Sexta-feira da Paixão – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A IRA, O AMOR E A PEDAGOGIA DE DEUS NA CRUZ DE CRISTO João 18 e 19 Cesar Motta Rios Cristo na Cruz é a expressão máxima da ira de Deus. Os povos da Mesopotâmia imaginavam deuses em frequentes intrigas. Os gregos imaginavam deuses que cometiam adultério, raptos, enganos, todo tipo de vício, de atos moralmente condenáveis. Eram exatamente como os humanos em suas tolices, embora mais poderosos e imortais. Já os hebreus conheciam o Deus todo-poderoso, sábio, justo e santo, que, além de ser santo, exige santidade dos seres humanos. E essa santidade não é encontrada. E, para complicar, Deus castiga por essa falta, castiga pelo o pecado. Em diversos textos que lemos, até mesmo nesse período de Quaresma que vai se encerrando, encontramos a afirmação de que Deus acolhe os obedientes, mas castiga os desobedientes. “Deus é justo juiz, que fica irado todo dia!” (Sl 7.11). É isso que vemos na cruz de Cristo: a severidade do castigo de Deus. Jesus é humilhado, abandonado, agredido, perfurado. Sangra com o corpo preso a um pedaço de madeira. É imensa a repulsa de Deus contra o pecado. E isso se percebe nessa cena. Mas de quem é esse pecado? Não é do próprio servo Jesus Cristo que sofre ali. É nosso. É de toda a humanidade. O castigo que nos traz a paz estava sobre ele. Por isso, Cristo na Cruz é a expressão máxima do amor de Deus. Desde o princípio, quando o ser humano se afastou da presença de Deus e a morte entrou no mundo, a Trindade em perfeita harmonia se moveu para nossa salvação. E essa ação salvadora incluía a morte de Deus Filho de modo cruel em um momento específico da história humana. Isso não impede o plano. Deus vai adiante e realiza esse ato terrível por amor a nós, por amor à humanidade. E, vejam bem, por amor a uma humanidade que, ainda, era completamente inimiga de Deus. Estranho! Deus ama quem não o ama. Deus atrai quem não quer saber dele. Deus morre por gente que, aos olhos dele mesmo, segundo seus critérios e seu padrão, não presta mesmo. Cristo na cruz é um grito de Deus dizendo para você que Ele não desiste de te levar para o céu, para viver em comunhão com você, por nada nesse mundo, nem nada de fora desse mundo. Isso é o amor divino. E é tão próprio de Deus, que se pode dizer que “Deus é amor” (1 Jo 4.8). Deus, que nos ama, nos ensina e repreende também. É o que diz lá na carta a Laodiceia, no Apocalipse. E Cristo na cruz é expressão máxima da pedagogia de Deus. Esse Deus santo e cheio de amor, que ofereceu ensino a seu povo no deserto, que ensinou o povo por meio do grande exílio babilônico, tem uma grande lição a ensinar na cruz. Ele ensina, o que já vimos, que nos ama com um amor que nós nunca poderemos entender. E ensina também algo sobre o nosso relacionamento uns com os outros, porque disse “amai-vos como eu vos amei”. E ele nos amou ao ponto de morrer por nós, ao ponto de sofrer para que nós não sofrêssemos. Cristo na cruz ensina um amor que não é de palavra somente, que não é só poesia ou só máscara, mas um amor que procura com ação o bem da outra pessoa, mesmo quando essa outra pessoa pareça não merecer e mesmo que essa ação me prejudique de alguma forma. Se alguma vez você se pergunta: “Quanto devo me esforçar para fazer o bem para outra pessoa?” A resposta está na Cruz de Cristo. A resposta está no “amai-vos como eu vos amei”. Deus ensina um estilo de vida absolutamente diferente de toda a nossa tendência natural e cultural. Diferente de consumismo, individualismo e vaidade. Mas um estilo de vida que faz a própria vida ter muito mais sentido. Olhamos hoje para Cristo na cruz e consideramos: O Deus santo e castigador nos amou profundamente. Então, já salvos e completamente perdoados, vamos