6º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS TEMPO DE OUVIR: UMA CONVERSA SOBRE PALAVRA E TRABALHO Lucas 10.38-42 Cesar Motta Rios Eu entendo que temos duas tarefas a cumprir nesta conversa. A primeira é simplesmente ler com cuidado o texto do Evangelho e procurar entender a cena que nos é apresentada. A segunda tarefa seria pensar o que é que esse episódio pode ensinar para a nossa vida. Primeiro, eu reconheço que, numa leitura rápida, a cena parece simples. Há três pessoas envolvidas. Há uma reclamação de uma delas, que está trabalhando sozinha enquanto a irmã está sentada. Jesus não atende, porque é importante ouvir a Palavra. Fim. Mas vamos menos afoitos. Primeiro, observo que é Marta a anfitriã. O versículo 38 diz que é Marta que recebe Jesus. Maria é apresentada como a irmã dela, que estava também ali na casa. Essa, que simplesmente estava na casa fica junto de Jesus para escutar seu discurso. E Marta, que o recebeu, fica nas tarefas para servir. Há muito o que fazer. Isso e o fato de Jesus estar discursando lembra que é muito provável que não são só essas três pessoas que estão na casa. Também, o primeiro versículo do trecho lembra que Jesus não viaja sozinho quando chega àquela vila. Parece bem que há mais gente ali escutando Jesus. Maria é mais uma a ficar perto dele. E é importante lembrar que não estamos no século XXI nessa cena. Hoje, há uma igualdade total de participação nos momentos de estudo entre homens e mulheres. Vamos às casas e a família toda se reúne para conversar sobre o tema do estudo bíblico. Se nos reunimos aqui, homens e mulheres discutem igualmente as dificuldades que encontramos na interpretação. Eu até posso dizer que mais mulheres que homens têm vindo aos estudos bíblicos. Mas no contexto de Jesus isso era menos normal. Maria decidir ficar ali escutando atentamente em vez de ir para os bastidores enquanto os homens conversam sobre coisas importantes não é uma decisão que passa despercebida. Então, o que acontece é que Marta, que recebera Jesus, percebe que há mais trabalho e quer ajuda. Mas Maria estava já entre os que estudavam com Jesus. Mesmo sendo algo atípico, mesmo tendo outras tarefas com as quais ela podia se ocupar, Jesus não segue as expectativas sociais (que Marta traz explicitamente à cena), mas elogia Maria por sua vontade de aprender. O que, para muitos, poderia parecer inadequado, para Jesus, era louvável. Maria fica! E é interessante que ela fica, na cena, em silêncio. Fala-se dela, mas ela não fala. Ela é toda ouvidos. Só uma coisa é realmente necessária: ouvir a Palavra de Deus. E é necessária não para uns somente, mas para todos, homens e mulheres, jovens e idosos. É necessária para Maria e para cada um de nós. É ouvindo a Palavra que temos confiança firme de que somos perdoados e acolhidos por Deus pelo sacrifício de Cristo. E é ouvindo a Palavra que temos orientação no nosso caminho pela vida. Agora, já entrando na segunda tarefa, a de pensar o que esse texto ensina para nós, eu esbarro em um problema: Esse episódio traz uma desvalorização do trabalho? Isso é especialmente importante para nós, herdeiros da Reforma do século XVI. Nos reformadores, nós encontramos uma revalorização do trabalho comum, das ocupações comuns. E essa revalorização se contrapõe ao pretenso valor superior que tinha o cumprimento de mandamentos não dados por Deus, mas arquitetados pela mente humana. Era, claramente, um enfrentamento contra a ideia de que a vida monástica era superior à vida comum, fora dos mosteiros. Como aponta a Confissão de Augsburgo: “Julgava-se que o cristianismo todo consistia na observação de certos dias santos, ritos, jejuns e vestimenta. Essas observâncias estavam na posse do honradíssimo título de serem a vida espiritual e a vida perfeita. Enquanto isso, os mandamentos de Deus, segundo a vocação, nenhum louvor recebiam: que