7º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS TEMPO DE SER OUVIDO: UMA CONVERSA SOBRE ORAÇÃO E HUMILDADE Lucas 11.1-13 Gênesis 18.17-33 Cesar Motta Rios Oração é o assunto de hoje. Pode parecer difícil por uma razão prática e por uma questão mais de pensamento também. Do ponto de vista prático, orar é assunto complicado, porque, em geral, sabemos que oramos menos do que deveríamos. “Orai sem cessar” – Paulo escreve (1 Ts 5.17) para nos incomodar de vez em quando. Mas eu prefiro deixar essa questão prática para um segundo momento. Se nós nos lembrarmos bem do que é a oração, ficará mais fácil também nos lembrarmos de orar mais. Mas, na verdade, a prática da oração e o ensino sobre oração andam juntos. Você percebeu como começa a cena em que Jesus ensina seus discípulos como orar? Ele mesmo estava orando num lugar. Quando parou, um dos discípulos pediu que ensinasse, como João Batista tinha ensinado os seus próprios discípulos. Jesus, na verdade, já estava ensinando com seu exemplo. (Isso nos lembra de algo muito sabido, mas bom de repetir: pouco adianta falarmos horas sobre oração para quem quer que seja, se não orarmos também. Isso vale especialmente para nossa responsabilidade com nossos filhos, é claro - mas isto é só um parêntese.) Pois então, a partir do exemplo de Jesus, o discípulo quer instrução mais direta. Jesus vai logo expondo uma bela e concisa oração, que vamos chamar de Pai Nosso. É um belo ensino do Mestre. Mas ele vai além. Não só ensina como orar, mas exorta, incentiva e encoraja à prática da oração. Se eu fosse um dos discípulos desse mestre naquele dia, ia pensar que ele estava só esperando o ensejo para nos dar essa lição, porque ele é muito enfático. Logo, vem com duas imagens diferentes para mostrar que faz sentido orar: primeiro, a do amigo à porta; em seguida, a do pai escutando o pedido de um filho. Ele traz essa lógica das relações humanas – pedir é um passo para receber – para a nossa relação com Deus em oração. Mas pedir a Deus? Dizer algo específico de que preciso? Pedir a meu pai ou a um amigo é uma coisa. Eles são gente falha como eu. Pedir ao Eterno Criador de tudo que existe parece pretensioso demais. Eu reconheço que há um incômodo nisso. E, talvez, Jesus tenha sido tão insistente nesse convite à prática da oração por saber que vemos com estranheza essa nossa situação. Lembro de um teólogo que ensinava: “Vocês não devem pautar Deus em suas orações!” Ele realmente não gostava da ideia de fazermos pedidos claros para Deus sobre assuntos de nossas vidas, comunidades etc. Eu até entendo. Realmente, entendo que esses escrúpulos são motivados por um bom senso teológico respeitável. Mas Deus não nos deixou uma religião de bom senso humano. Na verdade, a fé cristã envolve muitas coisas que parecem ser contrassenso, como é o próprio fato de Deus nos salvar de graça pela morte de seu Filho na cruz; assim também, o fato de esconder um milagre em elementos triviais como pão e vinho. E, também nessa lista, está o convite à oração. Eu gostaria de comentar que vejo esse incômodo bem ilustrado no outro texto que lemos hoje. Deus resolve contar a Abraão sobre seus planos com relação a Sodoma. Abraão resolve interceder, clamar por misericórdia. Ele tinha parente naquela cidade. Pergunta, primeiro, se o Senhor destruiria a cidade mesmo se houvesse cinquenta justos por ali. O Senhor afirma que não. Mas o número ainda é alto. Abraão quer baixá-lo. Ele precisa continuar falando, pedindo. Mas reconhece que há algo inusitado nisso. Ele se vê em uma conversa com o próprio Deus Eterno. Então, quando começa sua segunda fala, expressa isso de forma radical e belíssima ao mesmo tempo: “Eis que eu ousei dirigir a palavra ao Senhor; e eu mesmo sou pó e cinza.” A contraposição entre o Imortal e o mortal, o Eterno e o perecível assombra a mente do patriarca. Eu mesmo sou pó e cinza. Com essas palavras, o ser humano expressa com humildade sua condição. Ele é feito do pó da terra, é humus.