caminhando com ele, ajudados e moldados pelo Espírito Santo, para que também possamos, em alguma medida, aprender a viver esse amor inexplicável em nossas vidas, em nossos relacionamentos. E a força para essa caminhada nos vem, é claro, justamente do sacrifício na cruz. João é cuidadoso ao mencionar água e sangue saindo do lado perfurado de Jesus, como que para lembrar que é dali, daquele evento acontecido há séculos, que vem o poder, a efetividade do batismo e da santa ceia. Cristo na cruz – porque sabemos que ele venceu a cruz - é expressão máxima de nossa vida, tanto dessa vida aqui quanto da vida na eternidade. Amém.
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5º Domingo na Quaresma – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A IGREJA E O RISCO DE PERDER O RUMO Sl 126; Is 43.16-20; Fp 3.4b-16; Lc 20.9-20 Cesar Motta Rios Quaresma é tempo de observar a caminhada de Jesus rumo à cruz e de aguardar a ressurreição, mas, lendo os textos selecionados para esse período, parece inegável que é também um tempo oportuno para uma observação de nós mesmos como seguidores de Jesus. É tempo de nos olharmos, enquanto Igreja de Cristo, no espelho, de forma sincera e atenta. No texto do Evangelho para hoje, vemos novamente o Mestre Jesus em um diálogo tenso com escribas e chefes dos sacerdotes. E ouvimos palavras duras de Jesus contra essas pessoas. Na Idade Média, facilmente os pregadores podiam usar textos como esse para expor em cores vivas o erro dos judeus e engradecer a Igreja por seu acerto e fidelidade ao Messias. Quem assistiu filmes como “Em nome de Deus” viu isso em cenas memoráveis e nada exageradas se considerada a pesquisa histórica disponível. Um religioso pregando de um púlpito um pouco mais alto que este esbraveja: “Quem é culpado pela morte de Jesus?” Em seguida, diante do silêncio piedoso de seus ouvintes, responde: “Os judeus! Foram os judeus!”. Inflamados por discursos como esse, não era raro que cristãos que se achavam o modelo de perfeição matassem uma família inteira de judeus por motivos banais e, em geral, imaginários. E a Igreja - não só como instituição, mas como organismo vivo formado por pessoas que creem - perdia diversas oportunidades, em diversas leituras dos Evangelhos, de repensar sua própria conduta e a compreensão que tinha de si mesma, enquanto atribuía aos outros toda a imperfeição, tudo que era criticável. Ao menos nesse âmbito popular, da mensagem que chegava ao povo, para perguntas como “onde está o erro?” ou “será que estamos mesmo sendo coerentes como filhos de Deus”, a resposta imediata seria: “Não se discute isso. Somos a Igreja e pronto. O erro está lá, nos judeus e nos turcos. Não aqui.” Fim de conversa. De fato, nós vemos pela história da Igreja e até em nossos dias como a natureza humana faz com que, como Igreja, percamos de vista o que Deus propõe e voltemos nossa atenção a coisas pequenas e interesses pessoais, sem valor eterno. Sem valor eterno, mas com um valor sedutor para nossa vaidade de apetite interminável. E temos dificuldades para reconhecermos isso. Até reconhecemos quando se trata de avaliar outros grupos cristãos. Aí somos sagazes observadores. Não temos os judeus e os turcos como receptáculos de toda nossa acusação, como no caso dos cristãos medievais, mas temos outros grupos evangélicos, ou católicos. E todos nós – homens, mulheres, jovens, idosos, pastores e não-pastores - deixamos de reavaliar de modo equilibrado muitas de nossas coisas, de nossas atitudes. E muitas delas são frequentemente mais importantes para a construção de um status, ao modo do mundo, do que para o serviço pautado pela Palavra, ao modo de Cristo. O apóstolo Paulo traz um exemplo oposto ao que fazemos com frequência. Ele lista