A Transfiguração do Senhor – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ A TRANSFIGURAÇÃO, O CAMINHO PARA O CALVÁRIO E A VIDA DIÁRIA SOB A CRUZ Mc 9.2-9 Cesar Motta Rios O episódio da transfiguração de Jesus é muito conhecido. Temos um domingo todos os anos para o relembrarmos e pensarmos sobre ele. E convém mesmo pensar e repensar. É inevitável mencionarmos sempre alguns detalhes importantes: 1) Jesus sobe um monte, mas desta vez, diferente do que lemos na semana passada, ele não vai sozinho. Leva Pedro, João e Tiago. E, como poderia ter ido sozinho, é de se entender que ele tem um objetivo ao levar esses discípulos. 2) Quem aparece junto com Jesus, conversando com ele, são Moisés e Elias. Precisamos lembrar que o Antigo Testamento era referido frequentemente como “a Lei e os Profetas”. Pois então, Moisés representa a Lei, a Torah. Elias, a tradição profética. E falam com Jesus. Assim, fica demonstrado que a vinda do Cristo não é um fato divergente das Escrituras, mas seu cumprimento. 3) Os discípulos não experimentam ali no monte um momento de profunda paz. Eles estão confusos, apavorados. É uma experiência impactante e inesperada. Pedro nem sabe o que dizer e diz coisa sem sentido: “vamos montar três tendas...”. 4) A voz da nuvem diz: “Este é o meu filho amado, ouçam-no!” Isso é muito interessante. Primeiro, porque lá no batismo de Jesus, a mesma voz tinha dito algo parecido: “Tu és o meu filho amado, em quem me comprazo” (Mc 1.11). As diferenças são importantes: Antes, era uma fala da voz para o Filho, “tu és”. Agora, é uma fala sobre o Filho: “Este é...”. Lembremos que os discípulos não estão ali por acaso! Eles estão ali para testemunharem isso. É para eles que acontece. Além disso, o final não é mais sobre a relação do Pai com o Filho (“em quem me comprazo”), mas uma ordem sobre ele: “Escutem-no!”. Isso reforça a autoridade do ensino de Jesus, marcando que é para ser entendido como são entendidas as Escrituras, como são as palavras comunicadas por Moisés e Elias, no sentido de que vem de Deus e não de mero pensamento humano. São detalhes que mostram como o evento é significativo e profundo. Agora, como é que ele se localiza na vida, na realidade mais ampla, fora do episódio em si? Aqui, quero responder de duas formas. A primeira, diz respeito ao que vinha acontecendo no Evangelho mesmo e, também, ao que vem acontecendo na nossa caminhada no calendário litúrgico. É bom observar que, imediatamente antes desse episódio, Marcos conta que Jesus tinha previsto sua morte e ressurreição. Depois, na conversa enquanto desciam o monte, novamente ele menciona que estava escrito que o Filho do homem haveria de sofrer e ser desprezado. Adiante, ainda no capítulo 9, Jesus falará novamente de sua morte e ressurreição. A transfiguração está inserida nessa antecipação do momento crucial do Evangelho. Parece que aqueles discípulos precisavam presenciar Jesus visto como Filho de Deus, Messias que cumpre o prometido na Lei e nos Profetas, antes de testemunharem a caminhada para a cruz e o desfecho. E precisavam contar posteriormente o ocorrido para os demais, para que contemplassem adequadamente os acontecimentos todos. Nós, agora, estamos às portas da Quaresma. E é também importante, quando começamos a olhar a caminhada de Jesus rumo à cruz, que tenhamos bem claro quem é esse que vai rumo à cruz. Porque não se trata de ter pena de um ser humano admirável que sofreu, mas de contemplar o plano divino sendo cumprido e o gesto de amor do Filho de Deus que se dispôs a tudo aquilo em nosso favor. Passar pela Epifania é importante para percorrer bem a Quaresma. Mas parece que tem algo mais que Deus ensina aqui. E, para comentar esse ponto, eu convido a olharmos para a Transfiguração, pintura de Rafael, que começou a ser pintada justamente em 1517. É fácil reconhecer a cena: Jesus com a roupa branquíssima. Moisés e Elias perto dele. Pedro, João e Tiago fazem gestos de espanto. E tem todas essas outras pessoas. O que fazem essas pessoas na cena? Rafael não se enganou e colocou mais gente no monte. Essas pessoas estão ao pé do monte. Precisamos ler umas linhas a mais para entender: “Quando eles se aproximaram dos outros discípulos, viram numerosa multidão ao redor deles e os escribas discutindo com eles. E logo toda a multidão, ao ver Jesus, ficou surpresa e, correndo até ele, o saudava. Então Jesus perguntou: ‘O que é que vocês estão discutindo com eles?’ E um, do meio da multidão, respondeu: ‘Mestre, eu trouxe até o senhor o meu filho, que está possuído de um espírito mudo; e este, sempre que se apossa dele, lança-o por terra, e ele espuma...’” (Mc 9.14ss). Você se lembra que Jesus vai resolver a situação, não sem antes questionar: “Até quando estarei junto de vós?” (Mc 9.19). O artista foi muito feliz ao retratar esse espaço simultaneamente. Ele mostra a confusão que há, que continua havendo na vida diária dos seres humanos, enquanto três discípulos estão com Jesus naquela experiência maravilhosa. E essa confusão é importante mesmo de ser lembrada, porque ela lembra como é importante cumprir-se o que dizem a Lei e os Profetas sobre Jesus, como é importante ele morrer por nós, porque nós mesmos, sem ele, não vamos além da confusão. E, além disso, essa confusão persistente justifica o descer da montanha. Ela lembra que há um momento para estar no topo do monte, mas que esse momento não é tudo que há. Ver Jesus como Filho de Deus, Messias prometido, junto com Moisés e Elias, não é uma experiência que serve a si mesma somente. Não é para se ficar na experiência eternamente. Há um depois. E eu entendo que, mesmo com todas as diferenças daquele acontecimento muito específico, podemos aprender algo aqui sobre a nossa caminhada com Jesus também. Encontramos Jesus em diversos momentos. Mas, especialmente, encontramos Jesus na Palavra proclamada e na Santa Ceia. E esse encontrar Cristo na Ceia, por exemplo, não se encerra como uma experiência à parte da vida. Há, também para nós, um descer do monte. Não é por acaso que nossa ordem litúrgica tradicional inclui na prece após a Ceia o pedido para que essa Ceia nos dê ardente caridade para com o nosso próximo. É lá embaixo, é no mundo da vida confusa, que o encontro com Cristo repercute. É nos nossos relacionamentos imperfeitos. É onde há tanta gente perplexa, sem rumo, vacilante. Encontrar com Jesus como Cristo vivo, Filho de Deus que morreu para nos salvar não somente traz perdão para nós mesmos, mas também nos envia de volta para a vida diária, marcados por esse encontro, fortalecidos para o desafio de amar diariamente como Cristo amou. Somos relutantes muitas vezes, é verdade. Mas o Senhor nos acolhe e conduz mesmo assim, todos os anos, todos os dias, porque ele cumpriu o prometido na Lei e nos profetas justamente para isso. E, então, haverá de concluir a boa obra que começou em nós, por sua graça, por seu imenso amor. Amém.
0 Comments
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|