Natal – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS ASSIM COMO MARIA: REFLEXÃO SOBRE O NASCIMENTO DE UM ÚNICO QUE MUDA INCONTÁVEIS João 1.1-18 Cesar Motta Rios “Feliz Natal!” Mas o que é um feliz Natal? Ter comida à vontade e bebida é possível em outros dias, vários outros dias. Ter a família reunida também. Um Natal feliz, um Natal bem vivido é aquele em que conhecemos a Cristo, refletimos sobre Cristo. E isso é mais que conhecer uma história. É conhecer o que ele faz por nós. Mas, claro, no Natal, geralmente, imaginamos que faz falta a narrativa do nascimento de Jesus em Belém. “Com Maria hoje eu quero / aguardar milagre vero / Entra no meu coração / Faze nele habitação”. Há uma singeleza nisso: Rememorar a cena do bebê na manjedoura e trazer essa realidade do nascimento para minha experiência interior. João, por outro lado, tem uma perspectiva um pouco diferente. Ele não nos leva para a simples cena do presépio, mas para o mistério de antes do tempo, que marca com a expressão “no princípio”, a mesma de Gênesis 1.1. João quer falar de antes de tudo, porque quer deixar muito claro que aquele menino que nasceu e cresceu, foi morto e sepultado, para ressuscitar em seguida não era gente comum simplesmente. O nome de Jesus aparece só no final desse trecho que lemos hoje (1.17), mas o texto todo nos encaminha para que, quando lermos esse nome, já tenhamos entendido que ele é muito maior do que se podia imaginar. Essa pessoa simples que pisou no mundo foi responsável por este mesmo mundo ter sido criado. O bebê indefeso que se manteve forte mamando nos seios de uma jovem bem-aventurada da região simples e montanhosa da Galileia era o responsável, bem antes de ser bebê, pela criação daquelas montanhas, de todas as montanhas, e também da própria biologia que possibilita a amamentação. O evangelista parece gritar para a gente entender: “É Deus! É Deus que entrou no mundo! Eu sei que é absurdo, mas é isso!” E nós escutamos. E João quer contar mais: Ele venceu! Não se desanimem. Sim, em outro trecho o “eu venci o mundo” (João 16.33) ecoará da boca do próprio Jesus. Aqui, é o narrador que garante “a luz brilha na escuridão, e a escuridão não prevalece contra ela” (João 1.5). Não foi derrota a crucificação de Jesus pelos nossos pecados. Estamos falando de crucificação no Natal? No “Natal” de João, tudo já vem antecipado ou assinalado, pelo menos. Aquele Cristo vencedor do Apocalipse (Ap 19.11ss), que vem como cavaleiro, com o manto encharcado de sangue, é louvado aqui com essa afirmação da vitória da luz. Nesse “Natal” de João, está o Gênesis e está o Apocalipse, está o alpha e o ômega, está tudo que vemos e o que não vemos, tudo convergindo num só ponto. Tem algo de tão grandioso nessa introdução de João, tão diferente daquilo que vemos e conhecemos, que pode parecer assustador e muito distante de nós. Mas não nos enganemos: o Natal é sobre nós, como eu disse no início. Para deixar mais claro, preciso enfatizar um versículo: “A Palavra se fez carne e habitou (fez sua tenda) entre nós, cheio de graça e de verdade” (1.14). Deus se encarnou por amar gente de carne e osso. Isso precisa ficar bem claro, porque tem vez que nós queremos fazer um movimento contrário ao de Deus, quando pensamos que servir a Deus é nos separarmos da vida na carne, do cotidiano humano, como se a vida linda e agradável para Deus fosse somente aquela parte da vida que vivemos na igreja, no culto. Mas Deus diz outra coisa: Ele não se encarna no Templo, mas no meio do povo, para viver com o povo e amar o povo no seu dia a dia, falando coisa do dia a dia em seu ensino, inclusive. Deus é Deus da segunda-feira, da terça, da quarta... O que isso tem de consequência prática é que não tem como se pensar que a religião pode ficar encaixotada como uma área da vida. Cristo é para ser vivido na integralidade de nosso tempo, na integralidade de nossas ações. A encarnação do Filho diz isso para nós. E é uma notícia de grande