A respeito de "HÁ UM SIGNIFICADO NESTE TEXTO?" de Kevin Vanhoozer: Recomendação e ressalvas pontuais1/13/2017 Escrevo minha recomendação sobre o livro HÁ UM SIGNIFICADO NESTE TEXTO? de Kevin Vanhoozer. Primeiro, explico de que se trata o livro e o motivo de minha recomendação. Em seguida, teço algumas ressalvas, especialmente para quem pretender mesmo ler o livro.
Pois bem, o livro é basicamente uma reflexão cristã atual a respeito da interpretação bíblica e da interpretação em geral. É atual no sentido de que não foge do confronto com teorias mais recentes a respeito da hermenêutica. É atual no sentido de que propõe soluções novas para problemas antigos. Vanhoozer não ignora o desafio proposto pela desconstrução (Derrida é sua referência primordial) ou pelo pragmatismo (Stanley Fish, nesse caso). Enfrenta também propostas menos radicais, como de Paul Ricoeur. Um ponto positivo do livro: apesar de se opor a essas propostas, o autor não o faz de modo obtuso ou surdo. Ele ouve e entende seus opositores antes de apresentar o contraponto, que não deixa de aproveitar algum elemento levantado pelos interlocutores. Essa dinâmica pode fazer como que a reflexão seja um pouco difícil de ser acompanhada por alguém estritamente ligado à teologia. (Quem leu Derrida numa graduação em teologia no Brasil?) É leitura para se fazer sentado, com caneta na mão para anotações. Na segunda parte, o livro constrói uma proposta que relaciona diretamente uma teoria da interpretação (de qualquer interpretação!) com a teologia trinitária. Pessoalmente, entendo que esse relacionamento deveria ser visto como ilustração somente, mas Vanhoozer recusa explicitamente essa perspectiva. Há, também, uma proposta quase pastoral a respeito da interpretação bíblica. A percepção da importância da humildade e da convicção (e do equilíbrio entre as duas) para o intérprete é muito pertinente e proveitosa! A reflexão é eficaz no sentido de fazer tanto os liberais quando os fundamentalistas (leia-se, no caso brasileiro, conservadores dogmáticos) repensarem um pouco suas posturas. O autor parece teologicamente conservador, mas tece críticas duras tanto ao liberalismo teológico quanto ao dogmatismo. No fim das contas, imagino que os teólogos conservadores brasileiros, se lerem o livro com atenção, dirão que Vanhoozer ultrapassa alguns limites. No geral, apreciei bastante as propostas especificamente dirigidas à leitura da Bíblia. Antes de enumerar fraquezas pontuais que percebo, anoto que minha grande insatisfação diz respeito não ao trabalho do autor, mas da Editora Vida. A tradução apresenta erros bastante grosseiros. A revisão não foi devidamente realizada. Para dar um exemplo claro, dentre os muitos possíveis, sugiro observar a seguinte frase citada na página 471: "Buscai o significado original, e todas essas relevantes aplicações serão adicionadas a você". Precisa explicar que temos "vós" e "você" (nem "vocês" é!) alternadamente? Além desses problemas, o mais grave é a substituição do subtítulo do livro. Em inglês, a obra é "Is There a Meaning in this Text?: The Bible, the Reader, and the Morality of Literary Knowledge". Esse título faz jus ao conteúdo filosófico/teológico do texto. Algum brasileiro, contudo, pensando obviamente no nosso mercado mais imediatista, quis dar uma cara de manual para a obra, que passou a se chamar "Há um significado neste texto?: Interpretação Bíblica: Os Enfoques Contemporâneos". As mais de 500 páginas do livro NÃO expõem um estudo sobre os enfoques contemporâneos. O trabalho se coloca em um momento anterior. Ele discute a própria noção de interpretação. Enfoques contemporâneos aparecem aqui e ali a título de exemplo, como elementos para a discussão. Se alguém compra o livro pensando em aprender sobre as abordagens que atualmente são utilizadas para a leitura da Bíblia, certamente vai se frustrar. Imagino que haja muitos exemplares enfeitando estantes sem terem sido devidamente desbravados. Ah, para piorar a situação, nem na ficha catalográfica aparece o subtítulo original! É como se, em inglês, o livro tivesse