Uma história bem contada tem sabor melhor: as bodas de Caná e a água feita vinho
Cesar Motta Rios Contar história é uma tarefa nobre. Acho que sim, porque você mantém a atenção de outras pessoas, ocupa seu tempo. E isso é um ato de respeito da parte delas. Mas contar história pode ser feito de diversas maneiras. Um mesmo acontecimento pode ganhar incontáveis configurações. Pode-se variar o ponto de vista, a quantidade de informações, de detalhes, o fluxo do tempo etc. A história sagrada – que é a história do mundo – também pode ser contada com mais ou menos gosto. E essa preocupação com o jeito de contar não é coisa nova ou uma invencionice moderna de uma Igreja em confronto com um novo mundo. Os escritores bíblicos contaram com cuidado aquilo que contaram. São acusados de simplicidade, de falta de qualidade literária vez por outra. Mas, sem procurar defendê-los nessa questão, até por ser desnecessário fazer isso, acho fácil perceber que há neles um intento, um esforço por arquitetar a contação. Há uma dedicação nisso e não somente uma vontade de registrar certa quantidade de acontecimentos e ser verdadeiro no conteúdo. Nada de novo para você nisso, eu imagino. Agora, gostaria de oferecer um exemplo que tinha me passado despercebido em outras leituras. O caso é o casamento em Caná da Galileia, o famoso ocorrido em que Jesus “transforma” água em vinho. E o interessante que eu noto é que a transformação em si não é narrada, já percebeu isso? Καὶ τῇ ἡμέρᾳ τῇ τρίτῃ γάμος ἐγένετο ἐν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας, καὶ ἦν ἡ μήτηρ τοῦ Ἰησοῦ ἐκεῖ· 2 ἐκλήθη δὲ καὶ ὁ Ἰησοῦς καὶ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ εἰς τὸν γάμον. 3 καὶ ὑστερήσαντος οἴνου λέγει ἡ μήτηρ τοῦ Ἰησοῦ πρὸς αὐτόν· οἶνον οὐκ ἔχουσιν. 4 [καὶ] λέγει αὐτῇ ὁ Ἰησοῦς· τί ἐμοὶ καὶ σοί, γύναι; οὔπω ἥκει ἡ ὥρα μου. 5 λέγει ἡ μήτηρ αὐτοῦ τοῖς διακόνοις· ὅ τι ἂν λέγῃ ὑμῖν ποιήσατε. 6 ἦσαν δὲ ἐκεῖ λίθιναι ὑδρίαι ἓξ κατὰ τὸν καθαρισμὸν τῶν Ἰουδαίων κείμεναι, χωροῦσαι ἀνὰ μετρητὰς δύο ἢ τρεῖς. 7 λέγει αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς· γεμίσατε τὰς ὑδρίας ὕδατος. καὶ ἐγέμισαν αὐτὰς ἕως ἄνω. 8 καὶ λέγει αὐτοῖς· ἀντλήσατε νῦν καὶ φέρετε τῷ ἀρχιτρικλίνῳ· οἱ δὲ ἤνεγκαν. 9 ὡς δὲ ἐγεύσατο ὁ ἀρχιτρίκλινος τὸ ὕδωρ οἶνον γεγενημένον καὶ οὐκ ᾔδει πόθεν ἐστίν, οἱ δὲ διάκονοι ᾔδεισαν οἱ ἠντληκότες τὸ ὕδωρ, φωνεῖ τὸν νυμφίον ὁ ἀρχιτρίκλινος 10 καὶ λέγει αὐτῷ· πᾶς ἄνθρωπος πρῶτον τὸν καλὸν οἶνον τίθησιν καὶ ὅταν μεθυσθῶσιν τὸν ἐλάσσω· σὺ τετήρηκας τὸν καλὸν οἶνον ἕως ἄρτι. 11 Ταύτην ἐποίησεν ἀρχὴν τῶν σημείων ὁ Ἰησοῦς ἐν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας καὶ ἐφανέρωσεν τὴν δόξαν αὐτοῦ, καὶ ἐπίστευσαν εἰς αὐτὸν οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ. 21Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava ali. 2Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o casamento. 3Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: — Eles não têm mais vinho. 4Mas Jesus respondeu: — Por que a senhora está me dizendo isso? Ainda não é chegada a minha hora. 5Então ela falou aos serventes: — Façam tudo o que ele disser. 6Estavam ali seis potes de pedra, que os judeus usavam para as purificações, e em cada um cabiam cerca de cem litros. 7Jesus lhes disse: — Encham de água esses potes. E eles os encheram totalmente. 