Acho sempre incômodo que as pessoas leem essa afirmação de Jesus como se ele estivesse tranquilo dando uma aula sobre política. "Ali, Jesus definiu a separação entre Igreja e Estado!" Bom, meu problema não é doutrina, mas o uso do texto para se definir a doutrina. Será que não seria bom ler com mais calma? Será mesmo que, naquela enrascada armada pelos opositores, Jesus estava estabelecendo uma doutrina para a Igreja para todo o sempre?
Eu tendo a ler de outra forma. Em Mateus 21.23-27, encontramos Jesus fazendo uma pergunta difícil para seus opositores. A pergunta é difícil porque tanto o "sim" quanto o "não" comprometeria quem respondesse. Eles, então, não respondem. Não dão "sim". Não dão "não". Agora, em Mateus 22.15-22, quem está contra a parede é Jesus. Se ele responde "sim" (deve-se pagar!), incomoda os judeus revoltosos, que se enraiveceriam com essa subserviência a Roma. Se ele responde "não", enraivece os romanos e partidários de Roma. Em qualquer dos casos, gera tumultos difíceis de se gerenciar. Mas Jesus não cala o "sim" nem o "não". Pelo contrário, ele dá uma resposta que pode ser entendida como "sim" ou como "não". Ou seja, vence seus oponentes não pela falta de resposta, mas por um excesso de (sentido em sua) resposta. Como pode isso? O fato é que "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" podia ser escutado de duas formas: 1) "Pagai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." Isso soa como um "sim"! Fica a questão: Nesse caso, o que pagamos ou damos a Deus? 2) "Devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." Nesse caso, quem queria dar fim à dominação romana podia entender que deviam devolver a César/Roma o dinheiro romano, que nem deveria mesmo estar circulando ali. Ao mesmo tempo, devolveriam a Deus o que é de Deus, a Terra de Israel. Soa como um "não" bem radical. O verbo grego utilizado, ἀποδίδωμι, permite certamente esse duplo entendimento. E é notável que, na pergunta sobre a licitude do pagamento, o verbo utilizado pelos oponentes de Jesus é diferente! O termo não aparece por acaso na fala de Jesus. Essa leitura - com alguma diferença - está bem apresentada no seguinte artigo de Uwe Wegner: http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/1059/1016 É de graça. Leia e aproveite o que julgar aproveitável.
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O episódio em que Jesus vai ao Tanque de Betesda e, ali, cura um paralítico nos reserva algumas questões interessantes. A primeira diz respeito a um problema na transmissão manuscrita do texto. Em alguns manuscritos, há um anjo que desce dos céus de vez em quando e agita as águas do tanque. Na minha infância, eu ficava encucado com a cena. Por que Deus faria aquilo? Parecia uma brincadeira de mau gosto. Pois então, Nestle-Aland entende que se trata de um acréscimo, que tentaria explicar o agitar da água no tanque. Mas, se não havia anjo, havia mesmo agitação da água? Sim. Pesquisas arqueológicas demonstraram muito bem que o Tanque de Betesda tinha uma estrutura bem comum em tanques judaicos, sendo, na verdade, duplo. Havia um tanque superior e um inferior. O inferior era destinado aos banhos. O superior funcionava como reservatório. De tempos em tempos, abriam-se comportas e água caía do superior para o inferior. Obviamente, agitava-se a água! É possível que copistas não habituados a esse tipo de estrutura tenham estranhado a agitação da água e deduzido que haveria de ser algo miraculoso.
Pois bem, mas o assunto desta postagem deveria ser outro. O caso é que há quem afirme que o tal Tanque de Betesda teria sido, naquele tempo, não uma piscina judaica, mas uma espécie de santuário do deus Esculápio, associado a curas milagrosas. Esculápio é o nome romano. O nome grego do moço é Asclépio. Escolha o que preferir. (E, sim, o símbolo atual usado para a Medicina vem dele mesmo!) Em todo caso, a cena teria um ingrediente a mais. Por que Jesus teria ido até lá e curado somente um homem? Porque seria um judeu procurando cura no deus errado. Jesus, então, teria entrado naquele ambiente cheio de não-judeus, encontrado o judeu desgarrado, e resolvido o problema, para que ele saísse de lá. De onde tiraram isso? A interpretação parece ter surgido pela descoberta de estatuetas e oferendas relacionadas com o deus greco-romano bem na área do Tanque. Ora, Jerusalém estava sob domínio romano. Era uma cidade absorvida pela cultura romana e helenística como qualquer outra, dizem. Ótimo! Mas... Desde quando tive conhecimento dessa interpretação pela primeira vez, em 2014, achei que havia algo mal explicado. Contrariando amigos e alunos (Curso de Estudos Judaicos do eteacherbiblical.com. Naquele tempo, eu tinha internet decente para aulas online.) que curtiam a ideia, eu argumentava com dois recursos: 1) Fontes textuais: Flávio Josefo e Fílon de Alexandria narram fatos que nos fazem entender que a relação dos judeus com Jerusalém era diferente. Nem tudo que era tolerado em outras cidades na Judeia e Galileia seria aceito na cidade do Templo [Referi-me brevemente a isso em um artigo publicado no ano passado sobre Cesareia Marítima. Querendo, procure AQUI], muito menos bem ali ao lado, como o Tanque de Betesda. Se seria tranquilo um "santuário" dedicado a Esculápio em qualquer cidade romana das redondezas, o mesmo não se pode dizer sobre Jerusalém. Seria um ensejo para revoltas vigorosas! 2) Interpretação de dados arqueológicos: Em 2014, não tive acesso a dados completamente claros sobre as escavações do Tanque de Betesda, mas sugeria que seria plausível que as tais estatuetas e peças votivas encontradas ali datassem do século II d.C.. Seriam oriundas do período em que os judeus haviam sido expulsos da cidade, que deixou de se chamar Jerusalém, para receber o nome de Aelia Capitolina. Nesse tempo, sim, Jerusalém (que nem era Jerusalém) foi uma cidade romana como outra qualquer. Faria muito mais sentido. Seria muito mais coerente com o que revelam as fontes textuais. Convenci alguns. Outros tinham gostado tanto do drama judeu-gentílico da cena, que não arredaram pé. Outros, ainda, ficaram com pena de abandonar a interpretação: "Ah, mas é uma possibilidade, não é?" Enfim, lembrei desse assunto hoje por ter encontrado o artigo excelente de um especialista que confirma minha leitura: GIBSON, S. The Excavations at the Bethesda Pool in Jerusalem: Preliminary Report on a Project of Stratigraphic and Structural Analysis. In: F. Bouwen (ed.) Sainte-Anne de Jérusalem. La Piscine Probatiquen de Jésus à Saladin. Jerusalem: Saint Anne, 2011. p. 17-44. Se você procurar bem, vai descobrir que o texto está disponível de graça no Academia.edu. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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