[1] Então, somente assim, com a humildade da pessoa que ora, a oração será o que é para ser. Mas olho de novo para o que Abraão diz em hebraico.[2] Ele usa uma expressão belíssima, como eu disse. E é bela por sua sonoridade. “E eu mesmo sou pó e cinza” em hebraico é וְאָנֹכִ֖י עָפָ֥ר וָאֵֽפֶר (vê-anokhi afar va-éfer).[3] Percebe como a sonoridade das palavras para “pó” (afar) e “cinza” (éfer) é semelhante? Para mim, estamos quase lendo poesia. É incrível que esse par não apareça muitas vezes na Bíblia hebraica. Uma coincidência (de som e de sentido) assim poderia ser mais usada. Mas mesmo Davi, tão dado à arte poética, não aproveita esse par de palavras nos Salmos. Na verdade, só duas vezes essa combinação ocorre de novo. E uma delas, pelo menos, me é muito interessante para esta reflexão. No capítulo 30 do livro de Jó, o próprio sofredor protagonista daquela história fala de seu passado de boa vida e, em seguida, de sua condição miserável em meio aos sofrimentos inesperados. Em dado momento, afirma: “Deus me lançou na lama, e me tornei כֶּעָפָ֥ר וָאֵֽפֶר (kê-afar vá-éfer) - semelhante ao pó e à cinza”. Aí estão as mesmas palavras. Mas Jó ainda não sabe das coisas como Abraão. Pelo menos, não se expressa bem como Abraão. Enquanto este último sabe que é pó e cinza por aquilo que é mesmo, diante de Deus, Jó pensa que está como pó e cinza por causa de seus reveses, de suas desventuras da vida. Não, Jó. Você não ficou como pó e cinza. É isso eu você era e é. Depois, no final do livro, Jó vai reconhecer que falava do que não entendia (42.3) e vai se arrepender, justamente, no pó e na cinza (42.6), de novo esse par de palavras. O que mais me interessa ressaltar é que Abraão reconhece profundamente sua condição precária, e a reconhece como sua essência, e não como um acidente da vida. Ele não nega a estranheza da situação – um nada falando com o Criador de tudo. Ele afirma a estranheza. Mas a estranheza não o impede de prosseguir, porque ele precisa. Então, o que digo é que é estranho mesmo orar. Se começamos a pensar como pode isso de o Criador completamente sábio mudar sua ação pelo pedido de um ser que é pó e cinza, nós podemos nos perder na estranheza somente, no espanto e, quem sabe, num estranho ceticismo piedoso e teologicamente bem-intencionado. Será que Deus queria fazer tal coisa e me fez orar assim para...? E se pedirmos e não formos atendidos, não vamos nos decepcionar? E se alguém ouvir nossa oração e pensar que estamos mandando Deus fazer alguma coisa? Vamos mesmo pedir por milagres? Não é melhor pedir por algo que, se acontecer ou não acontecer, nem perceberemos? Em vez de nos perdermos nessas questões, podemos, como Abraão, só constatar a contradição com humildade, prosseguir e orar. E até podemos dizer: “Senhor, é estranho e não faz muito sentido eu pedir algo a ti, mas Jesus disse que eu deveria fazer isso, e a necessidade é real, então, eu peço”. Assim, nossa racionalidade por demais pretensiosa vai para o pó da terra junto com tudo o que somos. E é ali que ela deve estar quando estamos diante de Deus. Porque, de qualquer forma, nossa razão, como nosso coração de pó e cinza, jamais iria temer a Deus, amá-lo e confiar nele por si mesma. Mas o Senhor nos conduz à oração. Por isso, vamos humildemente falar com ele. Se falta motivação, Tiago insiste para seus leitores: “Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tg 5.16). E ele ilustra ainda: “Elias era homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e orou com fervor para que não chovesse sobre a terra, e, por três anos e seis meses, não choveu. Depois, orou de novo, e então o céu deu chuva, e a terra produziu os seus frutos” (Tg 5.17-18). Diante de tanta