alegria! Você não está sozinho e vem encontrar Deus aqui no fim de semana ou no momento de oração somente. Você vive em Cristo. Por isso, no Natal, lembro que o calendário litúrgico (Advento, Natal, Tempo da Igreja, Quaresma...) não é só o que importa para Deus. Ele se importa com o seu calendário civil também: o dia do seu passeio, da sua viagem, da confraternização; o dia da cirurgia, do nascimento de um filho ou neta, do divórcio e da reconciliação; o dia do vencimento do boleto, da mesa farta ou da falta de pão. Alguém pensa que Deus é grande demais para se importar com essas pequenezas? É um mistério, mas Ele se fez pequeno (em Cristo) justamente por se importar, para cuidar de perto dos seus pequeninos. Deus se aproximou. Assim entendido, o Natal não é mera lembrança ou uma época com ares diferentes, um tempo repleto de afeto. O Natal é, isso sim, o anúncio da presença da Verdade viva, que entra em nossa vida e faz tudo novo. Faz tudo novo mesmo! Por isso, com Maria, hoje, eu também quero estar ciente de uma notícia espantosa não só sobre Deus, mas também sobre ela e sobre nós. Você já deve ter ouvido dizer que, quando nasce o primeiro filho de um casal, nasce também, de certa forma, um pai e uma mãe. Esses dois que formavam a família sozinhos são mudados de repente. Acontece isso no Natal. O nascimento de Jesus fez com que essa simples moça judia, que aparentemente não representava nada para o mundo da época, pudesse ser chamada de mãe de Deus. Por incrível que pareça, ela entrou para a família do Criador, não por um esforço próprio, mas pelo movimento do próprio Deus. Nós, quando recebemos a Cristo, porque ele veio ao mundo, somos feitos filhos de Deus. Por incrível que pareça, também entramos para a família do Criador. Fomos gerados de novo. Não por esforço próprio, mas pelo movimento do próprio Deus. O Natal é sobre isso! E, agora, o Pai continua perto de sua amada família, dizendo no dia de Natal, na sexta-feira da Paixão, na Páscoa, nos domingos todos e em qualquer dia comum, de calmaria ou agitação: Filho, filha, lembre-se de quem você é! Deus Filho se fez carne para que você, de carne e osso, pudesse ser da família eterna, para que pudesse ser o que é! Seja. Só seja. Amém.
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3º Domingo no Advento – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS E QUANDO A DÚVIDA QUER ANDAR COM A FÉ? Mateus 11.2-15 Cesar Motta Rios Conheço pessoas que sempre creram tranquilamente, mas que, um dia, na juventude, foram para a universidade e, ao encontrarem um mundo novo de informações e dilemas, tiveram suas dúvidas sobre Deus, sobre Cristo, sobre a Igreja. Conheço pessoas que tiveram dúvidas semelhantes quando, envolvendo-se mais de perto com a administração da Igreja em suas paróquias, se desiludiram sobre algumas coisas. Conheço outras pessoas que se escandalizaram com pecados grosseiros de líderes espirituais, padres ou pastores, e começaram a questionar se, assim como aquelas pessoas, também a mensagem que elas pregavam não seria enganosa. Conheço também gente que enfrentou a perda de alguém muito querido antes do tempo (entenda-se, com a pessoa parecendo que poderia viver muito mais!) e que começou a duvidar da presença ou da bondade de Deus. O mesmo aconteceu com pessoas que enfrentaram doenças horríveis que apareceram de forma repentina. Em meio a uma vida de fé, algumas vezes, para algumas pessoas, surge a dúvida. Bom seria que todos fôssemos grandes e perfeitos heróis da fé, mas o fato é que há dúvidas em muitos de nós, porque a fé não vem acompanhada de explicação sobre tudo. E o que fazemos a esse respeito? Nós nos descontrolamos diante das pessoas em dúvida? Gritamos a verdade mais alto simplesmente? Repudiamos essas pessoas que ousam ter dúvidas e explicitá-las? (Certamente, há muitos que enfrentam dúvidas calados.) O que fazemos quando a dúvida quer andar com a fé? É agora que vamos ao texto lido. João Batista está preso