11º Domingo após Pentecostes – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ NO FILHO, O FIM DE TODA ORFANDADE João 6.35-51 Cesar Motta Rios Mircea Eliade foi um dos maiores historiadores das religiões do século XX. Em seu mais conhecido livro, Tratado de História das Religiões, lembro de ter lido com atenção e surpresa um trecho em que conta o seguinte: Em certos povos africanos, aparentemente, havia um mero politeísmo sem uma divindade única se destacando como superior. Mas, se você conversava com os detentores da tradição mais antiga desses povos, aquelas pessoas que ocupavam lugar tido como sacerdotal ou coisa parecida, ficava sabendo de algo mais: Eles sabiam de um deus do céu, que teria criado tudo, mas que, após a criação, teria dado as costas para os seres humanos. Não queria mais saber deles e os teria deixado sós. Eu vejo nessa ideia sobre Deus um sentimento de solidão ou, mais que isso, de orfandade – que é o termo para a condição de órfão. Mas, além de ser triste essa noção religiosa, ela carrega um traço de verdade. Após a expulsão do Éden, o ser humano está afastado de Deus. E esse afastamento vai se ampliando cada vez mais. O que não sabiam esses líderes religiosos africanos é que o Deus verdadeiro não tinha aberto mão do ser humano definitivamente, mas trabalhava para que o distanciamento se desfizesse. Não foi com exultação que disse: “O meu Espírito não permanecerá para sempre no ser humano, visto que é carne” (Gn 6.3). Havia um motivo. Ler esse texto no dia dos pais faz com que se ressaltem alguns detalhes; e ajudam a pensar essa questão do Deus afastado. A noção de paternidade está ali de forma muito significativa. Jesus diz claramente que é o Filho. Diz claramente que não está só em sua missão, mas que faz a vontade do Pai. E a vontade do Pai é que essa família cresça. Os que vierem a Jesus serão acolhidos. Não serão jogados fora. Não serão tratados com indiferença. Nem a morte será permitida como ponto de separação. Jesus insiste e torna a insistir nesse pequeno trecho que ressuscitará quem a ele se apegar, e que essas pessoas terão vida eterna. Não haverá um ponto final para essa nova família. Os religiosos se perturbam. Não entendem. Não podem concordar. Esse Jesus fala de um Pai diferente. Fala de ter descido do céu. Mas é filho de José – diziam eles. Seu pai é carpinteiro e não o Criador de tudo. Esse erro de compreensão nos faz lembrar de algo verdadeiro. Enquanto Jesus fala de seu Pai, do Pai celeste, somos lembrados (curiosamente, pelos que não o entendem) de que ele também sabe o que é a figura paterna humana. Ele experimentou ter um pai humano que o criava junto com Maria, e, ao que parece, experimentou também perder esse pai enquanto ainda era relativamente jovem, pelo menos. Nada sabemos dessa despedida de José, que morre antes do ministério de Jesus começar. Mas ela aconteceu. Jesus sabe do desentendimento desse grupo de judeus, e torna a falar de seu Pai verdadeiro. E, justamente, as pessoas permaneceriam no desentendimento até que fossem trazidas, atraídas por esse Pai do Céu até ele mesmo, até o Cristo. Ele revela, assim, que o Deus Criador realmente não virou as costas. Pelo contrário, Ele se importa com as pessoas e as atrai para aquele que é o Caminho, para aquele que as reúne como seus filhos e filhas, pela adoção. Ainda na parte final do nosso trecho, temos uma contraposição muito preciosa: “Os vossos pais comeram no deserto o maná e morreram” – diz Jesus. Obviamente, são “pais” num sentido mais amplo, são os ascendentes daquelas pessoas. Mas isso lembra que, no âmbito meramente humano, há uma verdadeira e inevitável precariedade, que torna as relações quebradiças. O tempo a tudo desgasta. Vínculos são desfeitos. Nossos pais perecem e, vendo isso, sabemos que nós também somos perecíveis. E nos vemos como órfãos neste planeta. Mas, diferente do que acontecera com os antigos pais, e diferente do que os pais segundo a carne puderam e podem oferecer, o que está disponível agora - diz Jesus - não é simplesmente um maná ou pão comum para nutrição temporal do corpo, mas o verdadeiro Pão do Céu, o verdadeiro Pão da vida, dádiva incomparável. “E o pão que darei é a minha carne em favor da vida do mundo” – Jesus deixa claro. E fica muito claro para quem tem ouvidos, e para quem é trazido pelo Pai para essa comunhão: o Filho foi enviado pelo Pai para colocar um ponto final em toda orfandade. A partir do que ele realiza na cruz do Calvário, não precisamos mais ver a Deus como lembrança fugidia. Não precisamos somente lamentar o fim de nossos relacionamentos desfeitos pela morte em um mundo que somente sobrevive a duras penas. Não precisamos ver a Deus de costas viradas para um mundo desolado. Muito pelo contrário, por causa de Cristo, o Todo-poderoso e justo Deus se torna para nós um Pai querido e amoroso, nosso pai, que nos recebe de braços abertos, nos acolhe e nos concede vida abundante em sua casa para todo o sempre. Não somos filhos exemplares. Na verdade, estávamos fugidos de casa. Mas, imperfeitos como somos, fomos feitos filhos amados pelo Deus de Amor, pelo amor de Deus. É um dia de muita satisfação, porque a notícia é boa: Não somos órfãos. Nós temos um Pai. E que Pai! Amém.
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9º Domingo após Pentecostes – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ A VIDA DE FÉ E OS PERCALÇOS Marcos 6.45-56 Cesar Motta Rios Vocês já tiveram dúvidas sobre Deus? Já passaram por momentos em que não conseguiram perceber Deus presente na vida de vocês, no mundo? Já lhes visitou um questionamento do tipo: será que Jesus realmente...? Todos nós gostaríamos de responder taxativamente: “Não! De forma alguma!” Gostaríamos de ser gigantes da fé, pessoas de fé inabalável, exemplos notáveis a serem seguidos. Mas, curiosamente, momentos de incerteza costumam fazer parte da vida das pessoas de fé, inclusive daquelas que admiramos. Os cristãos simples como nós e também os cristãos mais conhecidos ao longo da história ouvem a Palavra, se voltam a Deus em oração, e, de repente, se veem em uma aflição que gera questionamentos, inquietações. Mais do que algo incidental, o fato é que isso parece fazer parte de nossa formação, de nosso amadurecimento na caminhada com Jesus. Pensaremos nisso ao final. Agora, por falar em caminhada, convém irmos ao texto do dia, em que Jesus caminha sobre as águas. Jesus tinha ficado um pouco mais junto da multidão alimentada com pães