Para começar uma série de postagens sobre comida no Cristianismo & Antiguidade, eu não poderia escolher outro ingrediente. O mel está certamente entre os mais mencionados nas Escrituras dos judeus e dos cristãos. A terra prometida é descrita como “terra que mana leite e mel”: אֶ֛רֶץ זָבַ֥ת חָלָ֖ב וּדְבָ֑שׁ γῆν ῥέουσαν γάλα καὶ μέλι (Êxodo 3.8) Essa expressão é retomada uma porção de vezes na Torah. É interessante que mel (junto com o leite) seja visto como algo bom ao ponto de servir como descrição de uma terra excepcional. Além disso, o mel aparece na história de Sansão. Ele retira mel da carcaça de um leão (Jz 14.8). Veja só! Sujeitinho descuidado com a pureza, não é? Não resistiu a essa iguaria especial, que será exemplo de algo muito doce em vários outros textos. Quando se quer dizer que algo é mesmo muito doce, basta comparar com o mel. Por isso, diz o salmista (Salmo 19.11) que os preceitos de YHWH são “mais doces que mel e favos transbordantes (ou simplesmente “mel e favo”, conforme a versão grega): γλυκύτερα ὑπὲρ μέλι καὶ κηρίον וּמְתוּקִ֥ים מִ֜דְּבַ֗שׁ וְנֹ֣פֶת צוּפִֽים׃ Curiosamente, o livro de Provérbios tem também alguns conselhos a respeito do mel. Num certo ponto, manda comer mel, dizendo ser algo bom (Pv 24.13). O problema é que o fato de ser bom não significa que possa ser comido sem qualquer moderação. Sempre tem aquele que quer tudo para si e exagera. Por isso, se encontrar mel, o sujeito deve comer só o suficiente, para não ficar cheio demais e vomitar (Pv 25.16). De fato, comer muito mel não é bom (Pv 25.27). אֱכָל־בְּנִ֣י דְבַ֣שׁ כִּי־ט֑וֹב (Pv. 24.13) אָ֘כֹ֤ל דְּבַ֣שׁ הַרְבּ֣וֹת לֹא־ט֑וֹב (Pv. 25.27) Meu filho, come mel porque é bom! / Comer mel demais não é bom! No Novo Testamento, o mel aparece bem menos. Temos João Batista comendo mel selvagem (Mc 1.6), e um livro com sabor de mel doce no Apocalipse (10.9-10). Se olharmos para fora do cânone mais restrito, encontraremos outras tantas coisas interessantes. Não há tempo para um levantamento amplo aqui. Menciono apenas uma ocorrência que me parece muito significativa: ἀρχὴ πάσης χρείας εἰς ζωὴν ἀνθρώπου ὕδωρ καὶ πῦρ καὶ σίδηρος καὶ ἅλας καὶ σεμίδαλις πυροῦ καὶ γάλα καὶ μέλι αἷμα σταφυλῆς καὶ ἔλαιον καὶ ἱμάτιον O principal de toda a necessidade para a vida do ser humano é: água, fogo, ferro, sal, flor de farinha, leite, mel, sangue de uvas, azeite e roupa. (Sabedoria de Jesus Bem Sirach 39.26) Outros alimentos que figuram na lista aparecerão em postagens futuras. Por enquanto, restrinjo-me ressaltar a presença do mel nesse grupo tão seleto. Se alguém que gosta muito de doces se lembrar de que não havia cana de açúcar naquele contexto, fará muito sentido. De qualquer forma, é certo que o mel era fonte ímpar de sabor, além de conceder uma energia considerável. Talvez seja uma boa hora para pensar em um bolo de mel, biscoito de mel, molho com mel, frutas com mel, ou, simplesmente, numa boa colherada de mel. Só não coma demais para não vomitar. É bíblico isso. P.S. E você? O que você come com mel? E que outro texto da Bíblia ou de outra fonte antiga fala sobre mel de uma forma interessante?
0 Comments
Tiago era "irmão de Deus"?