tudo o que parecia ter valor para ele: Sua origem familiar de prestígio, sua boa formação e seu rigor religioso desde a mais tenra infância... Mas, tendo conhecimento de Cristo e de sua missão, desconsidera tudo. Aceita até perder tudo isso. Tira isso de seu foco de interesse. Agora, não perde mais tempo com essas aparências, mas se concentra num só objetivo, numa só meta. E, agora, o esforço que ele fazia para ir contra a Igreja faz agora para manter o foco em Cristo, conhecer a Cristo, viver em Cristo. Lembra-nos do “negar-se a si mesmo” colocado em prática. E o apóstolo entende que toda a Igreja deveria fazer o mesmo. Todas as pessoas sensatas, que agem como gente grande, deveriam ter o mesmo foco. Mas quantas vezes vemos a Igreja desviar os olhos de Cristo e, mesmo simulando uma defesa da causa de Cristo, valorizar exageradamente aquilo que Paulo diz ter perdido o valor? Quantas vezes a Igreja avalia as pessoas pela origem familiar, pela formação, pelo zelo religioso? Quantas vezes a Igreja olha para si como se fosse ela mesma, a Igreja, o foco, o cerne da coisa toda? Então, começa a supervalorizar aquilo que deveria ser somente instrumental ou a manipular o que cabe somente a Deus? Ela pensa ser dona da vinha. Sim. Mesmo tendo o Senhor da vinha representado em esculturas ou quadros, mesmo cantando seu nome em hinos e mencionando-o em suas orações, o modo como a Igreja trata de si mesma pode, algumas vezes, ser marcadamente arrogante. Arrogante por querer para si um papel que não lhe cabe. Somos Corpo de Cristo. Cabeça continua sendo o próprio Cristo. Somos uma vinha. Que maravilha! Que imagem linda! Mas somos vinha do Senhor. Ele é dono da Igreja e está nEle o objetivo da Igreja. E preciso acrescentar um parêntese mais prático aqui: vivemos essa realidade devidamente quando a oração faz parte da vida da Igreja. Não somente com orações bonitas preparadas para o culto, não somente em um kyrie entoado com sincera esperança, mas em todo tempo, em nossa vida diária. Reconhecemos quem é o Senhor da Igreja quando levamos a ele as inquietações da Igreja, suas dores e aflições. Mas se pensamos que a Igreja se resolve sozinha com nossa própria sagacidade, e se pensarmos que o objetivo da Igreja é a própria Igreja ou o interesse de uma ou outra pessoa, já perdemos o norte, já perdemos o mais importante. E andamos em círculo num eterno Êxodo, ocupados com pedras enormes de vaidades intermináveis, rancores desnecessários, interesses distantes do Reino. Mas se olharmos para Cristo, e se mantivermos nossos olhos fixos em Cristo como o alvo, o motivo e o objetivo de tudo que somos e fazemos, então não deixaremos de desfrutar do Novo que o Eterno Deus preparou para nós, e que anunciava já séculos antes de Cristo por meio de Isaías. Na verdade, a Igreja é coisa simples. Com Palavra, água, pão e um pouco de vinho, ela tem tudo que precisa para ver, em meio a um mundo árido de desesperança, jorrarem ribeiros da água pura do Evangelho trazendo o perdão, a paz e a reconciliação conquistadas por Jesus na cruz. De graça. Para todo mundo. A Igreja é um milagre. E, por isso, ela também é preciosa. Então, sim, nós precisamos, com os olhos fixos em Cristo, cuidar para que ela continue sendo o que precisa ser; para que continue sendo o que é para ser. E nós, como Igreja que somos, vamos ver e desfrutar desses ribeiros aqui, porque não estaremos ocupados revirando poças velhas de água insalubre, valorizando-as como se fossem oásis desejáveis. Gente de Deus, é Jesus quem diz ainda hoje: “Quem tiver sede venha a mim e beba.” Nós vamos a ele. Não vamos perder o rumo. Não vamos. Pela graça de Deus. Amém. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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