e peixes multiplicados por ele, e, em seguida, vai orar sozinho. Os discípulos haviam sido despachados para cruzarem o mar da Galileia sozinhos. A travessia estava difícil. Porém, o mais inesperado não era o vento em sentido contrário, mas a aparição que surge do nada, longe da margem. Uma pessoa pode até nadar muito bem, mas andar sobre as águas não. Os discípulos deduzem que se trata de uma aparição e não de gente de carne e osso! Estão apavorados e, diz o texto, eles gritam! Não têm para onde correr no meio do mar. Então, esses homens crescidos gritam assustados, como crianças. Jesus vai até eles e diz para terem coragem. Revela que é ele mesmo que está ali. Desse acontecido, Marcos faz questão de registrar algo importante sobre os discípulos: Quando Jesus entrou no barco e os ventos se aquietaram, os discípulos estavam aturdidos, completamente confusos, porque não haviam compreendido aquilo dos pães (ou seja, aquele milagre da multiplicação recém acontecido), mas o coração deles estava endurecido. É interessante esse detalhe. Os discípulos já tinham presenciado outros milagres. Os discípulos, conforme o capítulo anterior, já tinham até mesmo curado pessoas e expulsado demônios eles mesmos por ordem de Jesus. Por que Marcos diz que esse aturdimento que experimentam com a cena de Jesus andando sobre o mar tem a ver com não terem entendido especificamente o milagre da multiplicação dos pães e peixes? É daqueles detalhes um tanto estranhos. Pode ser que isso se deva ao fato de que a multiplicação de pães e peixes revela – assim como o caminhar sobre as águas – que o que entendemos sobre o funcionamento das coisas na natureza criada não vale necessariamente para Jesus. Uma coisa não vira duas simplesmente? Ser humano não fica de pé sobre água? No mundo observado diariamente não é assim. Ordinariamente, não é assim. Mas eles precisavam entender que Jesus estava além desses limites naturais. Jesus é o extraordinário. “O coração deles estava endurecido”. É sempre necessário lembrar: coração, na cultura hebraica, não é sede dos sentimentos e afetos simplesmente, como entre nós, mas também de pensamentos e ideias. O coração é lugar do entendimento. Eles estavam escassos em seu entendimento por causa de uma limitação mental, diríamos hoje. Para vencer essa limitação, eles precisariam do Espírito Santo, que ainda haveria de ser enviado à Igreja. Graças ao Espírito Santo, ainda hoje, nosso coração pode crer. Mas esse nosso coração continua marcado pelo pecado, pela falibilidade, e sujeito a engano. Somos nova criatura, mas, ao mesmo tempo, continuamos tendo uma velha natureza em nós. Por isso, não somos sempre tão certos do poder do Evangelho para salvação das pessoas. Por isso, não somos sempre tão confiantes no amor perene de Deus. Por isso, em algum momento da vida, podemos questionar a presença de Deus conosco, ou podemos querer algum convencimento a mais sobre a presença real de Cristo na Santa Ceia. Nosso entendimento ainda um tanto endurecido quer que os parâmetros naturais sejam seguidos, que as coisas sejam explicadas e bem definidas, conforme nossas observações. Queremos que a lógica humana valha para os assuntos divinos. Carregamos um pouco disso, pelo menos, como tendência. Já que é assim, a vida cristã não consiste num ideal de ascendência constante – sempre firme, sempre melhorando, sempre mais fiel. Não é assim. Há dificuldades externas. Há escândalos aqui e ali. Há palavras erradas que nos dirigem. Há indiferença quando esperávamos amparo. E há dificuldades internas. Há vontade de chorar, às vezes, e de perguntar: Mas por que isso acontece assim? Há uma luta interior quando começamos a suspeitar, mais do que confiar. Há momentos em que parece que estamos sós e atados às nossas dúvidas. Sendo bem realista, digo que precisamos estar preparados para diversas crises. Nós não estamos isentos delas. Mas sabemos do que precisamos: ouvir a Palavra de Deus falando mais alto que nossas inquietações. E ouvimos, então, aquilo que vocês repetiram diversas vezes hoje: “A misericórdia do Senhor dura para sempre.” Porque essa misericórdia é verdadeira, Cristo, que morreu na cruz em nosso favor, nos visita em nossa agitação, e diz “Não temas!”, “Não temas!”. Não precisamos nem sempre entender muita coisa. Mas precisamos ouvir o “Não temas!” e saber que Cristo nos acode. Assim, saímos fortalecidos do mar agitado; mais convictos do amor de Deus, mais desejosos de nos apegarmos à Palavra que dá vida e que nos sustenta na fé. Ficamos certos da incerteza que é nossa por natureza. E abraçamos a única verdadeira certeza que recebemos como dádiva. Que certeza é essa? O crucificado e ressuscitado – Jesus Cristo, nosso Senhor. Então, dizemos como Paulo aos filipenses: “uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficam para trás e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.” (Filipenses 3.13,14). Mesmo que venham crises, nós prosseguimos! Amém. 7º Domingo após Pentecostes – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ QUEM QUER SER UM JOÃO BATISTA? Marcos 6.14-29 Cesar Motta Rios O texto que lemos traz algo que, no cinema, se chama de flashback. Na teoria da literatura, analepse. É quando uma história está sendo contada e, por algum motivo, algo do passado, anterior ao momento contado, precisa também ser mostrado, para explicar, para enfatizar, para fazer sentido o fluxo da narrativa. Os feitos de Jesus começam a ficar conhecidos. E começam a surgir hipóteses sobre quem seria essa pessoa tão especial. Herodes Antipas, governante da região da Galileia tem sua certeza: É João Batista ressuscitado. Então, para explicar essa fixação de Herodes com João Batista, o evangelista conta algo que tinha acontecido antes, mas que não tinha sido contado ainda por ele. João Batista tinha sido morto por esse mesmo Herodes, que, aliás, não é o Herodes pai, o Herodes, o Grande. Esse de agora vai parecer mais confuso e menos megalomaníaco. (Lembrando que conversamos sobre Herodes o Grande há algumas semanas.) Herodes manda prender João Batista e o motivo é claro: o profeta rude havia pisado no seu calo ao questionar sua união com Herodias. Não. O poderoso não aceitaria palavra assim. Herodias ficava ainda mais indignada. Queria o homem executado logo. Herodes relutava. Curiosamente, ele gostava de escutar João Batista. Enquanto João Batista estivesse fora de circulação, sem dizer ao povo coisas incômodas, podia ficar vivo ali, sob controle, conversando