Cesar M. Rios Alguns leitores podem estranhar o epíteto dado a Tiago na tradição ortodoxa. O estranhamento se justifica, em princípio, pela falta de trânsito da expressão entre as tradições ocidentais. Mas reconheço que, num momento seguinte, uma questão pode ser anteposta por alguns: 'Não seria melhor dizer "irmão de Jesus" ou até "irmão do Senhor", como o próprio Tiago faz em sua epístola? Outros podem se perguntar: Se as Igrejas Ortodoxas entendem que Maria permaneceu perpetuamente virgem, como podem dizer que seu filho Jesus tem um irmão? Pois bem, vamos considerar a primeira pergunta. É preciso lembrar que o Concílio da Calcedônia, realizado em 451 d.C. deixou estabelecido de forma clara e radical que Jesus Cristo tem as duas naturezas, divina e humana, inseparáveis desde a encarnação do Lógos. Assim, não se poderia dizer que Maria tivesse dado à luz um mero homem que (ainda) não era Deus. Pelo contrário, ela poderia e deveria ser chamada de θεοτόκος, aquela que deu à luz Deus. De modo semelhante, se Tiago é irmão de Jesus, não será irmão de mero homem, mas de Deus, uma vez que não se pode "dividir" o Deus-Homem. Bom, mas (a segunda questão!) como pode Jesus ter um irmão se Maria é perpetuamente virgem? Aqui, é preciso observar que a Igreja Romana e as Ortodoxas concordam sobre a virgindade perpétua, mas discordam quanto à explicação dada às expressões neotestamentárias que se referem a "irmãos" (ἀδελφοί) de Jesus. Os Romanos entendem que, por influência do hebraico e/ou do aramaico, o termo grego é usado no NT para se referir a primos (a esse respeito, escrevi um ensaio que está disponível AQUI). Seria, pois, estranho que um católico romano acolhesse com entusiasmo e usasse com ênfase a expressão "irmão de Deus". Os ortodoxos, no entanto, afirmam que o termo se refere a irmãos mesmo. Contudo, não seriam filhos de Maria, mas fruto de um primeiro casamento de José (não mencionado no NT). Embora não tivessem genética compartilhada com Jesus, eles seriam "socialmente" considerados irmãos do nazareno divino, assim como José seria considerado seu pai. Cesar Motta Rios
Introdução Evangélicos não costumam ter dúvidas sobre o assunto. Afirmam que Maria, mãe de Jesus, teve uma vida conjugal normal após o parto do Messias, gerou filhos com José e os criou. Trechos dos Evangelhos que se referem aos irmãos de Jesus não lhes causam nenhum incômodo. A Igreja Católica Apostólica Romana (entre outras), por outro lado, não admite que Maria tenha deixado de ser virgem. Portanto, não aceita que esses irmãos de Jesus sejam de fato irmãos (maternos).[i] Cada grupo está convicto de sua leitura, seja pela confiança nos tradutores, seja com base em um dogma legado pela tradição. Neste texto, apresento algumas anotações de caráter lexicológico que podem servir de base a uma reflexão acurada sobre a questão. Não me proponho a apresentar uma resposta definitiva, e nem sequer me ocupo dos variados argumentos favoráveis e contrários à virgindade perpétua de Maria, uma vez que muitos deles extrapolam a questão lexical específica de que tratarei, pois abarcam detalhes narrativos diversos e até mesmo outras questões linguísticos instigantes e trabalhosas. Restrinjo-me ao estudo de um termo: ἀδελφός - adelphós. Anotações a partir do problema Jerônimo, em seu Sobre a virgindade perpétua da Santa Maria – Contra Helvidio[ii], argumenta que as Escrituras utilizam o termo irmão de quatro modos: por natureza, por povo, por relação sanguínea e por amor. Assim sendo, o evangelista pode utilizar o termo grego ἀδελφός - adelphós com um sentido amplo, que inclui parentes mais distantes que irmãos, como primos ou sobrinhos, o que seria costume nas Escrituras: “são chamados irmãos por relação sanguínea aqueles que são de uma mesma família, isto é, de uma mesma patria[iii], o que em latim