o pai educava os filhos, que a mãe dava à luz, que o príncipe regia o país.” (CA, XXVI, 8-10). Ou seja, as ocupações do dia a dia, nosso trabalho, era tido como alheio à vida cristã, religiosa, enquanto a vida contemplativa era valorizada sozinha. Então, pode parecer que essa cena com Jesus vai contra nossa revalorização do trabalho comum. Afinal, Marta ali está em sua ocupação. Maria está na contemplação. Marta parece ocupar o lugar das pessoas comuns. Maria, o dos monges. E Jesus elogia a atitude de Maria. É isso? Pois bem, é preciso que façamos duas considerações importantes, uma sobre o Evangelho lido e outra sobre a proposta dos reformadores: 1) Não é o propósito desse texto de Lucas extirpar o valor do trabalho e propor que todos fiquemos o tempo todo escutando a Palavra. Se voltamos e lemos a cena como fizemos, o que parece haver é a defesa da permanência de uma pessoa naquela atividade de escuta e aprendizado, e uma realçada valorização da participação de cada pessoa nessa escuta da Palavra. Não há uma supressão da necessidade do serviço. Afinal, Jesus mesmo serve os seus em outros momentos, é acompanhado por mulheres que o servem, e seus seguidores também se ocupam adiante com trabalhos, como o notório caso de Paulo, fazedor de tendas. A fala de Jesus diz que é preciso escutar. E que isso vale para todos. 2) Quanto à proposta da Reforma, é bom lembrar que o que vemos sendo construído no argumento das Confissões luteranas e em outros textos relacionados não é uma simples secularização, uma valorização da vida comum por si mesma. Não há uma desvalorização da Palavra ou uma sugestão de que ela fosse dispensável para uma vida virtuosa, digna ou cheia de sentido. Pode parecer isso, mas não é. Diz a Apologia da Confissão que perfeição “é cada qual obedecer com verdadeira fé à sua vocação” (Apol. XXVII, 50). A sua vocação como vendedor, pai, mãe, professor, professora, engenheiro ou o que quer que seja é vivida devidamente quando é vivida com fé. Então, não há vocação bem vivida sem a Palavra (donde nos vem a fé), mas somente na Palavra, abarcada pela Palavra. É aí que, no seu trabalho, você não servirá somente a si mesmo, procurando o ganho próprio, mas também ao próximo, como servo de Cristo que é. É aí que, ao vender algo, por exemplo, você não vê simplesmente um sucesso seu, mas o trabalho prestado àquela pessoa que precisava tanto de tal produto. Repito: os reformadores não valorizaram a vida sem fé, mas quiseram trazer a fé para a vida comum, valorizar a vida de todos os dias com a Palavra. Não é também uma ferramenta nesse sentido o Catecismo, por exemplo? Com isso, quero dizer que a cena na casa com Marta e Maria não nos é estranha. Ela é, pelo contrário, o retrato de nossa vida de Palavra e de ação. Vivemos nossa comunhão com a Palavra. Isso é imprescindível para podermos viver melhor nossa comunhão com o próximo, em nosso trabalho cotidiano. O dia do descanso é necessário para os dias de trabalho. O novo alimento – a Palavra de Deus – é necessário para a nova vida dessa Nova Criatura, que é a pessoa cristã. Você vem ouvir a Palavra, lê a sua Bíblia, conversa sobre isso, não somente para a vida na Eternidade, e não somente para a sua vida enquanto pessoa religiosa, luterana ou o que quer que seja, mas para viver nas suas ocupações cotidianas com mais sentido, não para si somente, mas para a glória de Deus e para o bem do próximo. E, se isso acontece, é muito, muito bom! E, percebendo como isso é bom, assim como Maria, mesmo nestes nossos tempos de “correria”, como costumamos dizer, não abrimos mão do lugar aos pés de Jesus, o nosso lugar como discípulos atentos, agraciados por ele com salvação eterna e com sua companhia para toda a caminhada nesta terra. Porque ele nos aceita e nos quer ali. Graças a Deus. Amém.
0 Comments
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|