa na Confissão de Augsburgo. Você pode afirmar que faziam isso para evitar uma guerra sangrenta iminente. Pode supor que o plano era que, ao final de um processo, a doutrina "luterana" prevalecesse naquelas dioceses. Pode. Claro que pode. Mas o que o texto diz ao certo é que a possibilidade de uma convivência pacífica e respeitosa estava no horizonte de expectativa dos "luteranos" em 1530. Parece que, pelo menos a partir das Confissões, a "verdade a qualquer preço" valia para o "direito de afirmar tal verdade" e não para uma "imposição dessa verdade". Não escrevo tudo isso para propor nenhuma ação. Não escrevo para propor uma mudança de posicionamento ou estabelecer nenhum parâmetro. Simplesmente, proponho que esse dado histórico seja tido como importante em nossas reflexões sobre relações ecumênicas.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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