Eu, porém, vos digo: comunhão!
Cesar Motta Rios A série de afirmações contrastantes de Jesus em Mateus 5.21-48 pode ser lida a partir de diversas perspectivas e suscitar também variadas interpretações. Um caminho possível é olhar para o texto a partir de uma noção individualista e, consequentemente, encontrar nele somente uma afirmação sobre cada pessoa diante de Deus. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma leitura espiritualizada. Jesus estaria simplesmente demonstrando que o ser humano é incapaz de responder devida e profundamente à Lei em seu sentido último. A pessoa, no confronto com esse discurso, vê a si mesma isoladamente. É possível, também, encontrar leituras mais sociais, que encontram uma aula de ética fundamentada em normas estritas, sem atenção para um aspecto espiritual/teológico. Uma terceira via poderia reconhecer algo como uma dimensão ética e, ao mesmo tempo, considerar como ela se relaciona com um aspecto teológico. O assunto seria simultaneamente o relacionamento entre pessoas e a questão da justiça e do pecado. Nossa falta de justiça e nosso pecado sempre presente nos impedem de viver em comunhão verdadeira e satisfatória. Não podemos negar que todas as leis evocadas e comentadas por Jesus dizem respeito ao ser humano em sua dimensão social. O aprofundamento de sentido operado por Jesus não só revela nossa incapacidade de agir corretamente o tempo todo, mas também o fato de que o dano do pecado, enquanto descumprimento da lei em seu sentido mais superficial e imediatamente percebido, também acontece em ações mais sutis. Assassinar outra pessoa é a forma extrema de aniquilar a possibilidade de comunhão. Nega-se ao outro o direito de existir. Você simplesmente elimina alguém com quem deveria conviver, colocando um ponto final em qualquer intento de convivência. Odiar outra pessoa também faz você estar sob esse juízo. Afinal, essa disposição interior com relação ao outro, ainda que não manifestada em aniquilação física, estabelece uma ruptura, de modo que, para aquele que odeia, a pessoa odiada deixa de ser pessoa com quem se possa conviver. Certo é que o pecado nos faz querer rupturas. O adultério certamente desestabiliza a convivência. Jesus coloca sob essa categoria o simples olhar lascivo. É curioso que o adultério parece prejudicar a vida social por fazer ruir a família. Mas a colocação de Jesus acaba enfrentando um problema mais fundamental: a objetificação do outro. O olhar lascivo acusado nas palavras do Cristo faz com que uma mulher não seja respeitada como pessoa, como profissional, como cidadã, mas desejada como objeto a ser possuído. Rompe-se a convivência entre pessoas com igual dignidade. Estabelece-se uma relação de consumo e posse. É nesse mesmo sentido que se pode compreender também o dano do divórcio banalizado. Certo é que o pecado faz com que não vejamos as outras pessoas sempre como pessoas. Em vez de comunhão, temos uma relação utilitária com elas. A restrição ao juramento, por sua vez, vem com a afirmação radical da necessidade da verdade e da confiança nas interações. Certo é que o pecado perturba esse caminho necessário. Vivemos sob o signo da desconfiança, da mentira astuta, do convencimento desleal. O regramento para se revidar proporcionalmente – olho por olho - é sombreado pelo apelo ao não revidar. Em vez de fazer ecoar a perturbação da convivência, que, contra o pretendido estabelecimento de um limite para a retratação, pode acabar perpetuando a ruptura, Jesus propõe uma atitude radical, que suporta a injustiça pacificamente, com vistas à supressão do processo de oposição. Certo é que o pecado não nos conduz à pacificação das relações, mas à exigência de reparação. Por fim, Jesus alcança o ápice com o “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”. Parece um extremo oposto do início dessa parte da exposição. Começamos com o extremo da ruptura – o homicídio – e terminamos com o extremo da comunhão – o amor. O amor, de fato, aparece não somente como meio de manter convivência que está em andamento, mas de subverter completamente a lógica pecaminosa da ruptura. É certo que o pecado torna essa reviravolta completamente incompreensível e, até mesmo, odiosa. Correndo os olhos pelo discurso de Jesus com esse duplo aspecto em mente – o fato teológico/antropológico do pecado e a valorização da manutenção da convivência, talvez sejamos convidados a vislumbrar que a questão teológica está intimamente relacionada com a vivência em comunidade. Não há dicotomia entre espiritual e social que se sustente. Não há dicotomia entre vida moral e espiritual. A vontade de Deus é que o pecado não perturbe a comunhão entre Ele e a humanidade ou entre nós humanos. Realmente, a supressão absoluta da ruptura causada pelo pecado não é conseguida pela observação de regras elevadas por parte de seres imperfeitos. Essas palavras de Jesus continuam deixando evidente a necessidade de uma intervenção divina nesse sentido. E a intervenção veio pela cruz, sendo chamada de reconciliação. Mas essas mesmas palavras do Mestre não deixam, contudo, de expressar o anseio de Deus para nossa vida, e de nos mobilizar a, unidos a Cristo, sem o qual nada podemos fazer, cultivar uma vida que preze pelo que Deus quer para nós e considere atentamente a verdadeira perversidade do que Deus não quer. Com nossas atitudes e palavras, frequentemente dizemos: “Egoísmo! Ruptura!”. Cristo, porém, nos diz com palavras, com sua vida e até mesmo em nossas vidas: “Comunhão!”.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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