As palavras “Lei” e “Evangelho” ecoam facilmente em todas as tradições cristãs. Deve ser difícil encontrar uma pessoa (que frequente qualquer igreja) que não esteja a elas habituada. Mas o par assim colocado, “Lei e Evangelho”, é especialmente comum no âmbito luterano. E isso não surpreende, uma vez que vem de longa data, da década de 1570, uma tarefa tida como seríssima para o luteranismo: “Cremos, ensinamos e confessamos que a distinção entre lei e evangelho, como luz especialmente gloriosa, deve ser mantida com grande diligência na igreja” (Fórmula de Concórdia, Epítome, V). Como tudo que é assunto, também essa distinção pode suscitar longas conversas, desdobramentos e aprofundamentos instigantes. Aqui, contudo, meu objetivo é bem despretensioso. Quero somente traçar umas linhas fundamentais, pensando em pessoas não luteranas que queiram entender como se movimenta a teologia, a liturgia e a piedade luteranas. (Claro que pode haver também pessoas luteranas desejosas de uma rápida revisão. Serão sempre bem-vindas!) Faço, então, uma seleção de pontos que entendo carecerem de mais imediato esclarecimento. Primeiro, observo que há uma questão semântica, uma questão de sentido dos termos, que precisa ser bem entendida. Quando falamos de Lei e Evangelho, não estamos falando de gênero do discurso. Lei não será necessariamente um texto legislativo, com afirmações organizadas e precisas de ordens e proibições. Evangelho não será um dos quatro primeiros livros do Novo Testamento, nem o conjunto total do que ensinaram Cristo e os Apóstolos. Sim, os termos podem indicar isso e aquilo, mas, quando falamos do par Lei e Evangelho e de sua distinção, estamos falando de outra coisa. Lei é toda Palavra de Deus dirigida a nós que nos confronta, demonstrando que somos pecadores, demandando ou cerceando uma ação (ou disposição interior etc.). Essa Palavra pode ter a forma de conjunto de regras explícitas (“Faça isso... Não faça aquilo...”), mas pode ser apresentada na forma de uma narrativa, por exemplo. Aliás, justamente, porque narrativas fornecem exemplos positivos e negativos que definem comportamentos aprovados ou reprovados. Então, a Lei nem sempre contém a forma gramatical de um imperativo, mas sempre demanda algo de nós. O Evangelho, por outro lado, é a Palavra de Deus dirigida a nós para nos consolar, nos garantir que Deus nos acolhe, nos perdoa e nos dá vida. Num sentido mais completo e estrito, o Evangelho afirma que Deus nos concede tudo isso de graça por meio de Cristo. Evangelho é sempre sobre Deus fazer algo em nosso favor. Evangelho é essa boa notícia simplesmente. Não há uma demanda. Não há exigências como parte do Evangelho. E o Evangelho não tem a finalidade de mostrar que somos pecadores. Isso é função da Lei. Veja que tanto a Lei quanto o Evangelho são Palavra de Deus. Não se trata de invenção humana ou muleta religiosa. Palavra de Deus. E Deus usa tanto Lei quanto o Evangelho de modo dinâmico para conduzir as pessoas à comunhão consigo mesmo. Não há Evangelho bem pregado sem que se faça escutar também a Lei. E não há Lei realmente útil em seu objetivo final se o Evangelho não é proclamado com todo vigor e toda radicalidade. Agora, considere as seguintes afirmações (que você, como eu, já deve ter encontrado por aí): “Tem que pregar o Evangelho inteiro, e não só a parte boa!”, “O Evangelho exige mudança de vida” e afins. Se pensamos no sentido estrito de “Evangelho”, em sua distinção para com “Lei”, essas afirmações não se sustentam. O Evangelho não tem parte que não seja boa. O evangelho não exige nada, mas afirma que toda exigência foi cumprida. Imagino que quem muito diz essas frases esteja pensando sempre num sentido mais amplo. Evangelho seria, nesse caso, o ensino dos apóstolos, talvez. Mas pode haver nesse hábito, se constante, um problema também. Se só se usa o termo nesse sentido, pode ser que se perca de vista o Evangelho no sentido estrito, essa Palavra de graça, uma vez que sempre que se pensa nela, está misturada e confundida com a Lei. Toda vez que esse risco se avizinha, a teologia luterana fica alerta, porque está empenhada em manter “com grande diligência” a distinção entre Lei e Evangelho, sem a qual a doutrina da justificação pela fé se esmorece. Cesar M. Rios
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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