RECOMPENSA PELAS BOAS OBRAS? MAS NÃO É PELA FÉ?
Um leitor acaba de escrever a respeito de uma dúvida inquietante: "A questão é a seguinte, as vezes fico meio confusão com a relação de dois temas bíblicos e teológicos: recompensa e perdão gratuito. Como evangélico aprendi que a salvação é somente pela graça, somente por causa de Cristo, recebida somente pela fé. Porém eu estaria negando esses princípios se dissesse que haverá alguma forma de recompensa no mundo por vir? Parece-me que alguns textos bíblicos apontam pra isso quando falam de maior juízo para uns que para outros, ou quando se diz que os cristãos vão ser salvos através do fogo e algumas obras permanecerão e outras não. Qual a correta relação entre perdão de pecados e justificação só por fé e ser julgado segundo suas obras? Posso afirmar que ninguém entrará no mundo vindouro por si só, mas uma vez reconciliados com Deus cada um terá níveis diferentes de recompensa? Desculpa por tantas perguntas, mas basicamente quero saber a relação entre recompensa, seja nesse mundo ou no outro, e a dádiva da graça sem mérito, pois me parece que a bíblia ensina ambos e mesmo permanecendo firme nas confissões de fé da minha igreja, quando leio os livros de teologia e história da igreja percebo que a vários modos de relacionar ambos. Se puder responder ficarei grato, poderia indicar livros ou artigos a esse respeito? Obrigado desde já! Deus abençoe." Eu vou ter que procurar livros ou artigos (e agradeço se outros leitores ajudarem nisso), mas tive uma ideia. Bom, os luteranos foram, desde o início, radicais em afirmar a justificação por fé. Esse artigo de fé é considerado como central. Então, será que os reformadores luteranos negavam a existência de recompensas pelas boas obras por defenderem que a salvação era somente por graça mediante a fé? Cito um trecho da Apologia da Confissão de Augsburgo para mostrar que não era assim. O texto é de 1530/1531 e deixa bem claro que, para os reformadores, uma coisa não excluía a outra. Só era preciso não confundi-las. "E aqui também acrescentamos algo a respeito de prêmios e méritos. Ensinamos que foram propostos e prometidos prêmios às obras dos fiéis. Ensinamos que boas obras são meritórias, não para a remissão de pecados, a graça ou a justificação (pois isso obtemo-lo unicamente pela fé), mas para outros prêmios, corporais e espirituais, nesta vida e depois dela, porque Paulo diz: “Cada um receberá galardão segundo o seu trabalho”. Haverá, portanto, prêmios dessemelhantes, em razão da diversidade do trabalho. Mas a remissão dos pecados é semelhante e igual para todos, assim como Cristo é um só, e é proposta gratuitamente a quantos creem que, por causa dele, seus pecados são perdoados. Recebem-se, portanto, remissão de pecados e justificação exclusivamente pela fé, não em virtude de quaisquer obras, assim como se evidencia em terrores de consciência que nenhumas obras nossas podem ser opostas à ira de Deus, como Paulo diz claramente: “Justificados mediante a fé, temos paz com Deus, por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, etc.” A fé, entretanto, por fazer filhos de Deus, faz também co-herdeiros de Cristo. Por isso, visto não merecermos, através de nossas obras, a justificação, pela qual nos tornamos filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo, por nossas obras não merecemos a vida eterna. Consegue-o a fé porque nos justifica e tem um Deus reconciliado. Mas é devida aos justificados, segundo o texto: “Aos que justificou, a esses também glorificou”. Encomenda-nos Paulo o preceito de se honrarem os pais pela menção do prêmio acrescentando àquele preceito. Não pretende que obediência aos pais nos justifica aos olhos de Deus, mas, depois de suceder nos justificados, merece outros grandes prêmios. Deus, contudo, exercita os santos de várias maneiras e, não raro, difere os prêmios da justiça das obras, a fim de que aprendam a não confiar em sua justiça, aprendam a buscar mais a vontade de Deus do que os prêmios, como se vê em Jó, em Cristo c outros santos. A esse respeito nos dão ensino muitos salmos, que nos consolam da felicidade dos ímpios. Assim, no SI 36: “Não tenhas inveja”. E Cristo diz: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”’. Por estas preconizações das boas obras, indubitavelmente se movem os fiéis à prática do bem. Entrementes, também se anuncia a doutrina do arrependimento contra os ímpios, que praticam o mal. É manifestada a ira com que Deus ameaçou a quantos não se arrependem. Louvamos, portanto, as boas obras e as exigimos, indicando muitas razões por que devem ser praticadas." (Apologia da CA IV, 194-201) Mesmo a teologia luterana, que é fortemente arraigada à ideia de que a salvação se dá somente por fé, não deixa de afirmar a existência de recompensas, porque há testemunhos bíblicos abundantes a esse respeito. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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