3º Domingo na Quaresma – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A SURPREENDENTE E (TALVEZ) INCÔMODA DUPLA IGUALDADE DAS PESSOAS CRISTÃS Sl 85; Ez 33.7-20; 1Co 10.1-13; Lc 13.1-9 Cesar Motta Rios [O pregador está descalço durante o culto.] Em nome de Jesus de Nazaré, Senhor dos vivos e dos mortos, tanto dos primeiros que cultuaram entre essas paredes há um século, quanto dos últimos que haverão de sair por essas portas após o último culto celebrado aqui, em um futuro distante. Amém. Acontece um acidente com algumas vítimas fatais em uma grande cidade brasileira. Durante dois ou três dias, redes de televisão e portais de notícia online dedicam um bom tempo/espaço cobrindo esse acontecimento. As pessoas querem entender o motivo de acontecer aquilo, a maneira como aconteceu, as consequências. Como estamos em um tempo de destaque da ciência como mediadora da verdade, investe-se em perícias, explicações a partir da física, simulações computadorizadas etc. Mesmo com informações detalhadas, parte do público continua incomodada com questões que não são para a ciência responder. Por exemplo: Por que essas pessoas e não outras? Gente do povo é morta pelo governante ou uma torre cai e mata dezoito pessoas em Jerusalém. Incidentes assim também levantavam muitas questões no século I, geravam muito assunto. E o pessoal daquele tempo também se perguntava: Por que essas pessoas e não outras morreram? Alguns podiam pensar que as vítimas dessas tragédias eram mais culpadas. Eles e não outros teriam perecido justamente por algo de diferente neles mesmos: mais pecado, mais culpa, mais injustiça. “Até mereciam morrer desse jeito.” E, com um pensamento assim, as pessoas podiam se aquietar, crendo que estava tudo em ordem, e que elas eram diferentes daqueles que partiram. Mas Jesus nega essa interpretação dos fatos de modo bem direto. “De modo nenhum! Mas se vocês não se arrependerem, todos igualmente perecerão!” Todos! Do mesmo jeito! Sem diferença! E, aqui, preciso contar outra história. Vai parecer que esqueci do texto do Evangelho e que me perdi no sermão. Mas garanto que retornaremos logo às palavras de Jesus. Só precisamos de uma passada pelo Reino Unido. Acontece que um sujeito chamado Tony Saint escreveu algo bem interessante. Ele foi funcionário do serviço de imigração num aeroporto em Londres por 10 anos. Era daqueles oficiais que conversam com passageiros que chegam ao país para decidir se são suspeitos de quererem morar lá ou se são, como dizem, somente turistas. Ele definia, digamos assim, se a pessoa tinha a dignidade/confiabilidade suficiente para entrar no país. Depois de sair desse emprego, Tony escreveu um livro muito bem-humorado a partir de suas experiências. Nesse livro, conta que há um critério pouco conhecido para se definir sim ou não para o viajante: a observação dos sapatos. Diz que os viajantes do terceiro mundo que querem morar e trabalhar na Inglaterra ilegalmente, mas que fingem ser turistas bem tranquilos e experientes, têm um ponto cego, uma parte que não sabem trabalhar em sua simulação. Vestem roupas adequadas. Têm malas adequadas. Mas se esquecem dos sapatos. Então, haveria um curioso método de observar os sapatos de latino-americanos e africanos, por exemplo, para definir se são aptos ou não, se não realmente turistas ou não. Sapatos de tais e tais tipos entram. Gente calçando certos tipos fica de fora. Com essa imagem em mente, eu volto a Jesus. E volto à afirmação dele de que se não nos arrependermos, todos igualmente pereceremos. Imagino, então, Deus fazendo uma triagem como aquela. E nós tentamos mostrar a Ele pés bem calçados com boas obras, títulos, tradição familiar, experiências. Fazemos uma fila e cada um pensa que está bem calçado com sapato italiano de grife, com um scarpin de muito bom gosto ou com um tênis esportivo de última geração, e limpíssimo. Mas ao chegarmos a Deus, ele simplesmente olha para nossos pés e diz que o que pensamos ser mostra de dignidade não vale nada, na verdade. Estamos tão manchados pelo pecado que nada podemos mostrar de realmente digno. E Ele revela a cada pessoa um fato chocante: Você está descalço. Não tem dignidade alguma. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Todos estão igualmente descalços. Todos igualmente perecerão. Essa é a primeira igualdade das pessoas cristãs. Ninguém pode dizer que o outro merece perdição por ser pecador, porque todos somos assim. Mas a frase de Jesus esconde uma boa notícia. Sim! Porque, ao dizer que, se não nos arrependermos, pereceremos, entendemos que, se nos arrependermos, o fim da história será melhor. E, de fato, nós nos arrependemos! Nós reconhecemos que somos pecadores. Nós sabemos que não temos dignidade por nós mesmos diante de Deus e nos apegamos a Cristo, confiando no socorro dele. Então, voltamos à fila da imigração para o Reino de Deus. E nos apresentamos diante do Pai já sabendo e dizendo: Senhor, não temos dignidade alguma com a qual possamos calçar nossos pés. Estamos descalços e carentes de teu socorro. E Ele olha para nossos pés, mas não nos vê simplesmente descalços. Cada um de nós que se apega a Cristo passa diante dos olhos atentos do Criador. E Ele não vê nossos pés, mas vê os pés perfurados de Jesus Cristo. Exatamente isso. Porque todos nós fomos batizados e, conforme escreve o apóstolo aos Gálatas (3.26-27), nos revestimos de Cristo. Deus olha para nós e vê como nossa toda boa obra realizada por Jesus. Os méritos e a dignidade do próprio Filho de Deus são dados a todos nós de presente. Essa é a segunda igualdade das pessoas que se apegam a Cristo pela fé. Aos olhos de Deus, todos somos o que somos: pecadores e santos. Pecadores por nossa própria natureza. Santos por aquilo que Jesus fez por nós. Pés descalços e pés perfurados. Todos iguais. Um só Senhor. Todos iguais. Uma só fé. Todos iguais. Um só batismo. Uma só mesa de comunhão. Uma só comunidade. Pela graça de Deus e para a glória de Deus. Amém.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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