só com ele. Era um homem intrigante aquele excêntrico comedor de gafanhotos. Mas vimos a história: Herodes oferece um banquete. A filha de Herodias dança. E Herodes não cuida do que diz, fala para mais, e se compromete demais. A esposa aproveita e consegue o que queria pelas mãos da jovem filha: a cabeça de João Batista para não ter mais dúvidas: essa garganta não terá mais fôlego para dizer qualquer coisa. A menina acrescenta: que a cabeça venha num prato! Alguém pode pensar que foi requinte de crueldade. Outros podem ver o cuidado premeditado de não ter que tocar coisa tão asquerosa. Herodes titubeia, mas faz. Dito e feito, então. Resolvido. Não tanto. Ele fica com aquilo na cabeça. Sabia que o homem morto era digno e justo. Pesa na consciência. Mas deixemos Herodes com seus tormentos e olhemos mais uma vez para o profeta. Nós o conhecemos à beira do rio, simples como era, mas em plena atividade: clamando no deserto. A voz do que clama no deserto foi trancafiada. Agora, o vemos preso e sem gente a ouvi-lo na amplidão. Agora, o vemos não mais como sujeito enviado da parte de Deus, mas como objeto nas mãos de um poderoso caprichoso. E por capricho, o que fora grande profeta morre sozinho, no oculto da prisão. Nem público há. Como se fosse uma barata esmagada por alguém sozinho à noite na cozinha, João Batista recebe o golpe final. E se consuma o que antes já de praticava: o profeta não é mais voz viva, fez-se mero objeto morto, levado, trazido, dado e passado adiante. A Palavra incômoda, agora silenciada. Séculos depois, vozes clamam em nossas cidades: “Venham para minha igreja! Façam sacrifício! E comerão em belas pratarias! Terão uma vida de luxo!” Propagandeiam que quem está com Deus vive isso, sem dúvida. Algo mais sem sentido que isso pode haver? João Batista era homem de andar com Deus, de viver a vida inteira em união com seu Senhor. Não havia homem nascido de mulher maior que ele – disse Jesus (Mateus 11.11). E ele não come em pratarias finíssimas por isso. Antes, tem sua cabeça levada sobre a bandeja. “Quem quer ser um milionário?” é o nome daquele premiado filme indiano e uma pergunta que muitos responderão com outra pergunta: “Alguém não quer?”. E alguns líderes cristãos acharam que é essa pergunta, “Quem quer ser um milionário?”, que deve ser feita dos púlpitos ou “palcos”. Não é. Melhor seria perguntarmos seriamente: “Quem quer ser um João Batista?” Quem quer andar com Deus sabendo que isso pode dar em perseguição? Quem quer viver por Cristo, sabendo que isso não vai tirar toda a aflição da vida? Quem quer dobrar os joelhos e confessar pecados sabendo que não há saúde perfeita, carro do ano ou empresa próspera como recompensa por isso? Quem quer ser um João Batista? Quem quer ouvir a Palavra verdadeira, sem enganações, e não ficar confuso, e não se revoltar contra ela? Alguém pode querer visitar o próprio João Batista na prisão ainda para perguntar se ele achava que valia a pena. Façamos essa visita, ora! O que sabemos de João Batista na prisão é que ele enviou discípulos seus até Jesus para perguntarem: “És tu mesmo ou devemos esperar por outro?” Saber se vale a pena depende inteiramente da resposta a essa pergunta. João Batista sabia disso. E qual a resposta de Jesus? “Voltem e anunciem a João o que estão ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e aos pobres está sendo pregado o evangelho.” (Mateus 11.4-5) Então, vale a pena. Vale sim, porque, mesmo que não tenhamos morte tranquila após longa vida, mesmo que seja morte injusta após uma vida árdua, sabemos muito bem: Vale a pena, porque é ele mesmo que haveria de vir. Foi esse Jesus, por quem eu vivi, que morreu na cruz para me dar de presente a coroa da vida eterna. Esse Jesus é o Deus que morreu por mim, mas que está vivo e me abraça, me dá um tal sentido para a vida, que nada mais pode dar. Vale a pena, porque ele é o Caminho, a Verdade e a Vida! Porque o Nazareno é o Prometido, João Batista e nós somos todos somos como Simeão, aquele do qual Lucas nos conta, que tomou Jesus infante no colo e disse o que também podemos dizer sem medo: “Senhor, agora, despedes em paz o teu servo, pois os meus olhos viram a tua salvação!” Vale a pena! Amém. JUNTO A JESUS, QUEM SOMOS NÓS?DESANIMADOS, DEBOCHADOS OU FILHOS E FILHAS CRENTES? (Marcos 5.21-43)6/27/2021 5º Domingo após Pentecostes – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ JUNTO A JESUS, QUEM SOMOS NÓS? DESANIMADOS, DEBOCHADOS OU FILHOS E FILHAS CRENTES? Marcos 5.21-43 Cesar Motta Rios A cena é muito impactante. Na verdade, são duas cenas, dois relatos, um encravado no outro. Temos a história de Jairo que vai buscar socorro para sua filha e, enquanto isso ainda se desenvolve, temos aí inserida a história de uma mulher, cujo nome não sabemos, que também busca socorro em Jesus. A história de Jairo tem seu desfecho após concluída a dessa mulher. Esses acontecimentos se misturam, se influenciam. Por isso, quero pensar sobre eles de uma só vez, unidos como são. Primeiro, eu gostaria de chamar a atenção para quem são essas pessoas. Jairo é alguém importante na região, na sinagoga especialmente. A mulher, não. Talvez, por isso, nem seu nome sabemos. Como a filha de Jairo é só uma criança, ela é só uma mulher. Se ela foi alguém importante há muitos anos, agora, era pobre e vivia impura, porque parecia constantemente menstruada. Segundo Levítico 15.19-20/25-27, quem a tocasse ficaria impuro, e tudo em que ela se deitasse ou sentasse também ficaria impuro. Ninguém que pretendesse ficar ritualmente puro se aproximaria dela. Deus manda que os israelitas fiquem afastados do que lhes traz impureza (Levítico 19.31). Além disso, aquela mulher não tinha mais dinheiro, pois gastara tudo tentando resolver seu problema de saúde. Eu insisto: Jairo tem nome. Ela não. Jairo viu a filha viver 12 anos. Agora, ela está prestes a morrer. A mulher padeceu por esses mesmos 12 anos. Sofrendo, sendo evitada, perdendo vida pouco a pouco. Jairo crê que, se Jesus colocar a mão sobre sua filhinha, ela ficará curada. Ele se prostra diante de Jesus. A mulher não espera tanta proximidade. Crê que se meramente tocar a veste de Jesus, ficará curada. Ela vai por trás de Jesus, sem ser notada. Ambos agem conforme creem. Sabendo da presença de Jesus, eles são crentes. O caso da mulher se resolve primeiro. Ela está sozinha. Não há quem se preocupe com ela, quem clame por ela. É uma despercebida no meio da multidão. Toca e percebe no