8Então lhes disse: — Agora tirem um pouco e levem ao responsável pela festa. Eles o fizeram. 9Quando o responsável pela festa provou a água transformada em vinho — ele não sabia de onde tinha vindo, por mais que os serventes que haviam tirado a água soubessem —, chamou o noivo 10e lhe disse: — Todos costumam servir primeiro o vinho bom e, quando já beberam muito, servem o vinho inferior; você, porém, guardou o melhor vinho até agora! 11Assim, em Caná da Galileia, Jesus deu início a seus sinais. Ele manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. É bem simples de se observar o que quero assinalar. Jesus manda encher os recipientes de água. Em seguida, manda tirarem e levarem ao responsável pela festa. Eles levaram. (Na tradução que citei, a NAA, acaba que essa peculiaridade desaparece, porque há um objeto para o primeiro verbo escolhido – um pouco – e o terceiro é alterado para evitar a repetição. Em vez de “levaram”, aparece “o fizeram”). Até aqui, não aparece o termo para “vinho”. Veja bem. Apareceram três verbos e nada de aparecer um objeto direto: o que é retirado dos recipientes; o que é para ser levado; o que foi levado. O leitor sabe que água foi colocada lá. Sabe que foi tirado algo (água!?) de lá. Agora, só quando o responsável pela festa prova é que sabemos do que se trata. Ele provou a água tornada em vinho. Veja só, aqui está o resultado. Não temos em nenhum momento a afirmação de que Jesus transformou isso naquilo. Somos deixados na espera para saber do resultado. Quando alguém prova, “provamos” junto. É aí que descobrimos o desfecho. Claro, isso não funciona exatamente assim, porque todo mundo que lê o texto já sabe o que vai acontecer. Só numa leitura calma isso aparece. E que gosto bom tem quando aparece! Nem precisava ter feito isso, João. Mas ficou bom, viu? Mas... E como o autor poderia ter contado a ação de Jesus? Simples! Ele usaria o verbo ποιέω / fazer, que aparece noutro trecho, quando Jesus volta a Caná e esse episódio é referido. Ἦλθεν οὖν πάλιν εἰς τὴν Κανὰ τῆς Γαλιλαίας, ὅπου ἐποίησεν τὸ ὕδωρ οἶνον. Jesus foi outra vez a Caná da Galileia, onde tinha transformado água em vinho. Literalmente, ele fez a água ser vinho. Encerro essa nota, na qual só queria mencionar esse mini-suspense na cena (não da transformação, pois essa é velada pelo silêncio, mas) da água transformada em vinho, remetendo a outro dado dessa construção consciente do Quarto Evangelho. Jesus faz. É muito interessante como o verbo ποιέω / fazer é recorrente e associado fortemente a Jesus, desde o prólogo, que diz que tudo foi feito por meio dele, passando por cenas como essa dá água feita vinho ou do coxo do tanque de Betesda que é feito são (lá está o verbo da boca do curado), e chegando ao fato de que o que Jesus faz é aquilo que o Pai faz (João 5.19). Essa capacidade de fazer, esse poder criativo de Jesus fazia muita diferença. E ainda faz. Deus é Deus. Ele pode fazer o que para qualquer humano é impensável. E essa é uma linha interessante a ser seguida nessa tessitura joanina (e percebida no tecido da vida). O tapete vai ficando a cada leitura mais impressionante. Façamos nossa humilde parte. Leiamos hoje isso que é para sempre.
0 Comments
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|