e envia discípulos para perguntarem a Jesus: “Você é aquele que estava para vir ou devemos esperar outro?” Não teria nada demais nisso, se não tivéssemos visto João Batista em cena anteriormente. Esse mesmo João, que, agora, pergunta se deve esperar por outro, havia dito a Jesus: “Eu não sou digno de te batizar!” (Mt 3.14). Esse mesmo João, tinha visto o Espírito descer do céu como pomba e pousar sobre Jesus. E Deus tinha dito a ele que isso aconteceria quando batizasse aquele que viria para batizar com o Espírito Santo (João 1.32-34). Esse mesmo João Batista, que, agora, pergunta com ajuda dos seus discípulos, tinha antes apontado para Jesus e afirmado sem hesitação: “Eis o Cordeiro de Deus!” (João 1.36). O contraste entre a convicção inabalável e a pergunta da incerteza é gritante. É tão forte que há quem diga que não pode ser assim: “Ou um é o João verdadeiro ou o outro. Os evangelistas devem ter inventado um dos dois.” Mas essa saída é totalmente desnecessária. Não é que um João Batista ou outro seja inventado. O problema é justamente o contrário: o João Batista parece ser muito convicto em um momento e vacila em outro no texto bíblico, justamente porque o texto bíblico registrou momentos de um ser humano real. E nós, como humanos que somos, mesmo não tendo acesso à mente do João Batista, conseguiríamos imaginar diversas coisas que podem ter passado ali dentro: Ele está preso. As coisas não tinham saído como ele esperava. Está demorando esse Messias a resolver tudo. A alegria eterna ainda não chegou. Ainda há tristeza e gemido! (Is 35.10) “Será que errei? Será que imaginei coisas.” Pode ser isso. Pode ser, também, que ele tenha se deprimido profundamente na prisão e na iminência de sua morte; e sabemos bem que a mente pode não funcionar muito bem quando anda por esses caminhos de sombras. O fato é: João Batista é gente, e é gente que tem dúvida, mesmo em meio a uma vida de fé. E a pergunta é: O que Jesus faz com isso? Jesus responde mansamente. Jesus mostra o que precisa mostrar para acalmar o coração de João Batista, apontando para as Escrituras (Isaías 61), que o profeta rústico conhecia bem. Ele manda os discípulos de João contarem a ele a resposta. Quando eles vão embora, Jesus vai falar de João pelas costas. E o que fala desse João que hesitou? Ele tece um elogio. É o maior dentre todos os nascidos de mulher. É maior que Moisés! É maior que Abraão! Não tem herói da fé maior que ele. A atitude de Jesus deve iluminar também nosso entendimento sobre o que fazer diante de dúvidas que passeiam pelas mentes de gente da Igreja hoje. Jesus não empurra para longe o hesitante. Jesus não tem rancor por uma dúvida tão infeliz. Jesus acolhe e comunica a verdade. A mensagem para hoje é simples e pode, sim, ser comunicada com poucas palavras: A dúvida é um problema. A dúvida incomoda. A dúvida pode ofender outras pessoas. Mas o amor de Jesus Cristo por cada um é maior que as dúvidas que possam aparecer. Por isso, ele vem ao mundo e vai para a cruz. Não por uma leve vontade de te ajudar. É por um amor eterno decidido a te salvar e perdoar. Se nós temos dúvidas, ele não tem. Família de fé, se alguém tem dúvida, então, o melhor conselho é imitar o João Batista em dúvida: Vá a Cristo. Não se afaste dele. Ele quer alimentar sua fé. E não quer te desprezar. E a Igreja tem a missão de agir como Cristo nisso também. No fim da caminhada, mesmo tendo tido tantos momentos vergonhosos de dúvidas na vida terrena, poderemos escutar: No Reino dos Céus, você é maior que o grande João Batista. Bem-aventurado! Bem-aventurada! Porque Jesus não foi motivo de tropeço para você, mas salvação e vida. Que Cristo habite ricamente em seu coração, e que seus pensamentos sejam guardados por ele, hoje e sempre. Amém. Conselho Distrital (Distrito Concórdia) – Dezembro de 2020 Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS JOÃO BATISTA E A IGREJA HOJE: BREVE REFLEXÃO Cesar Motta Rios João Batista era uma pessoa