Religião e cristianismo às avessas em The Rain (Série)
Cesar M. Rios Uma série (ou filme) com ares pós-apocalípticos geralmente tem ingrediente suficiente para suscitar reflexões sobre religião, transcendência. Há, por outro lado, casos em que isso é mais direcionado pelo próprio enredo. The Rain (Netflix) é desses casos. É muito convidativa para uma abordagem na perspectiva da Religião Vivida.[1] Meu plano é muito menos ambicioso e o texto muito mais breve. Aponto apenas alguns pontos interessantes de serem discutidos e uma questão mais ampla a ser considerada. Primeiro, é claro que a série traz, já no primeiro episódio, um exemplo do amor sacrificial em ação. Uma pessoa faz algo que lhe causa a morte para que outra possa viver. Há, também, um episódio (E5) que tem por título “Tenha Fé”. Lea, que não é das personagens principais, ganha destaque. É alguém que “acredita em Deus”, segundo dizem. Uma cruz pende de seu colar. No início do episódio (33''), parece-me possível ver como que uma Rosa de Lutero no centro dessa cruz. Se não é, poderia ser, já que a narrativa está ambientada na Escandinávia. Em certa ocasião, a mesma Lea pronunciará palavras de Paulo em um sepultamento improvisado (“Nem a morte, nem a vida...”). Mas esse episódio tem algo mais complicado de se tratar. Há uma comunidade com ares religiosos que prega a unidade. E esse pessoal tem uma ceia ritual praticada uma vez por mês. [Ei! Vou contar algo do episódio agora. Não é melhor assistir antes e voltar para ler depois?] Nessa ceia, devoram o corpo de um dos membros do grupo. A entrega do corpo é ato de amor. Alguém consegue não se lembrar da Eucaristia/Ceia do Senhor? Isto é o meu corpo... Se você é Reformado, isso pode parecer coisa mais distante. Se é Católico, está imediatamente convidado à reflexão/inquietação. Se você é Luterano, também fica quase inevitável. Mas aí temos uma bela oportunidade para complicar a conversa e chegar a um ponto muito negligenciado no ensino luterano sobre a Ceia. Embora as Confissões Luteranas afirmem a “presença real” do corpo e sangue de Cristo na Ceia, elas afirmam que há presença que não seja simples presença local e negam que o comer do corpo e sangue de Cristo aconteça de modo cafarnaítico, natural, como quando devoramos um pedaço de lombo no almoço de domingo. Não se trata, para as Confissões, de nada parecido com canibalismo, mas de algo sobrenatural. Dá para entender? Não tanto, talvez. Pelo menos, lembramos que precisamos ser cuidadosos com o assunto. A vontade de ênfase na afirmação da presença real, algumas vezes, leva à afirmação de algo diferente do que os luteranos querem mesmo afirmar [Perdoem-me os não-luteranos por essa conversa que parece fazer sentido só para luteranos. Vai mudar agora.].[2] Mas o ponto mais importante em The Rain está no motivo maior do drama, que se esclarece somente no final da Temporada 1. [De novo, terei que contar algo que fica mais ou menos claro desde o começo, mas que se revela melhor só no final. Quer ir assistir tudo antes?] Dois personagens principais são irmãos. Foram deixados pelo pai em um bunker. O pai manda ficarem lá até ele voltar. Mas não volta. Parece negligente. Diz que a solução para tudo está no menino. Mas não volta. Aliás, se você não assistiu, esqueci de dizer que há um vírus sendo trazido pela chuva e matando todo mundo. Enfim, no final, descobrimos que o pai não volta e não leva os filhos, porque o menino teria que ser morto para que a cura fosse produzida. Além disso, para não permitir a localização do filho, o pai mata gente. E mata ainda mais gente procurando um substituto para o filho. Mas ninguém é imune como ele. Percebe a inversão? O drama cristão é de Deus Pai dando seu Filho para morrer e, pelo derramamento de seu sangue, evitar a morte (eterna) de multidões. Aqui, na série, há um pai que sabe que o derramamento do sangue de seu filho pode evitar a morte (natural) de multidões, mas se nega a dar esse passo. Ao contrário, permite que (ou faz com que) muitas pessoas morram para que seu filho não seja morto. Você pega o enredo da salvação em Cristo e inverte, faz umas adaptações e tem o argumento de The Rain. E o efeito disso (para quem percebe que acontece algo assim)? Penso em dois caminhos bem diferentes. Há um mais simples e positivo. A negativa do pai de Rasmus realça o amor de Deus pelas multidões, demonstrado em sua ação proativa e decidida ao enviar seu Filho para morrer por todos. É possível, então, utilizar The Rain como um elemento de contraste. Bom, aí vem o outro caminho, que nós corremos o risco de tomar sem perceber, e que é bem mais complicado. Ao contrastar a ação de Deus com uma ação humana, mesmo fictícia, corremos o risco de trazer a ação divina para o âmbito do julgamento ético humano. Claro, pois somos inevitavelmente levados a uma avaliação das atitudes do pai de Rasmus (Desculpem-me. Ele deve ter um nome, mas me esqueci.). Então, trazendo o envio do Filho por parte do Pai para a comparação, somos levados a estendermos essa avaliação também para essa ação. Tratamos assim a ação de Deus (ou da Trindade) como simples ação de gente. É complicado isso, pois é tomar um caso especialíssimo (narrado de forma mais simples para ser compreendido por nós) e tratá-lo como algo comum ou, no máximo, atípico, mas vislumbrável no horizonte das ações humanas e, portanto, julgável. De qualquer forma, preciso dizer que a série me surpreendeu positivamente e que essas janelas de reflexão que ela abre podem ser muito bem aproveitadas. É isso. Até mais. [1] Se não conhece, sugiro procurar a produção acadêmica de Julio Cezar Adam, que introduz no Brasil essa abordagem. [2] Considerar a Epítome (VII – Da Santa Ceia de Cristo) seria importante para começo de conversa: “De sorte que, com isso, condenamos totalmente o comer cafarnaítico do corpo de Cristo, como se a gente dilacerasse sua carne com os dentes e a digerisse como outro alimento, o que os sacramentários nos impõem deliberadamente, contra o testemunho de sua consciência, por sobre os nossos múltiplos protestos, tornando, assim, nossa doutrina odiosa entre os ouvintes deles. E, ao contrário, sustentamos e cremos, de acordo com as simples palavras do testamento de Cristo, um comer verdadeiro, porém sobrenatural, do corpo de Cristo, como também o beber do seu sangue, o que os sentidos e a razão do homem não compreendem, mas, como em todos os outros artigos da Fé, trazemos o entendimento cativo a obediência de Cristo, e esse mistério não é apreendido de nenhuma outra maneira senão pela fé somente, sendo revelado na palavra." Sobre a presença que não é local, diz: "Deus tem e conhece vários modos de estar em algum lugar, e não apenas aquele único que os filósofos chamam de localem ou espacial".
3 Comments
Gabriel Sonntag
2/25/2019 09:05:20 am
Gostei muito da reflexão sobre a ceia. Fiquei pensando muito nela quando assisti a série. A inversão da narrativa da salvação foi um ponto muito legal. Vou ver a série com outra perspectiva. Bom texto! Abraço!
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Dennis de Lima
3/14/2019 09:57:47 pm
Meu amigo, essa do comer a carne foi chocante. Do cristianismo às avessas, boa sacada. Religião Vivida pensada na hora que vi o sacrifício da mãe, e a fé da Lea. Ah, o nome do pai é Frederick. Abraços e bom texto (mas a série é média, hehe) Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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