Cesar M. Rios Estamos acostumados com os crucifixos que apresentam Jesus pregado a uma cruz sempre muito parecida, com braços abertos, de pé, e com cravos atravessados por suas palmas das mãos e peito dos pés. Mas, se ninguém fez um desenho da crucificação naquele dia atípico do século I d.C., como podemos ter certeza de que foi assim que aconteceu? Alguém dirá que sabemos simplesmente porque as crucificações eram assim. Mas não, meus caros. Havia uma diversidade de formas de se crucificar alguém. No século I d.C., poucas décadas após a crucificação de Jesus, Flávio Josefo escreveu: “E, por ira e ódio, os soldados pregavam os que eram capturados, cada um de uma forma, com deboche, e, pelo grande número de pessoas, faltava espaço para as cruzes e cruzes para os corpos.” (B. J. 5.451 – Minha tradução) Mas não haveria tantas formas diferentes de se pregar uma pessoa numa cruz. A forma do objeto impõe uma limitação. Aí, contudo, temos outro problema pouco conhecido. A forma de uma cruz também podia variar completamente. Também no século I d.C., Sêneca escreve: “Ali eu vi cruzes, não de um tipo específico, mas diferentemente fabricadas por diferentes pessoas. Alguns haviam suspendido [o punido] com a cabeça voltada para a terra; outros haviam introduzido um galho na parte pudenda; outros, ainda, estendiam os braços em uma peça de madeira. Eu vi cordas, eu vi açoites. E, para cada membro ou articulação específico, mecanismos específicos causam ferimentos.” (De Cons. XX 3 - Minha tradução) A variedade implicada no termo latino CRUX vale também para o termo grego σταυρός e seu verbo correlato σταυρόω. Um pesquisador sueco chamado Gunnar Samuelsson dedicou anos de estudo para demonstrar esse fato e nos fazer perceber que os relatos da paixão de Cristo nos Evangelhos não nos ajudam muito na apreensão da imagem do que acontece. Não informam muito além de que havia uma cruz e uma crucificação ocorrendo. E, se não podemos estabelecer precisamente o referente específico dessas palavras, não podemos estabelecer uma imagem confiável da cena narrada. Claro, quando lemos esses textos bíblicos, imaginamos toda a cena. Contudo, fazemos isso não por causa do texto em si, mas por influência de quadros, esculturas e filmes que apreciamos ao longo da vida. Mas, e a arqueologia? Não ajuda? Não muito. Bem, na verdade, ela ajuda a levantar dúvidas. Apenas um esqueleto de um crucificado judeu quase contemporâneo de Jesus foi encontrado inteiro. Os restos mortais de um certo Yehohanan revelam uma posição bem diferente da que vemos nas igrejas. Os joelhos do castigado ficariam flexionados, os pés juntos ao lado da cruz, com um cravo longo atravessando ambos pelos tornozelos, e cravos atravessariam os antebraços. Martin Scorsese, no filme 'A última tentação de Cristo' (1988), aproveitou a descoberta em sua representação. A imagem ficou assim: Mas é preciso sempre lembrar que Sêneca e Josefo falam de haver muitas formas de crucificação. Nada indica que Jesus e o homem cujo esqueleto foi achado tenham sofrido da mesmíssima forma. Inclusive, há outro achado arqueológico que pode assegurar essa diversidade. Um cravo passa pelas costas de uma mão. Os ossos das mãos não suportariam o peso de um crucificado desfalecendo, alguém lembra. Mas os braços poderiam ser passados por trás da madeira. Nesse caso, o braço sustenta o peso. Os cravos só os deixam ligados à madeira. Bom, e se recorrermos às representações antigas? Eis as mais antigas de que temos notícia: Há alguma consistência, e é possível supor que essas representações antigas definiram traços básicos das representações medievais e posteriores. Mas não temos segurança de que essas imagens, oriundas de mais de 100 anos após a crucificação, reproduzam o acontecimento com fidedignidade. Um amigo perspicaz me perguntou: “Mas por que essa posição se perpetuou?” Não sei exatamente, mas, assim que escutei a pergunta, me ocorreu que a explicação talvez esteja no material, no suporte usado para as representações antigas. Fazer um entalhe minúsculo em pedra ou marfim representando joelhos flexionados se projetando para frente implicaria em dificuldades óbvias. E se não houvesse projeção alguma, com o tórax da pessoa voltado para frente, a imagem ficaria muito ruim. Considerando tudo isso, é preciso reconhecer que as variações pontuais encontradas nas representações artísticas ao longo dos séculos (e também em um mesmo tempo) não devem ser consideradas como provas de equívoco. Penso nos seguintes exemplos: Lembro que essa exposição apresenta somente um fato, um problema histórico. Se há alguma repercussão religiosa nisso, cabe ao leitor decidir. Parece-me que não. Mas eu sei de uma coisa: Você não sabe em que posição Jesus foi crucificado. E eu também não sei.
2 Comments
Alexandre matos
7/18/2017 04:25:35 pm
Cesar M. Rios. Quero parabenizá-lo pela pesquisa e incentivá-lo que continue pois sua pesquisa é de grande valia. Gostaria de solicitar a referencia de sêneca e como faço para comprar esta obra que sêneca menciona estas crucificações pois e se possível a loja desde já agradeço.
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Obrigado por seu contato, Alexandre!
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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