é traduzido paternitates”[iv] (Perp. Virg. 14). Martinho Lutero e João Calvino concordam com o argumento do pai latino. Em seu comentário sobre Mateus, mais especificamente ao tratar sobre o versículo 55 do capítulo 13, Calvino demonstra conhecimento do escrito de Jerônimo e afirma que o termo ἀδελφός - adelphós é usado conforme o idioma hebraico, com sentido amplo. Segundo ele, Helvidio, o mesmo a que se opunha Jerônimo no referido escrito, demonstra excessiva ignorância ao atribuir filhos a Maria. Quanto ao reformador alemão, ele diz em um sermão sobre o Evangelho de João, ao se referir a Jo 2:12, que concorda com aqueles que afirmam que os tais “irmãos” são “primos”, pois o Espírito Santo e os judeus teriam mesmo o costume de chamar primos de irmãos.[v] Ao falar do uso de frater pelas Escrituras, Jerônimo não menciona qualquer diferenciação entre os termos em grego e hebraico. Contudo, nos leva a suspeitar, com Calvino, da possibilidade de que o suposto uso seja oriundo do texto hebraico, já que os exemplos arrolados para o termo significando familiares mais distantes provêm do Antigo Testamento, e porque o termo grego no uso geral da língua tem um significado restrito. Evidência dessa influência do hebraico sobre o grego no âmbito das Escrituras seria o fato de que uma tradução grega específica da Torah, a Septuaginta, que, em princípio, era uma referência para os escritores do Novo Testamento, utiliza o termo ἀδελφός - adelphós para traduzir אח - ‘akh mesmo quando esse termo se refere a pessoas com graus mais distantes de parentesco. Convém relembrar ao menos alguns trechos que ensejam o argumento. Em Gênesis 13:8, Abraão diz a Ló:כִּֽי־אֲנָשִׁ֥ים אַחִ֖ים אֲנָֽחְנוּ - ki anashim akhim anakhnu, o que seria traduzível por “porque nós somos homens irmãos”. É óbvio, pela narrativa prévia, que eles não são irmãos, mas tio e sobrinho. A Septuaginta, contudo, traduz a frase simplesmente por ὅτι ἄνθρωποι ἀδελφοὶ ἡμεῖς ἐσμεν - hóti ántropoi adelphoì hemeîs esmén, “porque nós somos homens irmãos”. Algo semelhante acontece em Levítico 10:4, quando os filhos do irmão do pai de Arão são convocados para retirarem os corpos de Nadab e Abiú, filhos de Arão, do Santo dos Santos. São “filhos do irmão do pai” de Arão, portanto primos deste e primos de segundo grau dos que jazem mortos. Mas lhes é dito que tirassem אֶת־אֲחֵיכֶם֙ - et-akheikhem, “vossos irmãos” de diante da face do Santo. A Septuaginta novamente não deixa de usar o termo para irmão, pois diz τοὺς ἀδελφοὺς ὑμῶν - toûs adelphoûs hymôn, “vossos irmãos”, mesmo neste caso em que o contexto imediato elucida o real parentesco entre os envolvidos. A proposta é clara: a língua grega, ao ser utilizada pelos judeus, a partir da criação e ampla adoção da Septuaginta, passa a conceder um sentido mais amplo ao termo ἀδελφός - adelphós. Diante desse argumento, que não é desprezível, proponho-me as seguintes questões: os tradutores da Septuaginta corroboram esse sentido mais amplo do termo? A tradução é capaz de alterar o sentido de um termo entre os judeus em toda a história subsequente, como se os judeus usassem a língua grega só para dialogarem com um público estritamente judeu? Quanto à primeira questão, é imprescindível verificar se na Septuaginta de fato o termo ἀδελφός - adelphós é utilizado para graus mais distantes de parentesco de modo deliberado ou se os tradutores somente descuidam dos detalhes da narrativa e optam por sempre traduzirem אח - ‘akh por ἀδελφός - adelphós com vistas a uma padronização conscientemente almejada, ou mesmo descuidando da amplitude semântica do termo hebraico. Sugiro uma verificação comparativa de Números 36:11, que pode nos servir de evidência. וַתִּהְיֶ֜ינָה מַחְלָ֣ה תִרְצָ֗ה וְחָגְלָ֧ה וּמִלְכָּ֛ה וְנֹעָ֖ה בְּנ֣וֹת צְלָפְחָ֑ד לִבְנֵ֥י דֹדֵיהֶ֖ן לְנָשִֽׁים׃ καὶ ἐγένοντο