estranha, fora dos padrões. Ele sabe que é atípico, fora de série. Reconhece a si mesmo como aquele anunciado por Isaías: “Eu sou “a voz do que clama no deserto: Endireitem o caminho do Senhor”, como disse o profeta Isaías.” (João 1.23). Diferente de Mateus, Marcos e Lucas, que mencionam esse versículo como comentário próprio, é o evangelista João que anota que essas palavras foram ditas pelo próprio João Batista. Faz diferença? Faz sim. É importante que João Batista não só seja especial, mas saiba que é especial, saiba que tem um lugar numa história maior. Quando me lembro de João Batista, costumo me lembrar de um quadro incômodo. Não que eu goste da representação do profeta, que foi pintada perto do início da Reforma, na década de 1510. João Batista aparece bem diferente da imagem de homem rude e rústico que teríamos dele. É quase andrógino. É homem, mas tem traços femininos, braços tenros, cabelos sedosos, olhar meigo, com sorriso de Mona Lisa (o que não é tão estranho, já que o quadro é também de Da Vinci). Mas, de alguma forma, é uma boa representação de João Batista. Não pela imagem da pessoa, mas pelo gesto: ele aponta, e aponta para uma cruz. Isso é assim, convém dizer, na versão final do quadro; e, segundo dizem especialistas, a cruz foi acrescida posteriormente e não por Da Vinci. Se é certo, então, que alguém a acrescentou, a meu ver, salvou o quadro do ponto de vista teológico, porque o que o Batista fez foi justamente isso, apontar para Jesus como aquele que se sacrifica: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1.29). Essa frase reconhece o Jesus como vítima sacrificial, ainda que, quando o disse, João Batista não soubesse exatamente o modo da morte de Jesus. Em seguida, o grande João Batista vai sair de cena. Ele cumpre seu papel, mas sabe que ele mesmo não é o objetivo da história toda: “Convém que ele cresça e que eu diminua!” (João 3.30). Ele sabe das coisas. E a Igreja hoje? Sim, ela também prepara o caminho. Agora, para a segunda vinda. Ela prepara caminho sendo, de certa forma, caminho para o encontro entre as pessoas e Deus, levando toda a Palavra (Lei e Evangelho), batizando e partilhando a Santa Ceia. Assim, as pessoas chegam ao arrependimento e o perdão chega até elas. Agora, precisamos reconhecer uma diferença (entre outras). João Batista era solitário. Formou-se um grupo ao seu redor, mas era um líder solitário, movido pelo Espírito. Nós somos muitos e precisamos agir em unidade (não necessariamente igualdade absoluta). Isso significa que precisamos dialogar e chegar a acordos. Gastamos e precisamos gastar tempo com isso. Mas sempre sabendo que isso não é o fim, o propósito em si, isto é, que a instituição em si não é o propósito final. Precisamos repetir o gesto de João Batista, apontar para a cruz, e saber que esse é o propósito, que é a isso que se dirige todo esforço. Para bem fazer isso, devemos ter ciência de quem somos. João Batista sabia ser aquele anunciado por Isaías. Ele sabia ter um lugar na história mais importante de todas. E nós precisamos saber que nós somos... não uma denominação simplesmente, não uma tradição com uns poucos séculos simplesmente, não um tanto de pessoas tentando sobreviver e fazer continuar existindo uma religião. Somos o Corpo de Cristo na Terra. Lembrando disso, podemos pensar melhor sobre nossas ações e decisões, sabendo que se trata de algo seríssimo e de algo cuidado por Deus.