corpo que aconteceu. Foi curada. Jesus procura quem foi. Ela, que não esperava por isso, se assusta, teme, treme. Não pode mais ficar despercebida. Em vez de continuar oculta, pelas costas, ela faz o mesmo que Jairo fizera antes: se prostra diante de Jesus e conta o que tinha acontecido. Jesus não a recrimina. Jesus não se preocupa com ter ficado impuro ou não. Ele se preocupa mais com ela do que com a regra religiosa. E temos um detalhe importantíssimo na forma como Jesus a chama: “Filha!” Essa mulher sem nome é chamada de filha pelo mestre. Agora, é filha do Mestre. E isso num momento em que temos ali um pai, Jairo, fazendo tudo que pode por tanto amor que tem por sua filha. O amor de Jesus por aquela que sofre se ressalta como o profundo amor de um pai. E Jesus confirma o acontecido: “A tua fé te salvou! Vai em paz e fique curada de tua enfermidade!” Não há pendências. Ela recebeu por meio da fé, em toda humildade, o benefício que Cristo tinha para ela. Agora, segue em paz. Nós acompanhamos Jesus e Jairo. Na verdade, Jesus ainda falava para aquela mulher ir em paz, e chegava aflição da casa de Jairo: “Sua filha morreu! Por que ainda fica incomodando o mestre?” Jesus não dá importância a essa fala e, imediatamente, usa sua palavra para manter Jairo no foco: “Não tenha medo. Só creia!” O desânimo estava ali como opção. “Não tem mais jeito. É assim mesmo a vida.” Jairo, se fosse junto com os desanimados, diria isso. Mas Jesus cuidou para que ele não fosse. Jairo continua crente, como aquela mulher. Aliás, ele até viu o que aconteceu com ela. Nós também sabemos disso. Por isso também, não queremos ser os desanimados de hoje. É claro que o desânimo permanece como opção. “Ah, a morte é o fim mesmo...” “Pra tudo tem jeito, menos pra morte.” “A Igreja não faz mais sentido hoje em dia. Ninguém quer saber de Deus”. Aí está o caminho do desânimo. Mas continuemos caminhando, com Jairo e Jesus. Chegando à casa, sabemos bem o que acontece. Há choro e lamento. Lamentar a morte era algo bem visual e sonoro! Jesus vem com uma notícia diferente. Não está ali em vão. “Ela dorme!” Em vez de se calarem diante do mestre que Jairo fora buscar. Em vez de optarem pelo silêncio de quem não entende, mas respeita, eles riem de Jesus. E é verdade que também a opção pelo deboche ainda está muito presente hoje. Quantos não entendem Jesus, nem sabem muito do que é de verdade o cristianismo, mas debocham? Quantos até sabem, mas foram seduzidos pelo riso, pelo desprezo? Até admiraram Jesus por um tempo, mas preferiram rir dos que creem em vez de continuar crendo. É nossa realidade. Na presença de Cristo, há os desanimados, os debochados e os que confiam. Nós, como Jairo e como aquela que Jesus chama de filha, queremos permanecer na fé, crendo, porque sabemos que o que Jesus fez a ela e à filha de Jairo, ele também o fará a nós e a todos os que se apegam a ele para perdão de pecados. Ele não permitirá que nossa vida se esvaia. E nos ressuscitará no último dia. Ele venceu a morte e tem poder para isso. E não importa quem somos, importantes entre as pessoas ou sem nome conhecido. Essa diferença é pura ilusão. Jesus olha para nós e nos chama de filho e filha. E é isso que somos, filhos e filhas crentes em Jesus. Belíssima boa notícia esta: Temos Deus na família. Ele nos ama radicalmente, quer nosso bem e já o providenciou na cruz do Calvário, por puro amor. Amém. VADE RETRO, MENTE PRETENSIOSA, QUE LIMITA A OBRA DE CRISTO! - Sermão a partir de Marcos 8.27-383/3/2021 Segundo Domingo na Quaresma – 2021 Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ VADE RETRO, MENTE PRETENSIOSA, QUE LIMITA A OBRA DE CRISTO! Mc 8.27-38 Cesar Motta Rios O texto do Evangelho para hoje tem três momentos: a conversa de Jesus com os discípulos sobre sua própria identidade, a reação de Pedro ao ensino de Jesus sobre sua morte, e a exortação de Jesus a todos. Primeiro, então, vemos que as pessoas em geral estão incertas sobre quem é Jesus. Olham para o passado, buscando nomes que possam ajudar a entender que tipo de gente ele é, buscando nomes que possam ser esse sujeito tão especial. Os discípulos não podem mais estar confusos quanto a isso. E Pedro, de fato, olha para o que tem no presente diante de si, e acerta a resposta: “Tu és o Cristo!” É sempre bom lembrar que “Cristo” não é um nome, mas um termo comum que significa “Ungido”. Pedro diz que Jesus é o Ungido de Deus. O problema é que dizer que Jesus é o Ungido não é necessariamente entender o que o Ungido vinha realizar. O acerto de Pedro aqui vai ser ofuscado por seu tremendo erro no momento seguinte. Jesus olha para o futuro próximo, e explica o que haveria de acontecer, sua morte e ressurreição. Então, Pedro, na verdade, erra duas vezes. Erra ao repreender Jesus, desentendendo seu lugar de discípulo e o de Jesus como mestre. Erra também por aceitar que o Ungido de Deus não teria que passar justamente pelo momento chave de sua vinda, a sua morte em favor de todos e a ressurreição. Jesus Cristo torna a colocar em ordem a situação. O versículo precisa ser lido de novo: “Mas Jesus, voltando-se e vendo os seus discípulos, repreendeu Pedro e disse: — Saia da minha frente, Satanás! Porque você não leva em consideração as coisas de Deus, e sim as dos homens.” Nós focávamos somente em Pedro e Jesus, porque Pedro tinha chamado Jesus a se afastar, mas Jesus olha para os discípulos enquanto fala com Pedro. A repreensão é para ser considerada por todos eles, por todos nós, também. E Jesus repreende a Pedro, diz o texto. Não repreende a Satanás. Mas usa o nome “Satanás” para enfatizar a radicalidade da oposição de Pedro ao plano divino. (Não se deve pensar aqui em possessão. No máximo, há a possibilidade de se pensar numa obsessão demoníaca.) A frase é tão conhecida a partir da tradução de Jerônimo: Vade Retro me! (Mais popularmente, dizemos Vade Retro, simplesmente.) Afasta-te, vai para trás, sai da minha frente, Satanás! Mas veja que Jesus especifica o motivo da repreensão. E não é motivo ligado a uma mente diabólica necessariamente, mas a uma mente humana, que se esquece de suas limitações: “porque não consideras as coisas de Deus, mas as coisas dos seres humanos!” Lembra-nos muito bem daquilo que Paulo diz aos coríntios: “A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1 Coríntios 3.19). Lembra Isaías que traz a mensagem de Deus: “Os meus pensamentos são mais altos que os teus pensamentos...” (Isaías 55.9). O Ungido de Deus, o Deus