insistência das Escrituras, e diante de tantos exemplos, eu entendo que deixar de pedir a Deus, deixar de fazer a ele nossas súplicas com fé é que é desrespeitoso. Vamos, então, pedir o que realmente precisamos pedir, o que está em nosso coração, invocando o nome do Senhor em todas as necessidades, como aprendemos desde pequenos. A oração é uma expressão sincera e urgente de um necessitado miserável diante daquele que tudo pode. Em palavras mais bonitas de Bonhoeffer: “Orar significa confiar-se a Deus”, “é o pedido da criança ao coração do pai”. Nessa relação, várias inquietações se tornam bem menos importantes. Nosso lugar é o dos suplicantes. Então, vamos fazer as súplicas. É simples. A nós, pó e cinza, está dito: “Buscai e achareis”. Isso também é assim por graça de Deus. Amém. [1] Humus é obviamente o termo latino para “terra”. A relação entre os termos humus e humanus é mais complexa do que pode parecer. Não exploro essa questão diacrônica. Apenas aproveito a semelhança final. Na pregação em si, não dei destaque algum a isso. [2] Não costumo me referir a detalhes dos textos em suas línguas originais nos sermões, mas, nesse caso, o detalhe envolve a forma. Pareceu-me necessário. [3] A transliteração não segue normas estabelecidas de precisão. O objetivo é somente suprir a falta que faz a fala do pregador nesta leitura do texto.
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6º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS TEMPO DE OUVIR: UMA CONVERSA SOBRE PALAVRA E TRABALHO Lucas 10.38-42 Cesar Motta Rios Eu entendo que temos duas tarefas a cumprir nesta conversa. A primeira é simplesmente ler com cuidado o texto do Evangelho e procurar entender a cena que nos é apresentada. A segunda tarefa seria pensar o que é que esse episódio pode ensinar para a nossa vida. Primeiro, eu reconheço que, numa leitura rápida, a cena parece simples. Há três pessoas envolvidas. Há uma reclamação de uma delas, que está trabalhando sozinha enquanto a irmã está sentada. Jesus não atende, porque é importante ouvir a Palavra. Fim. Mas vamos menos afoitos. Primeiro, observo que é Marta a anfitriã. O versículo 38 diz que é Marta que recebe Jesus. Maria é apresentada como a irmã dela, que estava também ali na casa. Essa, que simplesmente estava na casa fica junto de Jesus para escutar seu discurso. E Marta, que o recebeu, fica nas tarefas para servir. Há muito o que fazer. Isso e o fato de Jesus estar discursando lembra que é muito provável que não são só essas três pessoas que estão na casa. Também, o primeiro versículo do trecho lembra que Jesus não viaja sozinho quando chega àquela vila. Parece bem que há mais gente ali escutando Jesus. Maria é mais uma a ficar perto dele. E é importante lembrar que não estamos no século XXI nessa cena. Hoje, há uma igualdade total de participação nos momentos de estudo entre homens e mulheres. Vamos às casas e a família toda se reúne para conversar sobre o tema do estudo bíblico. Se nos reunimos aqui, homens e mulheres discutem igualmente as dificuldades que encontramos na interpretação. Eu até posso dizer que mais mulheres que homens têm vindo aos estudos bíblicos. Mas no contexto de Jesus isso era menos normal. Maria decidir ficar ali escutando atentamente em vez de ir para os bastidores enquanto os homens conversam sobre coisas importantes não é uma decisão que passa despercebida. Então, o que acontece é que Marta, que recebera Jesus, percebe que há mais trabalho e quer ajuda. Mas Maria estava já entre os que estudavam com Jesus. Mesmo sendo algo atípico, mesmo tendo outras tarefas com as quais ela podia se ocupar, Jesus não segue as expectativas sociais (que Marta traz explicitamente à cena), mas elogia Maria por sua vontade de aprender. O que, para muitos, poderia parecer inadequado, para Jesus, era louvável. Maria fica! E é interessante