Sim, é algo seríssimo e precisamos também ter a seriedade para enfrentar desdobramentos e consequências. Lembro do quadro A decapitação de João Batista, de Caravaggio. Não seria bom, talvez, terminar com essa imagem, mas quero fazer isso para lembrar que sucesso no ministério e êxito de congregações nem sempre são o que se espera que sejam. 1º Domingo no Advento – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS AINDA FALAREMOS DE AMOR? Romanos 13.8-14, Isaías 2.1-5 Cesar Motta Rios Ao longo do século XX, o mundo testemunhou diversos episódios sangrentos na Irlanda por um conflito que era político e cultural, mas também religioso. Protestantes e Católicos estavam em lados opostos, e alguns não viam como algo completamente estranho usar armas ou bombas para impor sua visão. Muito sangue foi derramado pelas ruas de Dublin, no sul, e também na Irlanda do Norte. Famílias foram destroçadas. Em certo caso, pessoas foram a um mercado pensando que voltariam para casa com alimentos em suas sacolas, mas foram explodidas. Homens, mulheres e crianças perderam suas vidas. No começo dos anos 1980, a banda irlandesa U2 começa a se envolver com essa questão horrenda e vergonhosa. Em 1982, eles apresentam ao mundo a música Sunday Bloody Sunday. Como a Palavra de Deus estava em suas mentes pelo convívio que com ela tiveram ao longo dos anos, trazem para seus versos palavras emprestadas das Escrituras. Diante da consternação, repetem a pergunta do salmista inquieto: “Até quando?”. Adiante, lembram palavras do Apocalipse: “Eu vou enxugar suas lágrimas!”. A pergunta “até quando?” faz mais sentido quando nós cremos que há um “quando” a se esperar, um momento em que as lágrimas serão realmente enxugadas. Isso me lembra um primeiro aspecto do Advento, tempo litúrgico que vivemos agora. Nesses quatro finais de semana antes do Natal, nós não olhamos somente para a primeira vinda de Jesus na manjedoura, mas aguardamos também sua segunda vinda, que tudo resolve. E, se estamos impacientes diante das injustiças, podemos também perguntar: “Até quando?” E podemos clamar como os primeiros cristãos: “Maranata. Vem, Senhor Jesus!”. Mas há algo mais no Advento. Nós somos chamados a vigiar. É um tempo também de preparação. É tempo de lembrar que ainda há uma luta em andamento. Nessa mesma música do U2, escrita para lutar por paz, há dois versos muito oportunos nesse sentido: “A verdadeira batalha começou / Requerer a vitória que Jesus conquistou”. A verdadeira batalha, obviamente, não é a que vinham fazendo na Irlanda, não é aquela que a banda critica. Não é levantar armas contra os outros que pensam diferente. Não é vingança sobre vingança. É justamente o contrário. É uma batalha para ver feita a vontade de Deus. Como nas palavras de Isaías: ver espadas sendo usadas para arar a terra e lanças sendo adaptadas como foices, para o trabalho no campo. Instrumentos de morte passando a instrumentos para a produção de alimentos, para a manutenção da vida. Isso, Isaías diz que vai acontecer um dia. Mas não é a nossa realidade, de fato. Por outro lado, a partir do anúncio desse desfecho, o profeta convoca o seu povo no versículo seguinte: “Venham, ó casa de Jacó, e andemos na luz do Senhor.” A realidade perfeita não é para agora, mas ela nos leva a caminhar com essa nova referência e esse novo objetivo. “Andar na luz” - diz Isaías. Já Paulo, no texto que lemos, diz que devemos deixar as obras das trevas e nos revestir das armas da luz. A batalha começou, segundo o U2. Paulo concorda. (Aliás, é o U2 que concorda com Paulo, claro.) Conforme o versículo 11, devemos estar atentos a essa batalha justamente por causa da proximidade da nossa salvação. O Advento está realmente aí para nos lembrar disso. Então, não é mesmo só tempo de festejar? Não. Há uma guerra silenciosa pela prática do amor, pela vida, pela paz. E como se faz isso? O apóstolo havia mostrado isso nos versículos anteriores: o amor é o cumprimento da Lei. E essa é a vontade de Deus. Então, vivam com amor e pronto. Mas viver com amor não é olhar para o outro e ter coraçõezinhos flutuando. Isso é sentimentalismo. Viver com amor é um jeito de viver com ação (lembramos de João: não amemos de palavras!) em favor do próximo, de qualquer pessoa, toda e qualquer pessoa. O amor não pratica o mal contra ninguém. E isso é cumprir os mandamentos. Quem ama não agride o corpo ou a honra da outra pessoa. Quem ama não descumpre a sua promessa de fidelidade. Quem ama não usa outra pessoa como objeto a ser usado. Quem