Interpretação de um relevo cristão com dois peixes e uma âncora: judeus e gentios dependem de Cristo9/27/2016 MINHA INTERPRETAÇÃO DA FIGURA O desenho de uma âncora e dois peixes encontrado nas catacumbas de Domitila, Roma, pede por uma interpretação. Inicialmente, salta aos olhos a diferença entre os peixes. Um tem escamas. O outro, além de não ter marcas de escamas, tem os típicos “bigodes” dos bagres e peixes do tipo. Isso não deve ser acidental. A diferença é importante por ser destacada em Lv 11.9-12 na definição da dieta mosaica. Peixes de couro não seriam consumidos pelos hebreus nos tempos remotos, nem eram consumidos pelos judeus nos tempos de Jesus ou dos apóstolos. Mesmo os judeus que confiavam em Jesus de Nazaré como Messias mantinham seus costumes e a observância da Torah (At 2.20-26). Parece-me possível entender que os peixes indicam dois tipos de pessoas: judeus e gentios (isto é, não-judeus). Ambos estão ligados à âncora. A âncora indica a esperança da salvação em Cristo (cf. Hb 6.19). No princípio, os cristãos não usavam a cruz como seu símbolo, mas a âncora. Ora, então, o desenho parece indicar que o gentio e o judeu estão unidos pela esperança que têm em comum em Cristo. Ambos dependem de Cristo. Essa é a interpretação simples que faço, e que faz com que eu veja o desenho como uma boa ilustração para a epístola de Paulo aos Romanos. PROBLEMAS Um amigo chamado Mateus Dolny viu mais coisas no desenho. Primeiro, reparou na possibilidade de que os dois peixes se refiram não necessariamente a pessoas, mas aos alimentos “puros” e “impuros” em si. Em Cristo, todos os alimentos seriam “autorizados”. Não sei se essa questão seria tema para um desenho. Além disso, se lermos assim a figura, ela parece mais polemista ou apologética. Bom, como os cristãos tinham o hábito de usar o peixe como símbolo que vai além do alimentar, indicando gente, prefiro pensar que eles indicam mesmo as pessoas que comem tal e tal peixe, isto é, judeus e cristãos. Além disso, Mateus vê uma letra phi no cabo da âncora. Seria indicação do número perfeito, o que representaria o Cristo. Bem, não é impossível pensar em significados harmônicos para a letra phi. Mas é possível, também, que o círculo seja somente a representação do lugar de amarra da âncora. Teríamos que verificar o uso do phi com significado simbólico entre os primeiros cristãos. Não tenho notícia disso ainda. É uma tarefa para depois. Provisoriamente, de todos os modos, a âncora em si já é suficiente para indicar a esperança em Cristo. Outro Dolny, que suspeito ser o Ambrósio, remeteu ao famoso acrônimo com o termo peixe em grego (postei há algum tempo a explicação de Agostinho para isso). E, por essa sugestão, lembro de outra imagem que amplia meu problema em defender minha interpretação dos peixes como representando judeus e gentios. Seria esta: Aqui, os peixes são iguais. E, para piorar, a inscrição na parte superior diz “peixe dos viventes”. O termo peixe assim, no singular, parece indicar Jesus, e não seus fiéis, como eu queria. Contudo, para mim, é bastante estranho o fato de que são dois peixes, não um. Além disso, a âncora já remete a Cristo.
Como defesa de minha interpretação, lembro que, embora o peixe tenha sido associado a Jesus na tradição cristã, ele também foi associado aos cristãos (cf. o Hino ao Deus Salvador atribuído a Clemente de Alexandria). Assim, como o símbolo peixe não tem sempre o mesmo significado na tradição escrita, pode também não ter na tradição imagética. Além disso, não é impossível que esse segundo desenho (com sua inscrição) tenha sido criado a partir de um padrão compartilhado no imaginário de vários cristãos. Mas o compartilhamento de um imaginário não implica no compartilhamento pleno das compreensões a respeito de cada imagem. Assim como um desenhista deixa de conservar detalhes no desenho dos peixes (estabeleço uma relação hipotética - não necessariamente direta - entre os dois desenhos), dados de seu sentido também podem ter se perdido. E isso pode gerar a estranha relação do peixe como sendo Jesus e, ao mesmo tempo, figurando como um par. É possível que minha interpretação seja tendenciosa. De qualquer forma, acho bom divulgá-la, como acho bom que amigos proponham suas perspectivas diferentes. Assim, vamos tentando conhecer um rastro tão significativo deixado pelos que foram antes de nós. Não tenho encontrado muita discussão a respeito. O único livro em que vi esse relevo (TRISTAN, Frédérick. Les premières images chrétiennes: du symbole à l'icône. Paris: Fayard, 1996.) não trazia qualquer observação sobre o fato de os peixes serem diferentes. Pois então, eu falei sobre isso agora. A conversa está aberta. Qualquer nova contribuição será bem recebida. Além do mais, que essa conversa sirva para que alguém se sinta instigado a assumir a tarefa de pesquisar o assunto mais detidamente (observando datações, um número maior de imagens e uma bibliografia especializada) em um trabalho de conclusão de curso ou de modo independente.
4 Comments
Rodrigo Moura
8/2/2017 05:40:26 pm
Olá!
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Obrigado por sua participação e contribuição, Rodrigo!
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Elisama de Azevedo
2/16/2018 02:44:53 pm
Boa noite!
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Obrigado por sua participação, Elisama. Obrigado, também, por expor mais sobre o livro. E concordo com você. Realmente, é bonito ver como, ao longo da História da Igreja, da vida do Corpo de Cristo na terra, coisas que gerações tão distantes fizeram ainda são significativas para nosso tempo. Abraço fraterno!
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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