Θερσα καὶ Εγλα καὶ Μελχα καὶ Νουα καὶ Μααλα θυγατέρες Σαλπααδ τοῖς ἀνεψιοῖς αὐτῶν Macla, Tirza, Hogla, Milca e Noa, filhas de Zelofeade se tornaram mulheres dos filhos dos tios delas (hebraico) / primos delas (grego). Ora, quando se deparam com uma expressão que claramente se refere à relação entre primos, sem que haja a ocorrência do termo אח - ‘akh no texto hebraico, os tradutores da Septuaginta usam ἀνεψιός - anepsiós, “primo”, e não ἀδελφός - adelphós. Pode-se aventar, pois, a possibilidade de que de fato a utilização de ἀδελφός - adelphós para sempre traduzir אח - ‘akh não se trate de um alargamento do sentido do termo grego, pois, se assim fosse, eles o adotariam para traduzir também “filhos dos tios delas”.[vi] Ademais, o leitor judeu da Septuaginta teria contato com o termo ἀνεψιός - anepsiós por meio desse versículo de Números, e no uso cotidiano do idioma também, obviamente. Passo à segunda questão, que indica uma suspeita de minha parte a respeito da adesão dos judeus a esse sentido ampliado do termo. Ora, se ἀδελφός - adelphós tem esse novo amplo sentido só entre judeus, seria compreendido incorretamente por alguém de fora, uma vez que esse estranho não está informado do fato. Seria, nesse caso, preciso supor que os judeus escreviam tendo em vista somente um público judeu, o que, diga-se de passagem, não parece ter sido o caso de Marcos (CARSON, 1997, p. 112). Um caminho a seguir é a verificação da utilização do termo ἀνεψιός - anepsiós entre escritores judeus de um período próximo ao do evangelista. Não é preciso ir longe nessa busca ou investigar documentos pouco conhecidos. Fílon de Alexandria e Flávio Josefo, ambos do século I d.C. utilizam habilmente ἀδελφός - adelphós e ἀνεψιός - anepsiós, demonstrando consciência da diferença entre os termos e da especificidade de cada um.[vii] Em período anterior, o mesmo pode ser identificado no poeta Teodoto e na tradução do livro de Tobias ao grego[viii], deuterocanônico presente na Bíblia adotada pela Igreja Romana. Mas, além desses escritores, um escritor judeu bem conhecido por todos os cristãos e contemporâneo de Marcos e Mateus também demonstra habilidade para usar o termo ἀνεψιός - anepsiós. Falo de Paulo de Tarso, que em sua carta aos Colossenses se refere a um certo Marcos como ἀνεψιός - anepsiós de Barnabé (Cl 4:10). Essas ocorrências demonstram que não é certo afirmar simplesmente que em meio judaico o termo ἀδελφός - adelphós é usado como irmão, primo, primo de segundo grau ou sobrinho indiferentemente. É errado dizer que judeus desconhecem vocábulo que signifique primo. Judeus que falam e escrevem grego o conhecem sim. Não obstante, pode-se sugerir que esses escritores judeus que acabo de mencionar são todos dotados de uma educação e habilidade na língua grega que excede em muito a de Marcos, evangelista de estilo pouco rebuscado, para usar de um eufemismo. Soma-se a esse argumento o fato de que, no evangelho, não ocorre o termo ἀνεψιός - anepsiós nenhuma vez. A falta de ocorrência de ἀνεψιός - anepsiós no texto marcano não é evidência definitiva, dada a limitação do corpus e a falta de contexto narrativo que o solicitasse. Quanto ao pouco traquejo do escritor com o idioma, também não é possível aferir se esse fator realmente afetava a diversidade lexical do escritor nesse campo semântico específico. A limitação do corpus nos conduz à cautela também nesse ponto. No mesmo sentido, contudo, há um fator consideravelmente complicador. Poderíamos supor que a influência semita no uso do grego não viesse da tradição escrita[ix] e nem tampouco da língua hebraica, mas do aramaico falado pelo evangelista e pessoas envolvidas nas narrativas dos Evangelhos. Mesmo que Marcos não tenha escrito em aramaico, simplesmente por ter esse idioma como língua materna, pode ser influenciado por ele