NTLH e o caso de Gálatas 2.10: pobres? Que pobres?
No segundo capítulo da Carta aos Gálatas, Paulo observa que o pessoal de Jerusalém, isto é, os seguidores do Caminho em Jerusalém, havia ficado tranquilo quanto à missão entre os gentios realizada por Barnabé e Paulo mesmo. Uma observação é feita: μόνον τῶν πτωχῶν ἵνα μνημονεύωμεν, ὃ καὶ ἐσπούδασα αὐτὸ τοῦτο ποιῆσαι. Eles continuassem o trabalho. Apenas, deviam se lembrar dos pobres. O que, aos olhos do apóstolo dos gentios, ele vinha fazendo diligentemente. A questão que surge é: Eles deviam se lembrar de que pobres? De todos os pobres? Dos pobres de cada cidade? Dos pobres das igrejas de Jerusalém? Se essa última opção for verdadeira, Paulo diz que vinha cuidando do assunto por recolher ofertas para levar aos pobres de Jerusalém, o que sabemos por outros escritos. Bem, mas o texto não deixa a questão resolvida. No fundo, é até mais elegante deixá-la menos definida. Afinal, Pedro estaria dizendo abertamente: “Beleza, continue com a missão entre os gentios, mas não deixe de mandar dinheiro deles pra gente?” Enfim, o texto pelo texto, como eu vinha dizendo, não define a coisa. Um bom leitor de grego do século I d.C. teria a mesma dúvida de um bom leitor do português no século XXI que tomasse uma tradução como a Almeida ou Ave Maria nas mãos: NAA: Somente recomendaram que nos lembrássemos dos pobres, o que também me esforcei por fazer. AVE MARIA: "Recomendaram-nos apenas que nos lembrássemos dos pobres, o que era precisamente a minha intenção." O leitor da NTLH, por outro lado, não teria dúvida. O texto diz: “Eles nos pediram só uma coisa: que lembrássemos dos pobres DAS IGREJAS DELES, e isso eu sempre tenho procurado fazer.” O leitor da NTLH é privilegiado? Mais privilegiado que um leitor exímio de grego, falante nativo do idioma, que tenha vivido no século II d.C.? Ele tem a resposta certa nas mãos? Possivelmente, mas não necessariamente. O texto traz uma informação que não está na carta de Paulo. É resultado de uma interpretação (honesta). Dirão que toda tradução é resultado de uma interpretação. Isso é fato. Mas há uma diferença entre interpretar o que está explícito no texto e trazê-lo para o texto traduzido e interpretar o que está possivelmente implícito no texto fonte e torná-lo absolutamente explícito no texto de chegada. No mínimo, o leitor perde o direito de pensar a respeito, de perceber a ambiguidade. Aliás, no presente caso, não se trata nem só de elucidar ambiguidade optando por uma ou outra possibilidade linguística do texto fonte (como no caso de certos genitivos, se subjetivos ou objetivos), mas de inferir algo pelo contexto, pela história conhecida, e apresentar como certo (não somente possível). Entendo que seria prudente manter essa elucidação no paratexto, em nota, e não como se fosse parte do texto. Há um positivismo subjacente que me incomoda. Já tive muitas reservas contra a NTLH. Depois de um trabalho com dependentes químicos, percebi que ela tem sua utilidade (em contextos específicos). Contudo, mantenho ressalvas, a começar pelo próprio nome Nova Tradução NA LINGUAGEM DE HOJE. Mas isso é assunto para postagem posterior.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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