que ela fica, na cena, em silêncio. Fala-se dela, mas ela não fala. Ela é toda ouvidos. Só uma coisa é realmente necessária: ouvir a Palavra de Deus. E é necessária não para uns somente, mas para todos, homens e mulheres, jovens e idosos. É necessária para Maria e para cada um de nós. É ouvindo a Palavra que temos confiança firme de que somos perdoados e acolhidos por Deus pelo sacrifício de Cristo. E é ouvindo a Palavra que temos orientação no nosso caminho pela vida. Agora, já entrando na segunda tarefa, a de pensar o que esse texto ensina para nós, eu esbarro em um problema: Esse episódio traz uma desvalorização do trabalho? Isso é especialmente importante para nós, herdeiros da Reforma do século XVI. Nos reformadores, nós encontramos uma revalorização do trabalho comum, das ocupações comuns. E essa revalorização se contrapõe ao pretenso valor superior que tinha o cumprimento de mandamentos não dados por Deus, mas arquitetados pela mente humana. Era, claramente, um enfrentamento contra a ideia de que a vida monástica era superior à vida comum, fora dos mosteiros. Como aponta a Confissão de Augsburgo: “Julgava-se que o cristianismo todo consistia na observação de certos dias santos, ritos, jejuns e vestimenta. Essas observâncias estavam na posse do honradíssimo título de serem a vida espiritual e a vida perfeita. Enquanto isso, os mandamentos de Deus, segundo a vocação, nenhum louvor recebiam: que o pai educava os filhos, que a mãe dava à luz, que o príncipe regia o país.” (CA, XXVI, 8-10). Ou seja, as ocupações do dia a dia, nosso trabalho, era tido como alheio à vida cristã, religiosa, enquanto a vida contemplativa era valorizada sozinha. Então, pode parecer que essa cena com Jesus vai contra nossa revalorização do trabalho comum. Afinal, Marta ali está em sua ocupação. Maria está na contemplação. Marta parece ocupar o lugar das pessoas comuns. Maria, o dos monges. E Jesus elogia a atitude de Maria. É isso? Pois bem, é preciso que façamos duas considerações importantes, uma sobre o Evangelho lido e outra sobre a proposta dos reformadores: 1) Não é o propósito desse texto de Lucas extirpar o valor do trabalho e propor que todos fiquemos o tempo todo escutando a Palavra. Se voltamos e lemos a cena como fizemos, o que parece haver é a defesa da permanência de uma pessoa naquela atividade de escuta e aprendizado, e uma realçada valorização da participação de cada pessoa nessa escuta da Palavra. Não há uma supressão da necessidade do serviço. Afinal, Jesus mesmo serve os seus em outros momentos, é acompanhado por mulheres que o servem, e seus seguidores também se ocupam adiante com trabalhos, como o notório caso de Paulo, fazedor de tendas. A fala de Jesus diz que é preciso escutar. E que isso vale para todos. 2) Quanto à proposta da Reforma, é bom lembrar que o que vemos sendo construído no argumento das Confissões luteranas e em outros textos relacionados não é uma simples secularização, uma valorização da vida comum por si mesma. Não há uma desvalorização da Palavra ou uma sugestão de que ela fosse dispensável para uma vida virtuosa, digna ou cheia de sentido. Pode parecer isso, mas não é. Diz a Apologia da Confissão que perfeição “é cada qual obedecer com verdadeira fé à sua vocação” (Apol. XXVII, 50). A sua vocação como vendedor, pai, mãe, professor, professora, engenheiro ou o que quer que seja é vivida devidamente quando é vivida com fé. Então, não há vocação bem vivida sem a Palavra (donde nos vem a fé), mas somente na Palavra, abarcada pela Palavra. É aí que, no seu trabalho, você não servirá somente a si mesmo, procurando o ganho próprio, mas também ao próximo, como servo de Cristo que é. É aí que, ao vender algo, por exemplo, você não vê simplesmente um sucesso seu, mas o trabalho prestado àquela pessoa que precisava tanto de tal produto. Repito: os reformadores