ama promove a vida e o bem-estar não só de sua casa, mas de todos que encontra pelo caminho. Tudo bem. É um discurso bonito isso. “Mas, ainda vamos mesmo falar de amor? Já falamos tanto.” Alguém que veio a muitos cultos pode pensar assim. Mas outra pessoa pode ser mais ácida em sua pergunta: “Ainda vamos mesmo falar de amor, mesmo vendo do que nós cristãos somos capazes? Mesmo com essas histórias de armas e bombas levantadas contra quem pensa diferente? Mesmo com nossas brigas e desentendimentos entre grupos cristãos, dentro de sínodos e comunidades? Podemos falar de amor?” Não só podemos. Precisamos. Não falar de amor para alertar os de fora: “Ei, vocês precisam amar!” Não. Mas para nós mesmos acordarmos de nosso sono, para nos lembrarmos dessa tarefa, dessa batalha em andamento, enquanto é tempo. Alguém mais entendido de teologia poderá dizer: “Mas Paulo, o apóstolo, sabe que nós não conseguimos amar os outros. Ele só escreveu isso para fazer a gente lembrar que é pecador e pedir perdão.” Aí eu preciso te contar que não, não é assim. A Carta aos Romanos tem uma organização muito interessante e clara. Na primeira parte, Paulo mostra que todos são pecadores. Não sobra um, seja judeu ou grego, para dizer que é totalmente correto. É nesse começo da carta que aparece o famoso versículo: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Na segunda parte da carta, Paulo mostra a boa notícia de que, mesmo sendo imperfeitos e pecadores, Deus nos acolhe e perdoa por causa do sacrifício de Jesus. É aqui, nessa segunda parte, que está a clara afirmação de que Cristo morreu para perdoar pecadores. A carta contava a seus leitores de Roma e conta a nós que somos perdoados pelo mérito de Cristo de todo pecado, por mais grave que pareça. Já na terceira parte, que é onde encontramos esse trecho sobre o amar o próximo como cumprimento da lei, o assunto é um terceiro passo: 1) Vocês são pecadores mesmo. 2) Vocês são perdoados mesmo. 3) Agora, perdoados e sem se preocuparem com merecimento próprio (porque já têm o merecimento de Cristo), vocês querem viver de acordo com a vontade desse que os salvou, não é? Sim. Então, aqui está uma instrução para fazer isso. E o cerne dessa instrução é simplesmente: Amem. E, se fizerem algo para alguém sem amor, cuidado. Não é por aí. Essa conversa parece coisa de pura utopia? Fica parecendo que não tem utilidade na prática? Pareceria ser assim sim, se a disposição de amar, o esforço para amar fosse válido só se fôssemos capazes de amar com perfeição e em todo tempo. Mas você percebe a inconsistência nessa ideia? Seria o mesmo que dizer que só posso fazer bolo em casa se for capaz de fazer um bolo perfeito como o de um confeiteiro profissional. Não é assim. Seria utopia também, se aquele que veio numa manjedoura e tanto nos amou nos tivesse deixado sozinhos até a sua segunda vinda. Mas, no Advento, queremos lembrar que aquele que veio e virá também vem. Ele vem a nós pela Palavra e pela Santa Ceia de modo especial; e, assim, ele nos fortalece, nos dá a vitória que conquistou, e nos ajuda a vivermos o nosso Batismo, “revestidos do Senhor Jesus Cristo”. Então, queremos e podemos dizer não aos atos terroristas por motivos políticos ou religiosos. Queremos e podemos dizer não ao pequeno terrorismo cotidiano das opressões psicológicas em nossos relacionamentos. Dizer não a toda forma de agressão. Queremos, enfim, dizer não a toda prática do mal, dizendo sim à radicalidade de amar o próximo como a si mesmo, por mais absurdo que isso pareça. Família de fé, há uma imensa felicidade para ser vivida por causa de Cristo no Advento. E há também algo a ser vivido com muita seriedade. Queremos estar preparados, como diz Jesus (Mt 24.44), sabendo que, agora, antes de sua volta, permanecem a fé, a esperança e o amor. Estes três. Porém, o maior deles é o amor (1 Co 13.13). Amém. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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