somente o título! Eu só descobri o subtítulo em inglês procurando o livro pelo Google. Pode piorar? Pode. Em certo ponto da introdução, o autor afirma: "De volta ao título. Os leitores mais perspicazes talvez tenham notado alusões a dois outros livros que, tomados em conjunto, mapeiam o território que este trabalho procura percorrer. A primeira alusão, no subtítulo, é à obra de Van Harvey, "The Historian and the Believer: The Morality of Historical Knowledge and Christian Belief"." Ao ler isso, percebi que havia algo errado com o subtítulo em português! Mas beira o ridículo mudar o subtítulo se, na própria obra, o autor recorre ao subtítulo original, sem reproduzi-lo. O leitor fica completamente perdido. Se não procurar o subtítulo em inglês, se não suspeitar que tem algo errado, se não souber inglês para verificar o original, simplesmente vai pensar que o autor bebeu demais quando escreveu esse trecho! Afinal, o que o negócio de "enfoques contemporâneos" teria a ver com "Morality..."? Essa falha é tão absurda que merece ser censurada de modo enfático. Depois de tanto dizer, anoto pontos que julgo que deviam ter sido melhor trabalhados: 1) O trecho dedicado à alegoria alexandrina é muito insuficiente, não refletindo nem de perto a complexidade da alegorese filoniana, por exemplo. [Aliás, avisem aos amigos tradutores: O nome em português é FÍLON e não FILO!] A mesma crítica pode ser estendida ao trecho sobre exegese rabínica. 2) A noção de Écriture (Derrida) não fica devidamente esclarecida. Para um leitor que a desconheça, suspeito que a afirmação de Derrida sobre a precedência da Écriture sobre a fala não deva parecer tão relevante quanto é para a discussão. 3) A intertextualidade (p. 164-166) parece mal vista sem tanta justificativa. Parece-me que seria melhor se ele tivesse aproveitado a noção em sua construção, em vez de desmerecê-la por receio (embora eu entenda a intenção do argumento desenvolvido). 4) Em certos momentos, as noções de identidade, mesmidade, ipseidade (Ricoeur) não me parecem muito bem articuladas. 5) Ainda sobre Ricoeur, nas páginas 128-129, uma ilustração sobre palavras escritas por ondas é usada como forma de refutar a proposta do filósofo francês. Pareceu-me muito, mas muito insuficiente. Vanhoozer ama essa ilustração. A meu ver, a supervaloriza. Mitiga o problema o fato de que, na segunda parte, Vanhoozer se mostra mais simpático a Ricouer, afirmando inclusive que a proposta do filósofo seria uma alternativa interessante (se a sua própria não fosse melhor). Sinceramente, ainda me vejo Ricouer como mais interessante. 6) Vanhoozer faz uma reflexão interessante sobre a muita relevância do gênero literário para a devida interpretação. Na página 417, sugere que as obras costumam ter "marcadores genéricos" bem no começo, como forma de guiar o leitor. Então, cita frases iniciais de diferentes livros da Bíblia. Entre elas: "Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus" (Mc 1.1). Para qualquer estudioso do NT, fica óbvio que um problemão foi esquecido aí. Se Marcos foi o primeiro Evangelho a ser escrito, e se não havia um gênero literário nominado "Evangelho", como é que dizer "Princípio do Evangelho" poderia ser considerado uma marcação do gênero do texto? Será mesmo que "Evangelho" aí indica um gênero? Se sim, nós teríamos que, quase forçosamente, suspeitar que o verso é uma inserção tardia! Mas a tradição manuscrita não nos leva para essa direção. 7) Na página 482 (e subsequentes), Vanhoozer recorre ocasionalmente a Karl Barth em sua discussão sobre a relação Escrituras - Palavra de Deus - Espírito. Infelizmente, ele deixa explícito o que aproveita de Barth, mas silencia (ou deixa quase inaudível para quem não conheça o pensamento de barthiano) os pontos de discordância. Seria interessante um diálogo mais aberto com o teólogo suíço. (De qualquer forma, percebe-se uma admiração por Barth, partilhada por mim.) Leia o livro. Reflita. Se quiser, conversamos depois.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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