Quinto Domingo de Páscoa – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS VISÃO DE VIDA NO ÁRIDO VALE DA DESESPERANÇA Ap 21.1-7; Jo 13.31-35 Cesar Motta Rios Eu confesso que encontro um obstáculo incômodo ao falar de vida e de vida cristã para algumas pessoas muito jovens. Não todas. E não que esse obstáculo torne impossível a tarefa. Acontece que muitas pessoas jovens ainda não experimentaram na pele e nas profundezas da alma como a vida pode ser difícil de se viver. Para ser completamente honesto, a verdade é que a vida pode ser cruel muitas vezes. E quem não se deu conta disso não só de ouvir falar pode não apreender devidamente o que Deus diz quando nos fala de salvação. Lutero, que tinha uma visão muito realista sobre o mundo e a vida (até bem pessimista e inadequada, diriam muitos dos escritores de autoajuda atualmente), chegava a chamar este mundo, esta vida, de “vale de lágrimas”. [Eu não vou pregar sobre Lutero, por favor! Só estou usando essa consideração dele por ser uma imagem compartilhada entre nós e útil para a reflexão.] A partir de conversas com algumas pessoas sobre a vida e seus percalços, descobri que essa imagem do “vale de lágrimas”, embora forte, ainda não consegue refletir toda a dureza da realidade algumas vezes. Há muita gente que, de tanto chorar, cansa de clamar por socorro, cansa de esperar por mudança em um sofrimento específico. Cansada de dormir em meio às lágrimas, a pessoa desiste de clamar, desiste de prantear sua situação, e o vale de lágrimas se torna também o árido vale da total desesperança. Muitos dos primeiros leitores do Apocalipse tinham motivos de sobra para viverem assim, com lágrimas e sem esperança. Enfrentavam pobreza, dificuldade real de manterem suas famílias. Enfrentavam a hostilidade de vizinhos, que viam os cristãos como inimigos da sociedade em geral. Conviviam com carência, medo e incerteza. Em meio a isso, João apresenta essa visão espetacular. A vida debaixo do céu, a vida sobre esta terra não estava nem perto de ser agradável. Parecia que o vale da sombra da morte era enorme, e nunca terminavam de atravessá-lo. Então, João conta que viu um céu novo e uma terra nova. Não só isso. O céu antigo e a terra antiga já haviam ficado para trás, e já não existia mar. A realidade que estava difícil seria refeita. Não haveria mera melhoria, mas uma novidade completa. E haveria uma comunhão plena entre seres humanos e o próprio Deus. Eles habitariam juntos e em harmonia. E Ele enxugaria dos olhos das pessoas toda lágrima. E não haveria mais motivo para choro. Morte, pranto, lamento, sofrimento não fazem parte dessa nova realidade. São coisas que ficam no passado. É Aquele que tem o domínio sobre tudo que garante a João que tudo será assim. E será assim para todos os que vencem. É importante que vencer, no Apocalipse, é simplesmente participar da vitória do Cordeiro, o verdadeiro Vencedor. E a pessoa participa da vitória do Cordeiro é continuando unida a ele. E esses vencedores não terão mais sede ou qualquer necessidade, pois serão plenamente saciados. João é quem tem a experiência de ver e escutar essas coisas. Ele certamente muda seu modo de ver o mundo e o futuro. Por ordem do Senhor, ele escreve e repassa tudo isso à Igreja. A Igreja lê e escuta essas palavras. E, por ação do Espírito Santo, essas palavras repercutem. Não são mero entretenimento ou um jeito de desviar a atenção do sofrimento, simples distração. São palavras que geram esperança no coração das pessoas. As comunidades eram consoladas e vivificadas por essas palavras e imagens. Por essa visão privilegiada da realidade última, do que estava preparado para acontecer, elas encontravam, na esperança renovada, forças para continuarem na caminhada cristã, no testemunho e na comunhão. E os de fora que não tinham acesso a essa visão, a essa exposição ou revelação da realidade? O que viam? Eles não tinham o Apocalipse. Eles só podiam ver as comunidades cristãs. Olhavam-nas, com preconceitos muitas vezes, mas olhavam. E é então que recorro ao breve texto do Evangelho lido hoje. Jesus entrega aos discípulos o mandamento de amarem uns aos outros de uma forma muito especial, com uma entrega de si em favor do próximo: “Assim como eu vos amei, amai-vos também vós uns aos outros!”. E essa ação de amar uns aos outros seria o traço característico que tornariam reconhecíveis os discípulos de Jesus. Não um tipo de roupa, que pode ser imitado. Não um símbolo, que pode ser usurpado. Não um tipo único de construção para reuniões... O que faz as pessoas serem reconhecidamente seguidoras de Jesus é a vivência do amor, não como sentimento que “acontece ou não”, mas como ação decidida em relação à outra pessoa, como disposição de favorecer a outra pessoa, de fazer-lhe bem com esforço se preciso. E nem mesmo o resultado dessa ação, dessa disposição de amar é o que mais importa. Aquela pergunta “De que vale ajudar essa pessoa, se outras tantas vivem a mesma situação difícil?” não faz sentido para quem ama como Cristo amou. As verdadeiras obras do amor não são motivadas por interesse próprio da pessoa que ama, nem são justificadas somente pelos resultados para a pessoa que recebe a ação. As verdadeiras obras do amor são motivadas e se justificam por causa da Fonte do Amor, o próprio Deus. O amor de Deus por nós em Cristo passa a ser vivido entre nós. E quem é de fora vê isso. Todos veem algo diferente quando isso é uma realidade. E somos reconhecidos como seguidores do Cristo. Pessoas se interessam e se aproximam. Então, poderão também elas compartilhar da janela que João nos abre no Apocalipse. Poderão também elas serem cheias de esperança. Povo de Jesus, o Cordeiro morreu por nós, não somente para nos dar outra vida, ou uma vida longa ou mesmo sem fim. A palavra ressurreição só expressa uma pequena parte do que Ele nos dá. Ele morreu por nós para nos oferecer uma realidade completamente nova, completamente perfeita numa nova terra. Mas essa realidade diferente já é inaugurada aqui e agora, no nosso modo de viver com fé, com esperança viva e na prática do amor desinteressado. O povo de Jesus espera pela novidade do novo céu e da nova terra e, enquanto isso, vive em novidade de vida; uma novidade nesta terra, sob este presente céu. O povo de Jesus ainda chora, ainda se machuca, ainda pode ser perseguido. Mas sabe que isso é só por um tempo. Sabe que este tempo não é tudo. Sabe que não acaba assim. Sabe que há uma lógica diferente no plano de Deus. E, vivendo nessa esperança, o povo de Jesus é como um sinalizador, um sinal de fogo para o mundo, iluminando e anunciando que algo realmente novo está prestes a chegar. Vivamos repletos de fé, esperança e amor. É o que podemos fazer com muita satisfação aqui e agora. Amém.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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