humanado, precisa colocar o mero ser humano Pedro, os discípulos, o ser humano em geral, em seu lugar. De fato, o plano de Deus, para a razão humana sozinha, só poderia ser tido como insanidade. “És o Cristo.” – diz Pedro. Mas – talvez quisesse acrescentar - o Cristo que queremos que sejas não é isso, não é um que morre vergonhosamente, que é tão paciente, mas um que enfrenta e vence diretamente tudo e todos. Não um Cristo que aceita ser feito chacota no Carnaval, talvez, mas que revida com um vírus mortal? É o que queremos? Não um Cristo que se cala diante da Porta dos Fundos, mas um que fecha definitivamente para eles a Porta do Céu? É o que queremos? A vitória, na mentalidade humana, tem uma via muito clara. Deus tem outros planos: “Ainda é tempo de ir e contar que morri por eles também.” Ao ser humano cabe escutar o que diz Deus, não ditar a Deus como deve ser. Ao ser humano cabe reconhecer sua limitação e não limitar a Deus. Será que nossa mente ainda nos faz vacilar nisso às vezes? Será que ainda não aceitamos a radicalidade do amor de Deus revelado em Cristo na cruz? Será que queremos colocar limite a Cristo, como que selecionando para quem sua obra vale e quem fica de fora? Desejando que alguns sejam salvos, mas que outros sejam punidos severamente e sem misericórdia, sem serem alcançados pela Palavra do perdão? Separando pessoas aptas e inaptas? Por exemplo: Alguém disse recentemente: “As pessoas não aceitam o Evangelho por não quererem deixar seus pecados favoritos”. Mas lembremo-nos bem: todos nós estávamos “mortos em delitos e pecados” (Efésios 2.1). Não queríamos largar pecados, mas estávamos imersos neles. E o que acontece? “Pela graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós. É dom de Deus. Não por obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2.8-9). Deus fez tudo e não há diferença entre uns e outros que possamos reconhecer. Ah, mas para a mente humana que quer distinguir isso é um escândalo! Cristo morreu por todos. Cristo morreu pelas pessoas ímpias. Nossa única opção, estando em integridade unidos a ele, é, como Igreja, anunciar isso a todos, é querer, como ele quer, a salvação de todos, e não a perdição. E, se nossa mente nos faz achar isso absurdo em certas ocasiões, se nos revoltamos internamente, nós precisamos também escutar o vade retro. “Afasta-te, sai do meu caminho, mente pretensiosa, porque isso não é mesmo coisa humana, que a mente humana sozinha possa acompanhar. Escuta a voz de Cristo. Ele – só ele - é o mestre.” E se insistimos em discordar, Cristo deu a resposta: “Negue-se a si mesmo”. Como diz o apóstolo Paulo, levando todo entendimento cativo à obediência de Cristo (2 Coríntios 10.5). Amém. A Transfiguração do Senhor – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ A TRANSFIGURAÇÃO, O CAMINHO PARA O CALVÁRIO E A VIDA DIÁRIA SOB A CRUZ Mc 9.2-9 Cesar Motta Rios O episódio da transfiguração de Jesus é muito conhecido. Temos um domingo todos os anos para o relembrarmos e pensarmos sobre ele. E convém mesmo pensar e repensar. É inevitável mencionarmos sempre alguns detalhes importantes: 1) Jesus sobe um monte, mas desta vez, diferente do que lemos na semana passada, ele não vai sozinho. Leva Pedro, João e Tiago. E, como poderia ter ido sozinho, é de se entender que ele tem um objetivo ao levar esses discípulos. 2) Quem aparece junto com Jesus, conversando com ele, são Moisés e Elias. Precisamos lembrar que o Antigo Testamento era referido frequentemente como “a Lei e os Profetas”. Pois então, Moisés representa a Lei, a Torah. Elias, a tradição profética. E falam com Jesus. Assim, fica demonstrado que a vinda do Cristo não é um fato divergente das Escrituras, mas seu cumprimento. 3) Os discípulos não experimentam ali no monte um momento de profunda paz. Eles estão confusos, apavorados. É uma experiência impactante e inesperada. Pedro nem sabe o que dizer e diz coisa sem sentido: “vamos montar três tendas...”. 4) A voz da nuvem diz: “Este é o meu filho amado, ouçam-no!” Isso é muito interessante. Primeiro, porque lá no batismo de Jesus, a mesma voz tinha dito algo parecido: “Tu és o meu filho amado, em quem me comprazo” (Mc 1.11). As diferenças são importantes: Antes, era uma fala da voz para o Filho, “tu és”. Agora, é uma fala sobre o Filho: “Este é...”. Lembremos que os discípulos não estão ali por acaso! Eles estão ali para testemunharem isso. É para eles que acontece. Além disso, o final não é mais sobre a relação do Pai com o Filho (“em quem me comprazo”), mas uma ordem sobre ele: “Escutem-no!”. Isso reforça a autoridade do ensino de Jesus, marcando que é para ser entendido como são entendidas as Escrituras, como são as palavras comunicadas por Moisés e Elias, no sentido de que vem de Deus e não de mero pensamento humano. São detalhes que mostram como o evento é significativo e profundo. Agora, como é que ele se localiza na vida, na realidade mais ampla, fora do episódio em si? Aqui, quero responder de duas formas. A primeira, diz respeito ao que vinha acontecendo no Evangelho mesmo e, também, ao que vem acontecendo na nossa caminhada no calendário litúrgico. É bom observar que, imediatamente antes desse episódio, Marcos conta que Jesus tinha previsto sua morte e ressurreição. Depois, na conversa enquanto desciam o monte, novamente ele menciona que estava escrito que o Filho do homem haveria de sofrer e ser desprezado. Adiante, ainda no capítulo 9, Jesus falará novamente de sua morte e ressurreição. A transfiguração está inserida nessa antecipação do momento crucial do Evangelho. Parece que aqueles discípulos precisavam presenciar Jesus visto como Filho de Deus, Messias que cumpre o prometido na Lei e nos Profetas, antes de testemunharem a caminhada para a cruz e o desfecho. E precisavam contar posteriormente o ocorrido para os demais, para que contemplassem adequadamente os acontecimentos todos. Nós, agora, estamos às portas da Quaresma. E é também importante, quando começamos a olhar a caminhada de Jesus rumo à cruz, que tenhamos bem claro quem é esse que vai rumo à cruz. Porque não se trata de ter pena de um ser humano admirável que sofreu, mas de contemplar o plano divino sendo cumprido e o gesto de amor do Filho de Deus que se dispôs a tudo aquilo em nosso favor. Passar pela Epifania é importante para percorrer bem a Quaresma. Mas parece que tem algo mais que Deus ensina aqui. E, para comentar esse ponto, eu convido a olharmos para a Transfiguração, pintura de Rafael, que começou a ser pintada justamente em 1517. É fácil reconhecer a cena: Jesus com a roupa branquíssima. Moisés e Elias perto dele. Pedro, João e Tiago fazem gestos de espanto. E tem todas essas outras pessoas. O que fazem essas pessoas na cena? Rafael não se enganou e colocou mais gente no monte. Essas pessoas estão ao pé do monte. Precisamos ler umas linhas a mais para entender: “Quando eles se aproximaram dos outros discípulos, viram numerosa multidão ao redor deles e os escribas discutindo com eles. E logo toda a multidão, ao ver Jesus, ficou surpresa e, correndo até ele, o saudava. Então Jesus perguntou: ‘O que é que vocês estão discutindo com eles?’ E um, do meio da multidão, respondeu: ‘Mestre, eu trouxe até o senhor o meu filho, que está possuído de um espírito mudo; e este, sempre que se apossa dele, lança-o por terra, e ele espuma...’” (Mc 9.14ss). Você se lembra que Jesus vai resolver a situação, não sem antes questionar: “Até quando estarei junto de vós?” (Mc 9.19). O artista foi muito feliz ao retratar esse espaço simultaneamente. Ele mostra a confusão que há, que continua havendo na vida diária dos seres humanos, enquanto três discípulos estão com Jesus naquela experiência maravilhosa. E essa confusão é importante mesmo de ser lembrada, porque ela lembra como é importante cumprir-se o que dizem a Lei e os Profetas sobre Jesus, como é importante ele morrer por nós, porque nós mesmos, sem ele, não vamos além da confusão. E, além disso, essa confusão persistente justifica o descer da montanha. Ela lembra que há um momento para estar no topo do monte, mas que esse momento não é tudo que há. Ver Jesus como Filho de Deus, Messias prometido, junto com Moisés e Elias, não é uma experiência que serve a si mesma somente. Não é para se ficar na experiência eternamente. Há um depois. E eu entendo que, mesmo com todas as diferenças daquele acontecimento muito específico, podemos aprender algo aqui sobre a nossa caminhada com Jesus também. Encontramos Jesus em diversos momentos. Mas, especialmente, encontramos Jesus na Palavra proclamada e na Santa Ceia. E esse encontrar Cristo na Ceia, por exemplo, não se encerra como uma experiência à parte da vida. Há, também para nós, um descer do monte. Não é por acaso que nossa ordem litúrgica tradicional inclui na prece após a Ceia o pedido para que essa Ceia nos dê ardente caridade para com o nosso próximo. É lá embaixo, é no mundo da vida confusa, que o encontro com Cristo repercute. É nos nossos relacionamentos imperfeitos. É onde há tanta gente perplexa, sem rumo, vacilante. Encontrar com Jesus como Cristo vivo, Filho de Deus que morreu para nos salvar não somente traz perdão para nós mesmos, mas também nos envia de volta para a vida diária, marcados por esse encontro, fortalecidos para o desafio de amar diariamente como Cristo amou. Somos relutantes muitas vezes, é verdade. Mas o Senhor nos acolhe e conduz mesmo assim, todos os anos, todos os dias, porque ele cumpriu o prometido na Lei e nos profetas justamente para isso. E, então, haverá de concluir a boa obra que começou em nós, por sua graça, por seu imenso amor. Amém. 5º Domingo após Epifania – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ OS SINAIS DE CRISTO, O CUIDADO PARA COM AS PESSOAS E A NOSSA PERSEVERANÇA EM MEIO À PANDEMIA Mc 1.29-39, Is 40.21-31, Sl 147.1-11 Cesar Motta Rios O Evangelho segundo Marcos é curto e ágil na forma como conta as ações de Jesus. Fala de João Batista, do batismo de Jesus, da tentação. Logo, já diz que Jesus prega o Evangelho de Deus, chama discípulos e entra em Cafarnaum. Mas essa agilidade não faz com que ele deixe de ser cuidadoso em seus registros. É bom ler com atenção. No trecho anterior ao lido hoje, Jesus havia ensinado com autoridade na sinagoga de Cafarnaum e expulsado um espírito imundo. Isso causa admiração e faz a fama correr. Mas é uma ação que acontece lá na sinagoga. Agora, Jesus vai para a casa de Simão Pedro e André. Ali, cura a sogra de Pedro, que estava com febre e acamada. É algo que acontece numa casa. Essas duas ações bem localizadas fazem acontecer algo maior. Gente de toda a cidade vai até onde Jesus está levando enfermos e endemoniados. No dia seguinte, a coisa se amplia ainda mais. Jesus ora de madrugada, e avisa os discípulos que, agora, iriam a outros povoados da região. E ele vai por toda a Galileia. O que começa numa sinagoga e numa casa chega a toda uma cidade, e alcança outras tantas localidades. Vai crescendo o alcance da ação, de modo semelhante ao que acontecerá com a ação da Igreja no livro de Atos: Judeia, Samaria, confins da Terra... Mas é interessante observar mais dois aspectos dessa ação de Jesus: 1) Ele realiza sinais, que vão revelando, fazendo saber que ele não é um homem qualquer de um momento qualquer. Quem prestasse atenção suspeitaria que ele é o próprio ungido de Deus. E, mais que isso somente, com suas ações Jesus mostra que sua missão como ungido de Deus é benéfica, é a favor das pessoas; 2) Por outro lado, ele não permitia que os espíritos imundos falassem dele em meio às pessoas. Isso lembra outra característica muito interessante do Evangelho segundo Marcos. Ele mostra Jesus se revelando aos poucos, mas sem deixar todos saberem quem ele é imediatamente. Há um tempo para tudo ser entendido, mas não é ali, naquele momento. Jesus tem uma missão. Ele quer chegar à cruz. Por um tempo, então, temos sinais, não declarações claras da identidade de Jesus. Já no nosso tempo, nós, como corpo de Cristo na terra, continuamos de certa forma essa missão de revelar Jesus como o ungido de Deus entre as pessoas, mostrando para elas da forma mais clara possível quem ele é e quais são os benefícios que ele concede gratuitamente: seu perdão, vida e salvação. Mas, atualmente, nos vemos numa situação peculiar e incômoda. Ironicamente, querendo proclamar essa boa notícia de Cristo, nós corremos o risco de dar sinais opostos aos que Jesus dava. Enquanto ele, que viera nos conceder uma vida livre de enfermidade, morte e pranto, revelava isso sarando e livrando do sofrimento, nós – em meio a uma pandemia - poderíamos levar pessoas a ficarem gravemente enfermas se nos mobilizássemos de forma irresponsável para proclamar a boa notícia de Cristo. É mesmo muito incômodo isso! Mas realmente poderia acontecer, se agíssemos com irresponsabilidade. Se pensássemos: “podemos fazer tudo exatamente como antes!” Então, nos vemos privados de coisas tão simples e boas como um café com