VIDA CRISTÃ A PARTIR DE 2 CORÍNTIOS
Pensar a vida cristã a partir de um livro específico das Escrituras nos leva a um tipo de pergunta bem fundamental: O que esse texto afirma sobre a vida cristã? O que entendemos sobre a vida cristã a partir da leitura desse livro? Além disso, como não chegamos à leitura sem alguma concepção prévia sobre vida cristã ou sem nos relacionarmos com outras concepções que circulam em nosso contexto, a leitura também nos leva a restrições ou contestações, indicando o que não é vida cristã. Procuro organizar este ensaio em dois movimentos. Primeiro, considero os aspectos afirmados em 2 Coríntios, e que estão mais alinhados com uma ideia geral que circula sobre vida cristã. Em seguida, exploro algo mais característico de 2 Coríntios sobre a vida cristã, e que, por ser mais característico, pode contrapor-se a ideias aparentemente comuns. Como Paulo havia insistido em 1 Coríntios que o amor é o caminho excelente que se deve percorrer, não é surpreendente que haja algum eco disso também aqui. É notável, contudo, que não se trata somente de dizer que amar é necessário, mas de dar um passo além e, tendo como sabida a importância do amor, cobrar que ele não seja fingido (6.6 - ἐν ἀγάπῃ ἀνυποκρίτῳ), que não fique somente no campo dos assuntos bem valorizados, mas que se reflita em disposições e ações bem observáveis (8.8-9; 8.24). Isso vale, inclusive, para a ação da comunidade para com uma pessoa específica, que precisa de perdão e consolo. A forma de acolhimento confirma (κυρῶσαι) a realidade do amor (2.8). Lembra-nos de que o amor é direcionado a gente de carne e osso e é para ser vivido mutuamente na comunidade. Paulo ama os coríntios e espera-se que eles o amem também (12.15). Obviamente, o amor nos conduz à percepção de que a vida cristã é inevitavelmente uma vida de relacionamento. Na saudação final, somos exortados: “Procurem aperfeiçoar-se, consolem uns aos outros, tenham o mesmo modo de pensar, vivam em paz” (13.11). O primeiro imperativo (καταρτίζεσθε), que poderia ser interpretado como tratando-se de algo realizado individualmente, é acompanhado pelos outros três, que nos conduzem à noção de que se trata de uma caminhada comunitária, e não de uma jornada ascética individual. Exclusividade não é um ideal possível na vida cristã. Eu sou de Cristo e meus irmãos e irmãs também (10.7). Essa dinâmica comunitária da vida cristã é tal que não importa agir corretamente somente diante de Deus, mas também diante das pessoas (καὶ ἐνώπιον ἀνθρώπων, 8.21). Além disso, até mesmo Deus age para conosco com o que lhe é próprio por meio de outras pessoas (7.6). Decerto, a atenção ao relacionamento entre as pessoas cristãs não surpreende em uma carta que reflete uma tensão entre seu remetente e a comunidade destinatária. E é também em meio a tensões que se entende que a vida cristã requer, além de ações mudadas e arrependimento (12.21), uma perspectiva completamente diferente sobre a realidade. A perspectiva escatológica não é expectativa, mas reconhecimento de uma realidade já inaugurada e colocada por sobre a mera aparência, ressignificando tudo. Isso implica em que, quando se olha para o outro, podemos percebê-lo de modo completamente diferente do que faria uma pessoa que não vive da fé: “daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne” (5.16). Afinal, estar em Cristo torna a realidade – bem percebida – renovada desde já: “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (5.17). O outro não é um outro simplesmente, mas é parte da nova criação, que se almeja ver em sua plenitude. Esse entendimento aguçado, que percebe a realidade além do que se pensa em geral sobre ela, é ameaçado por formas e pensar concorrentes e, muitas vezes, sedutoras que circulam no meio cultural. A pessoa cristã se vê atraída a uma conformação, que a faria avaliar outras pessoas conforme padrões e valores do presente século. Ceder nesse caso seria deixar-se enganar, maculando sua imagem de noiva pura de Cristo (segundo Adão), assim como Eva, enganada pela serpente, não conserva a característica que tinha como par do primeiro Adão (11.3). Uma consideração pontual da realidade, marcadamente diferente do senso comum separado da fé, se dá diante do sofrimento. (Aqui, como anunciado no início do ensaio, passamos a um aspecto da vida cristã conforme 2 Coríntios que pode contestar outras concepções.) A epístola diz claramente que a vida cristã não é vida isenta de sofrimentos ou que contém necessariamente um progresso nesse sentido. Pelo contrário, o apóstolo entende que aquilo que ele mesmo sofre é como que uma forma de continuidade dos sofrimentos de Cristo; e ele o sofre pelo bem dos coríntios (1.5). Isso poderia ser tido como algo próprio do ofício dos apóstolos somente e não característico da vida cristã. Mas, em seguida, lê-se que o bem que alcança os coríntios, o consolo, é eficaz quando esses mesmos coríntios também sofrem com paciência os sofrimentos (ἐν ὑπομονῇ τῶν αὐτῶν παθημάτων, 1.6; cf. 6.4-10). Além de ser uma coerente continuidade com o caminho de Cristo e sua ação em favor do outro, o fato de se sofrer na vida cristã pode também incluir uma dimensão didática: “De fato, tivemos em nós mesmos a sentença de morte, para que (ἵνα) não confiássemos em nós mesmos, e sim no Deus que ressuscita os mortos” (1.9). O sofrimento da pessoa cristã, certamente, não é para ser entendido como realidade completa e final, mas com um quadro maior em vista, em que aparências são contrapostas à realidade fundamental e final (6.4-10). Não se deve considerar somente o que é limitado pelo tempo, a tribulação que tem fim, mas o que é eterno, o peso de glória (4.16-18). A vida cristã, conforme refletida em 2 Coríntios, não se mostra uma caminhada contemplativa, solitária, apática, despropositada, limitada ao presente século ou mesmo automática (Deus age e nós nem nos damos conta). Não há lugar para reducionismos. Por isso, embora tudo dependa de Cristo e a salvação já seja uma dádiva outorgada, o apóstolo sabe que, enquanto nesta terra, há um interesse consciente, um ímpeto esforçado da parte dos fiéis (φιλοτιμούμεθα, 5.9). Na presente vida, cristãos não têm sorriso fácil e superficial a todo tempo, mas caminham em meio a uma multidão de “nãos”, sejam aqueles de situações adversas incontroláveis, de desajustes nos relacionamentos ou de suas próprias limitações individuais. Contudo, continuam caminhando com fôlego, sabendo que sua suficiência vem de Deus (3.5), que são transformados por ação do Espírito (3.18) e que que todas as promessas têm em Cristo o “sim” (1.20). Cesar M. Rios
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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