quando escreve em outro idioma. E o aramaico compartilha das mesmas características do hebraico no que diz respeito ao termo para “irmão”, já que wxa - אחו - ‘akho[x] pode ser irmão, mas também é usado para pessoas com graus de parentesco mais distantes. Na Peshita, versão aramaica do Novo Testamento, é justamente esse o termo que figura nos trechos dos Evangelhos implicados neste estudo. O problema desse argumento é que ele é tão difícil de refutar quanto de comprovar. Como disse anteriormente, não podemos acessar a mente de Marcos para saber o quanto o léxico de sua língua materna ainda guiava suas escolhas lexicais na escrita em grego. Se tentarmos localizar o termo ἀδελφός - adelphós no contexto narrativo imediato de suas ocorrências em Marcos, constataremos que os tais “irmãos” de Jesus aparecem repetidamente com sua mãe (ou mãe e pai, conforme a perspectiva dos enunciadores em Mc 6:3[xi]), sem a companhia de outros parentes. Essa configuração com mãe/mãe-pai e irmãos favorece o entendimento de que se trata da apresentação do núcleo familiar mais restrito. Favorece, mas não o garante. Podemos pensar que essa busca por uma leitura que deixe Jesus como filho único de Maria é motivada por e gravita em torno de um dado extratextual de caráter dogmático. Contudo, mesmo sendo dogmática a motivação da leitura, ela deve ser respeitada enquanto possibilidade, ao menos para o diálogo, uma vez que não se estabelece de modo ingênuo, mas sagaz, erudito e, em certa medida, escriturístico. Simetricamente, sua oposição também pode estabelecer-se em bases razoáveis, devendo ser também respeitada, e não acusada de ignorância. Conclusão Parece-me que uma aproximação minimamente detida ao problema revela que ambas as respostas são plausíveis. Mas, note-se, tudo que está no âmbito do plausível é discutível, uma vez que não está definitivamente comprovado. Se católicos romanos, Lutero e Calvino podem ter sobrevalorizado uma evidência das Escrituras, muitos evangélicos, por outro lado, subestimam a questão imaginando que é resolvida por uma simples leitura de uma boa tradução ou consulta a um léxico de grego antigo. Inclusive, talvez, o leitor já tenha se proposto a citar aquele versículo de Lucas (2:7), que se refere a Jesus como primogênito (πρωτότοκον) de Maria, e não unigênito (μονογενῆ), julgando ter a cartada final. Escuto, então, um sussurro de Jerônimo que diz com um meio sorriso cansado, de quem já está envolvido no debate há séculos: “Omnis unigenitus est primogenitus: non omnis primogenitus est unigenitus” (se é preciso traduzir: “Todo unigênito é primogênito; nem todo primogênito é unigênito”). E a conversa não termina tão cedo quanto supúnhamos. Já penso em dizer: “Puxe uma cadeira, Jerônimo! Aceita café? Calvino e Lutero tinham muito o que fazer e já nos deixaram, mas não faz mal. Vamos conversando com calma”. E, antes de apresentar a ele uma versão deste escrito que você acaba de ler, eu faria um comentário despretensioso, só para nos aproximarmos de modo mais descontraído: “Curioso é que a gente se esforça tanto para discutir uma questão que parecia pouco relevante para os evangelistas.[xii] Afinal, se Maria foi virgem durante toda sua vida, e isso fosse de fato importante, eles deveriam ter tido mais cuidado com os termos escolhidos e a forma de contar os acontecimentos, não acha?” Referências bibliográficas ANDERSON, Gary. The Garden of Eden and Sexualiy in Early Judaism. In: EILBERG-SCHWARTZ, H. People of the Body: Jews and Judaism from an Embodied Perspective. Albany: State University of New York Press, 1992. p. 47-68. Biblia Hebraica Stuttgartensia. Ediderunt K. Elliger et W. Rudolph. Editio quinta emendata opera A. Schenker. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997. CARSON, D. A., MOO, Douglas J., MORRIS, Leon. Introducao ao Novo Testamento. Trad. Marcio Loureiro Redondo. Sao Paulo: Vida Nova, 1997. HIERONYMI, Eusebii. De Perpetua Virginitate Beatae Mariae. In: Patrologia Latina. Vol. XXIII. Paris: Garnier Fratres et J.-P. Migne successores, 1883. p. 193-216. Septuaginta: id est Vetus Testamentum Graece iuxta LXX interpretes. Edidit Alfred Rahlfs.Duo volumina in uno. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979. The Greek New Testament. Fourth Revised Edition Edited by Barbara Aland et ali. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2000. [i] Acrescento “maternos” entre parênteses por reconhecer que uma possível solução para a questão escapa ao âmbito lexical e semântico de que trato neste escrito. Foi proposto que José, por ser mais velho, tenha tido um casamento anterior, donde viriam os tais irmãos, ou melhor, meios-irmãos de Jesus, conforme um ponto de vista alheio à sua concepção divina. O procedimento me parece muito próximo do de certos midrashim agádicos da tradição rabínica em seu tratamento das histórias da Bíblia hebraica. Um dado do texto e um vazio de informação permitem a especulação criativa, que fica improvada, mas, também, difícil de ser negada. [ii] Título original: De perpetua virginitate Beatae Mariae – Adversus Helvidium. A brevidade de meu escrito me impossibilita de fazer jus ao argumento do pai latino. Embora não me veja convencido por ele, reconheço e admiro a sagacidade e pertinência de muitas de suas considerações. [iii] Jerônimo se refere ao termo grego πατριά – patriá, que indica uma linhagem determinada por um homem. [iv] Cognatione fratres vocantur, qui sunt de uma família, id est, pátria: quas Latini paternitates interpretantur. [v] Luther’s Works, Volume 22, p. 215. [vi] É bom, inclusive, observar que Jerônimo usa frater para traduzir אח - ‘akh no A.T. e ἀδελφός - adelphós nos referidos trechos de Marcos, mesmo entendendo que não significam o mesmo que o termo latino. Ele o faz pelo respeito que tem à escolha do termo do escritor bíblico. Igualmente fazem muitas traduções católicas ao português. Mas nem Jerônimo mudou o significado do termo frater com isso, nem as Bíblias publicadas por católicos alteraram o sentido do termo “irmão” em português. [vii] Cf. por exemplo, de Josefo Ant. Judaicas 1:290 ou 17:19, pela ocorrência simultânea, e, de Fílon, Legat. 26, pela clara diferenciação e hierarquização dos termos. Reconheço que Fílon tinha o grego como língua materna e não dominava idiomas semitas. Josefo, no entanto, certamente falava aramaico e acessava as Escrituras em hebraico. [viii] Foram encontrados fragmentos do livro de Tobias em aramaico e hebraico junto aos manuscritos do Mar Morto. Não há consenso sobre qual dos idiomas seria o do texto original. O interessante é que, de fato, o texto grego apresenta um uso amplo de ἀδελφός - adelphós, inclusive em situações de parentesco mais distante (cf. Tb 5:13) e, sobretudo, marcadas por afeto (Tb 5:11-12, em que Tobias chama o anjo disfarçado de parente de ἀδελφός - adelphós antes de saber que se apresentaria como parente). Mas há duas ocorrências precisas de ἀνεψιός - anepsiós (cf. Tb 7:2 e 9:6). [ix] Estou desconsiderando a hipótese de que o Novo Testamento, no todo ou em partes, tenha sido escrito em aramaico e posteriormente traduzido ao grego, o que é defendido por parte da Igreja Cristã, nomeadamente pela Igreja Ortodoxa Síria, que ainda usa o aramaico cotidianamente e lê a Peshita, versão aramaica do Novo Testamento. [x] Insiro o termo no alfabeto aramaico-siríaco, por ser este o mais utilizado no âmbito do cristianismo ortodoxo, mas também no alfabeto utilizado no âmbito do judaísmo porque esse seria o alfabeto usado no tempo dos apóstolos nas terras de Israel. [xi] Perspectiva que pode estar errada, conforme argumento de Jerônimo. Da mesma forma que José é pai de