conversa demorada após o culto, um filme para assistirmos juntos na igreja, um estudo bíblico sem hora para acabar acompanhado de um bolo ou biscoitos numa noite fria... Sentimos falta de muita coisa. Mas, de fato, não faria sentido falar de vida e sinalizar a morte. Essa situação nos angustia? Certamente! E ela nos faz querer pensar em alternativas, e, no fim, podemos confessar que nos perturba e cansa, porque percebemos que nossas alternativas e cuidados nos permitem avançar um pouco, mas não nos deixam fazer tudo que queríamos: o abraço de antes, a proximidade de antes, gestos e momentos tão simples, mas tão importantes para nossa vida como igreja. Com certa aflição, então, recorro ao texto de Isaías que também nos é sugerido para leitura hoje. A mensagem do profeta é dirigida a um povo que sofria e que ainda enfrentaria sofrimento. Mas diz: “Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços, de exaustos, caem, mas os que esperam no Senhor, renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam” (Is 40.30-31). Vejam que esses que conseguem continuar apesar das angústias e perturbações são simplesmente os que esperam no Senhor. Não são os que, com sua própria capacidade e engenhosidade, resolvem uma situação praticamente impossível de se resolver. Os que esperam no Senhor. Eles mudam sua força.[i] Não têm simplesmente aquela força humana que tinham. Essa confiança em Deus opera uma mudança, porque a fé não é coisa ociosa. E, com essa nova força que recebe ao esperar em Deus, o povo de Deus continua. O Salmo 147 também pode nos ajudar. Ele aponta para o grande poder de Deus, indicando de modo especial seu cuidado amoroso para com a criação. É Deus que providencia a chuva, que alimenta os pássaros, que sara os que têm corações quebrantados. Em seguida, uma observação importante nos versículos 10 e 11, que leio: “Não faz caso da força do cavalo, nem se compraz nos músculos do guerreiro. / O Senhor se agrada dos que o temem e dos que esperam na sua misericórdia.” É muito interessante que, depois de mostrar o poder de Deus e seu cuidado, o salmista mostra que o poder humano não é grandes coisas para Deus, que se agrada, isso sim, dos que o temem e esperam na sua misericórdia. Desde a Antiguidade, entende-se que esse Salmo foi composto após o retorno do povo de Deus do exílio, bem naquele tempo de reconstrução do Templo. Ele celebra, então, a verdade de que o sofrimento do povo exilado era resolvido não com força humana espetacular (que esse povo não tinha), mas por Deus mesmo. Celebra e convida todos com seus belos versos a se firmarem nessa verdade, a temerem a Deus e a continuarem confiando que Ele ama seu povo com um amor leal e eterno.[ii] Nós ouvimos hoje esse convite. E ele é para cada um de nós também. Nós, que, a meu ver, vivemos uma espécie de pequeno exílio – afastados da comunhão tranquila, da mesa partilhada, da proximidade face a face no convívio como Igreja – somos instados a nos lembrarmos e confiarmos. E podemos fazer isso juntos. Podemos, como Corpo de Cristo, motivar uns aos outros, em unidade, a olharmos para o que Deus já fez por nós, lembrando-nos do que ele certamente há de fazer. E, enquanto fazemos isso, também cuidamos uns dos outros, para que continuem e estejam protegidos. E, nessa caminhada compartilhada, vamos revelando, vamos sinalizando o amor de Cristo. (E eu testemunho pessoalmente isso em vocês da Igreja Luterana em Miguel Pereira, porque, mesmo mal conhecendo cada pessoa daqui, pude ver esse amor de Cristo, esse cuidado, essa esperança, em suas palavras e ações para com minha família.) Jesus andou pela Galileia em dado tempo, já há muito tempo, fazendo para as pessoas justamente o que Deus fazia e faz desde o início dos tempos para toda criação: cuidando e amparando, como que escrevendo em letras garrafais com suas ações: estou aqui para salvar! A ele, nós, de coração sincero, podemos certamente clamar: “Senhor, os dias são tão difíceis. Tem misericórdia de nós!” E podemos, também certamente, agradecer: “Senhor, obrigado, porque, no meio dessa turbulência toda, vemos que andas também por aqui! Há sinais do teu amor entre nós, e isso é uma dádiva incomparável!” Amém. ---------------------- [i] Esse entendimento advém de uma consideração da expressão יַחֲלִיפוּ כֹחַ, tomando o verbo חָלַף em seu sentido muito comum de mudar, alterar. O sentido de “renovar”, que, em princípio, pode ser inferido a partir do contexto (tendo-se essa alteração como espécie de renovação), mas que não é comum noutros lugares, me parece desnecessário. Mais significativo é manter a ideia de alteração, entendendo-a teologicamente. [ii] Tento, com essa formulação, fazer jus a toda a carga semântica do termo חֶסֶד, que aparece traduzido por “misericórdia” na leitura feita do versículo 11 do Salmo 147. Citações para palestra sobre Filosofia e Prazer na Teologia de Escritores Cristãos Antigos11/26/2020
UMA LISTA DE LIVROS PARA CONHECER LUTERO E LITURGIA LUTERANA (E UMA SUGESTÃO NO FINAL) Perguntaram-me se há algum livro que eu indicaria com a biografia de Lutero, algum livro que inclua questões sobre Lutero e liturgia e liturgia entre luteranos posteriormente. Eu faço então uma pequena lista, pensando em pessoas que querem informação de qualidade, acessível a quem não é especialista e fácil de se encontrar.
SUGESTÃO NO FINAL
Além de ler alguns desses livros, é claro que quem quiser conhecer um pouco mais sobre luteranismo e liturgia entre luteranos pode também procurar uma igreja luterana em sua cidade ou perto dela. Faça uma visita e conheça pessoas por lá. Se não é possível, há a possibilidade de acesso a sites das instituições luteranas no Brasil. A pessoa que me perguntou sobre essas sugestões, comentou que tem visitado o site www.luteranos.com.br , que é da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Há também o site da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB): www.ielb.org.br . Eu ainda recomendo o seguinte: www.horaluterana.org.br . [Observação: Esses livros são da Editora Concórdia e da Editora Sinodal. Inclusive, usei as imagens de divulgação dos sites delas (imaginando que não importarão, já que acabo fazendo uma divulgação.] Por enquanto, é isso! Abraço! VIDA CRISTÃ A PARTIR DE 2 CORÍNTIOS