não valorizaram a vida sem fé, mas quiseram trazer a fé para a vida comum, valorizar a vida de todos os dias com a Palavra. Não é também uma ferramenta nesse sentido o Catecismo, por exemplo? Com isso, quero dizer que a cena na casa com Marta e Maria não nos é estranha. Ela é, pelo contrário, o retrato de nossa vida de Palavra e de ação. Vivemos nossa comunhão com a Palavra. Isso é imprescindível para podermos viver melhor nossa comunhão com o próximo, em nosso trabalho cotidiano. O dia do descanso é necessário para os dias de trabalho. O novo alimento – a Palavra de Deus – é necessário para a nova vida dessa Nova Criatura, que é a pessoa cristã. Você vem ouvir a Palavra, lê a sua Bíblia, conversa sobre isso, não somente para a vida na Eternidade, e não somente para a sua vida enquanto pessoa religiosa, luterana ou o que quer que seja, mas para viver nas suas ocupações cotidianas com mais sentido, não para si somente, mas para a glória de Deus e para o bem do próximo. E, se isso acontece, é muito, muito bom! E, percebendo como isso é bom, assim como Maria, mesmo nestes nossos tempos de “correria”, como costumamos dizer, não abrimos mão do lugar aos pés de Jesus, o nosso lugar como discípulos atentos, agraciados por ele com salvação eterna e com sua companhia para toda a caminhada nesta terra. Porque ele nos aceita e nos quer ali. Graças a Deus. Amém. 4º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS O PREGADOR DEVERIA DIZER “AI DE TI, COMUNIDADE CONCÓRDIA”? Lucas 10.1-20 Isaías 66.10-14 Gálatas 6.1-10,14-18 Cesar Motta Rios [O pregador começa a reflexão junto à congregação, sem assumir o púlpito.] Eu começo aqui de baixo, porque, antes de iniciar propriamente o anúncio do sermão, prefiro deixar definida a resposta para a pergunta que coloquei como título: O pregador deveria dizer “Ai de ti, Comunidade Concórdia”? E é bom responder isso junto de vocês, junto da parte interessada. É claro que o “ai de ti” está aí por aparecer na fala de Jesus. Então, para entender se ele – o “ai de ti” – vale para a Comunidade, precisamos entender como é que ele aparece no Evangelho. Jesus enviava representantes que fossem adiante dele. Veja que Jesus os envia até as cidades pelas quais ele estava para visitar (Lc 10.1)! Isso é importante. Eles vão como enviados de Jesus, como pessoas que trazem a mensagem de Jesus, que vai em seguida. Esses enviados fazem como que uma “pré-visita” de Jesus. Quando esses enviados fossem recebidos, eles tinham um anúncio bonito a fazer: “O Reino de Deus está próximo de vocês!”. Já as cidades que não recebessem aqueles discípulos seriam severamente repreendidas: “O Reino de Deus está próximo!”. A mensagem bonita e a mensagem severa são praticamente a mesma! Mas, para os que rejeitam a mensagem de Jesus, o Reino de Deus traz junto um julgamento implacável: mais rigoroso do que o julgamento contra Sodoma. Não se trata de comparar moralmente as cidades. Não se trata de dizer que Sodoma pecou menos que as cidades visitadas, ou mais. Trata-se da recusa em receber o Cristo, o redentor. E é aí que aparece o “ai de ti” para algumas cidades. Jesus usa um modo de dizer que lembra o de profetas do Antigo Testamento, que exortam e repreendem coletividades inteiras, povos e cidades. “Ai de ti”, porque não receberam a Jesus como o deviam ter recebido. É, isso que está dito a Corazim e a Betsaida. Na verdade, se bem considerarmos isso, veremos que esse “ai de ti” está pendendo sobre toda a humanidade desde o Gênesis. Não se escapa desse “ai de ti” por nenhum meio, por nenhuma inventividade. É só o próprio Cristo que nos arranca do império das trevas e nos transplanta para o Reino de Luz, retirando-nos completamente do âmbito do “ai de ti”. Por isso, não receber a Cristo é o que faz o “ai de ti” ser anunciado contra aqueles grupos de pessoas. É como se dissesse: o julgamento, o “ai de ti” permanece, porque vocês não aceitaram Aquele que veio livrá-los dele. E nossa questão? O pregador deveria dizer “ai de ti” para a Comunidade Concórdia? Consideremos [eu gostaria de dizer “vinde e arrazoemos!]: O que estamos fazendo aqui? O que buscamos ao virmos a este culto? Ouvir a Palavra de Deus, receber a mensagem de Cristo, o perdão, a comunhão com Ele. A questão para Corazim, Betsaida e Cafarnaum era essa: Recebem ou desprezam? Para nós também. E nossa presença aqui diz que queremos receber a Cristo. Acho que a resposta fica um tanto óbvia. E posso ir assumir o púlpito. Lá, não vou dizer “ai de ti, Comunidade Concórdia”. Definitivamente, não. Poderão dizer que, por isso, a pregação será “água com açúcar”. Mas eu já lembro que não tem nada de “água com açúcar” aqui, porque, para que a mensagem que vai ser pregada pudesse ser pregada com verdade, Deus (Filho) sangrou na cruz para pagar pelos nossos pecados. Essa mensagem é séria e pesada. [O pregador assume o púlpito.] Se não vou dizer “ai de ti, Comunidade Concórdia”, o que devo dizer? Posso dizer que você é bem-aventurada, Comunidade Concórdia. Bem-aventurada porque se reúne para escutar a Palavra; porque se reúne para receber a Santa Ceia do Senhor; porque se reúne em dias frios no meio da semana para estudar a Palavra de Deus; porque move forças para pintar estas paredes, cuidando do espaço em que o perdão é compartilhado; porque sua juventude tem ouvidos atentos e quer andar com Cristo; porque suas crianças têm mensagem de Deus preparada com carinho; porque os seus enfermos e idosos recebem a Santa Ceia em casa se não podem estar conosco; porque você sabe se unir para preparar e desfrutar de momentos de confraternização, como a festa da semana passada; porque se importa e ora por aqueles que estão em aflição. “Bem-aventurada Comunidade Concórdia”, porque posso olhar com vocês para o texto de Isaías. Ali, Deus revela uma realidade completamente nova para uma era vindoura, diferente de tudo que se conhecia. A novidade é mesmo fora de série, porque Ele fala de novo céu e nova terra (Is 65.17)! Nessa nova condição de existência, o cuidado dEle para com aqueles que escutam sua voz e tremem diante de sua palavra (Is 66.5) é destacado de forma ímpar. E, a partir desse lindo texto, que mereceria ser relido em sua casa, eu posso dizer que Deus quer cuidar de você assim como uma mãe cuida de um bebê, que sequer entende bem o que está acontecendo. Então, você poderá se lembrar do texto de Gálatas que também foi lido e dizer: “Mas eu não sou tudo isso que a epístola diz que devo ser!”. De fato, o apóstolo nos chama a fazermos o bem incansavelmente, a levarmos os fardos uns dos outros! E - você pode dizer - não há só bem entre nós! Não há só atitudes de apoio mútuo. Nós temos nossas limitações. Nós temos nossas rusgas, nossos desentendimentos. Nós nem sempre agimos com a presteza que deveríamos para viver e anunciar o Evangelho. É verdade que Deus quer que esse cuidado que ele tem para conosco seja vivido já entre nós e a partir de nós, que somos o Corpo de Cristo na terra. E não cuidamos sempre dos outros com todo esse amor materno de que o Senhor fala. Mas estamos aqui reunidos também para escutarmos isso e para reconhecermos nossas imperfeições. Tropeçamos sim, é verdade, mas nos levantamos e tentamos caminhar de novo, e de novo, e de novo. Então, contra isso tudo, e apesar disso tudo, eu posso dizer com ainda mais ênfase: Você é bem-aventurada, Comunidade Concórdia, porque é perdoada. Fique feliz, Comunidade Concórdia, não simplesmente por aquilo que você faz, mas, principalmente, fique muito feliz, porque o nome de cada um de vocês está registrado no Céu, por pura graça de Deus. Amém. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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