Jesus a partir de certa perspectiva, assim se daria com seus “irmãos” (Perp. Virg. 16). [xii] Parece-me que do ponto de vista judaico a virgindade perpétua de uma mulher (casada) não seria de forma alguma uma marca de bem-aventurança. Ao contrário, seria a fertilidade que marcaria o êxito de uma vida feminina. A visão negativa do sexo é, de fato, um fator diferenciador entre o cristianismo e o judaísmo nos primeiros séculos da era cristã. Exemplo disso é o fato de que hermeneutas cristãos tendiam a negar que Adão e Eva tivessem mantido relações sexuais antes de serem expulsos do Éden, enquanto os rabinos afirmavam que o sexo fazia parte da rotina deles mesmo antes de deixarem o paraíso (ANDERSON, 1992). No #diadoprofessor, meu amigo Clemente dirige umas poucas palavras a seu Professor:
“Entoa hinos e descreve para mim o teu Pai, Deus. O teu relato salvará. O cântico me instruirá. Até agora, eu vagueava procurando a Deus, mas, desde que me conduzes com tua luz, Senhor, também encontro a Deus por meio de ti; recebo o Pai de tua parte, e me torno teu coerdeiro, já que não te envergonhas do irmão.” Clemente de Alexandria (Século II d.C.) Exortação aos gregos, XI, 113, 4-5 - Minha tradução Imagem: www.fullofeyes.com Apesar do pouco tempo dedicado nas graduações para o estudo da Igreja nos primeiros séculos, há certas noções que se disseminam quase como um senso comum também nessa área. Uma das mais comuns afirma: "Todas as ideias que surgem na Igreja ao longo dos tempos são meras repetições do que já foi pensado nos primeiros séculos, sobretudo quando se trata de heresia".
É claro que muitos têm certo prazer em usar esse tipo de compreensão da história para atribuir rótulos a pessoas de outras tradições cristãs diferentes das suas. Escolhem grupos heréticos do passado, e encontram (supostas) semelhanças entre eles e seus opositores atuais. Pronto. O rótulo está erigido! Uma nota agressiva de reprovação com um toque de aparente erudição. O problema, certamente, é que aquele que faz isso, com frequência, só conhece superficialmente tanto o seu opositor contemporâneo quanto o grupo herético antigo. Proponho, diferentemente, que um ganho proveniente do estudo da Igreja Antiga seja justamente uma maior tolerância para com a diversidade das tradições cristãs. Você logo percebe que, se quiser estabelecer o seu jeito de ser cristão como o único legítimo, lançará fora automaticamente gerações e mais gerações de cristãos sinceros. A face nefasta do exclusivismo salta aos olhos. O incômodo da solidão imaginada faz suspeitar que a vaidade tem alguma parte na motivação desse processo. Então, você tende a ser mais ponderado e, quiçá, acolhedor, reconhecendo certa riqueza na diversidade, em vez que se lançar ávido e rancoroso contra o mais ínfimo traço de diferença. O estudo da História da Igreja Antiga e da Patrística é muito restrito nas faculdades de teologia brasileiras protestantes e (surpreendentemente) também em várias das católicas. Pela carga horária dedicada à área nas grades curriculares, não seria impressionante encontrar bacharéis em teologia que muito pouco ou nada leram dos pensadores cristãos dos primeiros séculos. A maioria terá, no máximo, acesso ao tema por meio de fontes secundárias nem sempre atualizadas.
Um conhecido (diplomado) me dizia um tanto incomodado há alguns anos: "O problema é que não conseguimos entender como saímos daqui (referindo-se ao Novo Testamento) e chegamos a isso aqui (teologia ou doutrina da Igreja atual)." Naquela ocasião, eu respondia que o que faltava era considerar a Patrística. Hoje, eu seria até um pouco mais específico. O problema é que até consideramos as decisões conciliares, mas sem estudar os argumentos e movimentos exegéticos que sustentavam tais decisões |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|