Pensar a vida cristã a partir de um livro específico das Escrituras nos leva a um tipo de pergunta bem fundamental: O que esse texto afirma sobre a vida cristã? O que entendemos sobre a vida cristã a partir da leitura desse livro? Além disso, como não chegamos à leitura sem alguma concepção prévia sobre vida cristã ou sem nos relacionarmos com outras concepções que circulam em nosso contexto, a leitura também nos leva a restrições ou contestações, indicando o que não é vida cristã. Procuro organizar este ensaio em dois movimentos. Primeiro, considero os aspectos afirmados em 2 Coríntios, e que estão mais alinhados com uma ideia geral que circula sobre vida cristã. Em seguida, exploro algo mais característico de 2 Coríntios sobre a vida cristã, e que, por ser mais característico, pode contrapor-se a ideias aparentemente comuns. Como Paulo havia insistido em 1 Coríntios que o amor é o caminho excelente que se deve percorrer, não é surpreendente que haja algum eco disso também aqui. É notável, contudo, que não se trata somente de dizer que amar é necessário, mas de dar um passo além e, tendo como sabida a importância do amor, cobrar que ele não seja fingido (6.6 - ἐν ἀγάπῃ ἀνυποκρίτῳ), que não fique somente no campo dos assuntos bem valorizados, mas que se reflita em disposições e ações bem observáveis (8.8-9; 8.24). Isso vale, inclusive, para a ação da comunidade para com uma pessoa específica, que precisa de perdão e consolo. A forma de acolhimento confirma (κυρῶσαι) a realidade do amor (2.8). Lembra-nos de que o amor é direcionado a gente de carne e osso e é para ser vivido mutuamente na comunidade. Paulo ama os coríntios e espera-se que eles o amem também (12.15). Obviamente, o amor nos conduz à percepção de que a vida cristã é inevitavelmente uma vida de relacionamento. Na saudação final, somos exortados: “Procurem aperfeiçoar-se, consolem uns aos outros, tenham o mesmo modo de pensar, vivam em paz” (13.11). O primeiro imperativo (καταρτίζεσθε), que poderia ser interpretado como tratando-se de algo realizado individualmente, é acompanhado pelos outros três, que nos conduzem à noção de que se trata de uma caminhada comunitária, e não de uma jornada ascética individual. Exclusividade não é um ideal possível na vida cristã. Eu sou de Cristo e meus irmãos e irmãs também (10.7). Essa dinâmica comunitária da vida cristã é tal que não importa agir corretamente somente diante de Deus, mas também diante das pessoas (καὶ ἐνώπιον ἀνθρώπων, 8.21). Além disso, até mesmo Deus age para conosco com o que lhe é próprio por meio de outras pessoas (7.6). Decerto, a atenção ao relacionamento entre as pessoas cristãs não surpreende em uma carta que reflete uma tensão entre seu remetente e a comunidade destinatária. E é também em meio a tensões que se entende que a vida cristã requer, além de ações mudadas e arrependimento (12.21), uma perspectiva completamente diferente sobre a realidade. A perspectiva escatológica não é expectativa, mas reconhecimento de uma realidade já inaugurada e colocada por sobre a mera aparência, ressignificando tudo. Isso implica em que, quando se olha para o outro, podemos percebê-lo de modo completamente diferente do que faria uma pessoa que não vive da fé: “daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne” (5.16). Afinal, estar em Cristo torna a realidade – bem percebida – renovada desde já: “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (5.17). O outro não é um outro simplesmente, mas é parte da nova criação, que se almeja ver em sua plenitude. Esse entendimento aguçado, que percebe a realidade além do que se pensa em geral sobre ela, é ameaçado por formas e pensar concorrentes e, muitas vezes, sedutoras que circulam no meio cultural. A pessoa cristã se vê atraída a uma conformação, que a faria avaliar outras pessoas conforme padrões e valores do presente século. Ceder nesse caso seria deixar-se enganar, maculando sua imagem de noiva pura de Cristo (segundo Adão), assim como Eva, enganada pela serpente, não conserva a característica que tinha como par do primeiro Adão (11.3). Uma consideração pontual da realidade, marcadamente diferente do senso comum separado da fé, se dá diante do sofrimento. (Aqui, como anunciado no início do ensaio, passamos a um aspecto da vida cristã conforme 2 Coríntios que pode contestar outras concepções.) A epístola diz claramente que a vida cristã não é vida isenta de sofrimentos ou que contém necessariamente um progresso nesse sentido. Pelo contrário, o apóstolo entende que aquilo que ele mesmo sofre é como que uma forma de continuidade dos sofrimentos de Cristo; e ele o sofre pelo bem dos coríntios (1.5). Isso poderia ser tido como algo próprio do ofício dos apóstolos somente e não característico da vida cristã. Mas, em seguida, lê-se que o bem que alcança os coríntios, o consolo, é eficaz quando esses mesmos coríntios também sofrem com paciência os sofrimentos (ἐν ὑπομονῇ τῶν αὐτῶν παθημάτων, 1.6; cf. 6.4-10). Além de ser uma coerente continuidade com o caminho de Cristo e sua ação em favor do outro, o fato de se sofrer na vida cristã pode também incluir uma dimensão didática: “De fato, tivemos em nós mesmos a sentença de morte, para que (ἵνα) não confiássemos em nós mesmos, e sim no Deus que ressuscita os mortos” (1.9). O sofrimento da pessoa cristã, certamente, não é para ser entendido como realidade completa e final, mas com um quadro maior em vista, em que aparências são contrapostas à realidade fundamental e final (6.4-10). Não se deve considerar somente o que é limitado pelo tempo, a tribulação que tem fim, mas o que é eterno, o peso de glória (4.16-18). A vida cristã, conforme refletida em 2 Coríntios, não se mostra uma caminhada contemplativa, solitária, apática, despropositada, limitada ao presente século ou mesmo automática (Deus age e nós nem nos damos conta). Não há lugar para reducionismos. Por isso, embora tudo dependa de Cristo e a salvação já seja uma dádiva outorgada, o apóstolo sabe que, enquanto nesta terra, há um interesse consciente, um ímpeto esforçado da parte dos fiéis (φιλοτιμούμεθα, 5.9). Na presente vida, cristãos não têm sorriso fácil e superficial a todo tempo, mas caminham em meio a uma multidão de “nãos”, sejam aqueles de situações adversas incontroláveis, de desajustes nos relacionamentos ou de suas próprias limitações individuais. Contudo, continuam caminhando com fôlego, sabendo que sua suficiência vem de Deus (3.5), que são transformados por ação do Espírito (3.18) e que que todas as promessas têm em Cristo o “sim” (1.20). Cesar M. Rios |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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