11º Domingo após Pentecostes – 2021
Missão Luterana em Miguel Pereira, RJ NO FILHO, O FIM DE TODA ORFANDADE João 6.35-51 Cesar Motta Rios Mircea Eliade foi um dos maiores historiadores das religiões do século XX. Em seu mais conhecido livro, Tratado de História das Religiões, lembro de ter lido com atenção e surpresa um trecho em que conta o seguinte: Em certos povos africanos, aparentemente, havia um mero politeísmo sem uma divindade única se destacando como superior. Mas, se você conversava com os detentores da tradição mais antiga desses povos, aquelas pessoas que ocupavam lugar tido como sacerdotal ou coisa parecida, ficava sabendo de algo mais: Eles sabiam de um deus do céu, que teria criado tudo, mas que, após a criação, teria dado as costas para os seres humanos. Não queria mais saber deles e os teria deixado sós. Eu vejo nessa ideia sobre Deus um sentimento de solidão ou, mais que isso, de orfandade – que é o termo para a condição de órfão. Mas, além de ser triste essa noção religiosa, ela carrega um traço de verdade. Após a expulsão do Éden, o ser humano está afastado de Deus. E esse afastamento vai se ampliando cada vez mais. O que não sabiam esses líderes religiosos africanos é que o Deus verdadeiro não tinha aberto mão do ser humano definitivamente, mas trabalhava para que o distanciamento se desfizesse. Não foi com exultação que disse: “O meu Espírito não permanecerá para sempre no ser humano, visto que é carne” (Gn 6.3). Havia um motivo. Ler esse texto no dia dos pais faz com que se ressaltem alguns detalhes; e ajudam a pensar essa questão do Deus afastado. A noção de paternidade está ali de forma muito significativa. Jesus diz claramente que é o Filho. Diz claramente que não está só em sua missão, mas que faz a vontade do Pai. E a vontade do Pai é que essa família cresça. Os que vierem a Jesus serão acolhidos. Não serão jogados fora. Não serão tratados com indiferença. Nem a morte será permitida como ponto de separação. Jesus insiste e torna a insistir nesse pequeno trecho que ressuscitará quem a ele se apegar, e que essas pessoas terão vida eterna. Não haverá um ponto final para essa nova família. Os religiosos se perturbam. Não entendem. Não podem concordar. Esse Jesus fala de um Pai diferente. Fala de ter descido do céu. Mas é filho de José – diziam eles. Seu pai é carpinteiro e não o Criador de tudo. Esse erro de compreensão nos faz lembrar de algo verdadeiro. Enquanto Jesus fala de seu Pai, do Pai celeste, somos lembrados (curiosamente, pelos que não o entendem) de que ele também sabe o que é a figura paterna humana. Ele experimentou ter um pai humano que o criava junto com Maria, e, ao que parece, experimentou também perder esse pai enquanto ainda era relativamente jovem, pelo menos. Nada sabemos dessa despedida de José, que morre antes do ministério de Jesus começar. Mas ela aconteceu. Jesus sabe do desentendimento desse grupo de judeus, e torna a falar de seu Pai verdadeiro. E, justamente, as pessoas permaneceriam no desentendimento até que fossem trazidas, atraídas por esse Pai do Céu até ele mesmo, até o Cristo. Ele revela, assim, que o Deus Criador realmente não virou as costas. Pelo contrário, Ele se importa com as pessoas e as atrai para aquele que é o Caminho, para aquele que as reúne como seus filhos e filhas, pela adoção. Ainda na parte final do nosso trecho, temos uma contraposição muito preciosa: “Os vossos pais comeram no deserto o maná e morreram” – diz Jesus. Obviamente, são “pais” num sentido mais amplo, são os ascendentes daquelas pessoas. Mas isso lembra que, no âmbito meramente humano, há uma verdadeira e inevitável precariedade, que torna as relações quebradiças. O tempo a tudo desgasta. Vínculos são desfeitos. Nossos pais perecem e, vendo isso, sabemos que nós também somos perecíveis. E nos vemos como órfãos neste planeta. Mas, diferente do que acontecera com os antigos pais, e diferente do que os pais segundo a carne puderam e podem oferecer, o que está disponível agora - diz Jesus - não é simplesmente um maná ou pão comum para nutrição temporal do corpo, mas o verdadeiro Pão do Céu, o verdadeiro Pão da vida, dádiva incomparável. “E o pão que darei é a minha carne em favor da vida do mundo” – Jesus deixa claro. E fica muito claro para quem tem ouvidos, e para quem é trazido pelo Pai para essa comunhão: o Filho foi enviado pelo Pai para colocar um ponto final em toda orfandade. A partir do que ele realiza na cruz do Calvário, não precisamos mais ver a Deus como lembrança fugidia. Não precisamos somente lamentar o fim de nossos relacionamentos desfeitos pela morte em um mundo que somente sobrevive a duras penas. Não precisamos ver a Deus de costas viradas para um mundo desolado. Muito pelo contrário, por causa de Cristo, o Todo-poderoso e justo Deus se torna para nós um Pai querido e amoroso, nosso pai, que nos recebe de braços abertos, nos acolhe e nos concede vida abundante em sua casa para todo o sempre. Não somos filhos exemplares. Na verdade, estávamos fugidos de casa. Mas, imperfeitos como somos, fomos feitos filhos amados pelo Deus de Amor, pelo amor de Deus. É um dia de muita satisfação, porque a notícia é boa: Não somos órfãos. Nós temos um Pai. E que Pai! Amém.
0 Comments
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|