Machado de Assis! Talvez, o maior, mas, certamente, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Esse sujeito ímpar tem, ao lado de seus romances marcantes, famosos e badalados até fora destes trópicos, uma produção poética também preciosa. E, entre seus poemas, há aqueles que tratam da fé, dialogam com as Escrituras Cristãs, expressam uma bela devoção. Não me interessa tanto se essa religiosidade é expressão do homem Machado de Assis ou se é construção poética de alguma forma distanciada do autor.
Por falar nisso, até acho que se espera de um escritor genial uma postura mais crítica, mais questionadora do que devota. E tem isso em Machado também. A religião não escapa ao seu olhar sagaz. Mas tem esses poemas que mostram uma genialidade diferente, não pela investigação de possibilidades desconsideradas e problemas despercebidos, mas pela expressão sublime da fé simples. Eu vejo Fé, poema publicado em 1864 em Crisálidas, como um exemplo disso. (É claro que há outros, que penso em mencionar eventualmente.) O que segue é um comentário pessoal, um exercício de leitura, justamente, a partir da perspectiva da fé. O poema começa com uma epígrafe de ninguém menos que Santa Teresa D’ávila: Muéveme en fin tu amor de tal manera / Que aunque no hubiera cielo yo te amara. Que bonito isso, não é? Sei que tem gente que conheço que vai logo denunciar essa ideia de um progresso, de chegar a tal estágio em que... “Meio antropocêntrico!” Mas veja o que está como causa desse voltar-se da pessoa para Deus: O amor de Deus mesmo é que faz o ser humano o amar. É a dinâmica. Começa com Deus e muda o humano. Mesmo sem Céu, eu te amaria. Sem recompensa! Sem perspectiva! Só pela ação e essência de Deus mesmo. O poema em si, embora motivado e assentado nessa devoção e Santa Teresa d’Ávila, toma um percurso diferente. Ele começa entre os humanos e olha para uma chegada a Deus – tem céu! A primeira estrofe dá o tom dessa distância entre humanos e Deus. E já olha para o movimento de interação – orações sobem; cânticos de cá são ouvidos lá. A diferença se acentua na segunda estrofe, que se refere à nossa realidade “de baixo” como “turvo mar da vida”. Não é só muita água. É água turva. Não é a beleza de uma praia paradisíaca, mas o risco e a incerteza. O risco se ressalta: “Onde aos parcéis do crime a alma naufraga”. Parcel é o termo usado por navegadores para áreas em que o mar se torna raso, por causa de bancos de areia ou pedras. Quem viu filmes ou leu livros sobre aventuras navais sabe que há um perigo certo nisso. Navios encalham, se quebram, tombam... A alma não passeia. Naufraga! Para que isso não suceda, o navegador precisa de instrumentos. Lá vem Machado e identifica a bússola: “Senhor, tua palavra!” A terceira estrofe reforça essa ideia. Tínhamos visto o mundo dos humanos. Agora, estamos vendo o caminho. E o destino é assinalado: “Esta a luz que há de abrir à estância eterna / O fúlgido caminho”. Pra não me delongar, digo logo que vejo nas estrofes 4 e 5 aquele olhar do caminhante para o mundo que vai deixando. “Quando a alma, despida de vaidade / Vê quanto vale a terra”. Vê bem. Lembra o poema que aquela visão inicial do mundo não é partilhada por todos, não é alcançada indiscriminadamente. E esse percurso faz sentido somente para quem sabe ver bem, que não se engana. E aí, considerando a realidade e não a aparência, a pessoa se apega e confia somente no que realmente a pode salvar. Acho que, como luterano, não posso deixar de lembrar do comentário de Lutero ao primeiro mandamento no Catecismo Maior. É isso. A bem-aventurança da última estrofe é perfeita e encharcada da sabedoria das Escrituras: Feliz o que nos lábios, / No coração, na mente põe teu nome, / E só por ele cuida entrar cantando / No seio do infinito. Chegamos. Havia cânticos que subiam desde a terra na primeira estrofe. Agora, os que cantam se achegam. Agora, a distância se desfaz. O amor de Deus não faz somente amá-lo, mas também torna essas pessoas por ele amadas comungantes com ele, presentes, junto a ele, porque o amor de Deus provê um caminho. “E só por ele” - a pessoa que vai cantando bem sabe junto com Pedro, importa que sejamos salvos (Atos 4.12). O poema está disponível aqui: https://periodicos.ufes.br/machadiana/article/view/28752/217
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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