5º Domingo na Quaresma – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS A IGREJA E O RISCO DE PERDER O RUMO Sl 126; Is 43.16-20; Fp 3.4b-16; Lc 20.9-20 Cesar Motta Rios Quaresma é tempo de observar a caminhada de Jesus rumo à cruz e de aguardar a ressurreição, mas, lendo os textos selecionados para esse período, parece inegável que é também um tempo oportuno para uma observação de nós mesmos como seguidores de Jesus. É tempo de nos olharmos, enquanto Igreja de Cristo, no espelho, de forma sincera e atenta. No texto do Evangelho para hoje, vemos novamente o Mestre Jesus em um diálogo tenso com escribas e chefes dos sacerdotes. E ouvimos palavras duras de Jesus contra essas pessoas. Na Idade Média, facilmente os pregadores podiam usar textos como esse para expor em cores vivas o erro dos judeus e engradecer a Igreja por seu acerto e fidelidade ao Messias. Quem assistiu filmes como “Em nome de Deus” viu isso em cenas memoráveis e nada exageradas se considerada a pesquisa histórica disponível. Um religioso pregando de um púlpito um pouco mais alto que este esbraveja: “Quem é culpado pela morte de Jesus?” Em seguida, diante do silêncio piedoso de seus ouvintes, responde: “Os judeus! Foram os judeus!”. Inflamados por discursos como esse, não era raro que cristãos que se achavam o modelo de perfeição matassem uma família inteira de judeus por motivos banais e, em geral, imaginários. E a Igreja - não só como instituição, mas como organismo vivo formado por pessoas que creem - perdia diversas oportunidades, em diversas leituras dos Evangelhos, de repensar sua própria conduta e a compreensão que tinha de si mesma, enquanto atribuía aos outros toda a imperfeição, tudo que era criticável. Ao menos nesse âmbito popular, da mensagem que chegava ao povo, para perguntas como “onde está o erro?” ou “será que estamos mesmo sendo coerentes como filhos de Deus”, a resposta imediata seria: “Não se discute isso. Somos a Igreja e pronto. O erro está lá, nos judeus e nos turcos. Não aqui.” Fim de conversa. De fato, nós vemos pela história da Igreja e até em nossos dias como a natureza humana faz com que, como Igreja, percamos de vista o que Deus propõe e voltemos nossa atenção a coisas pequenas e interesses pessoais, sem valor eterno. Sem valor eterno, mas com um valor sedutor para nossa vaidade de apetite interminável. E temos dificuldades para reconhecermos isso. Até reconhecemos quando se trata de avaliar outros grupos cristãos. Aí somos sagazes observadores. Não temos os judeus e os turcos como receptáculos de toda nossa acusação, como no caso dos cristãos medievais, mas temos outros grupos evangélicos, ou católicos. E todos nós – homens, mulheres, jovens, idosos, pastores e não-pastores - deixamos de reavaliar de modo equilibrado muitas de nossas coisas, de nossas atitudes. E muitas delas são frequentemente mais importantes para a construção de um status, ao modo do mundo, do que para o serviço pautado pela Palavra, ao modo de Cristo. O apóstolo Paulo traz um exemplo oposto ao que fazemos com frequência. Ele lista tudo o que parecia ter valor para ele: Sua origem familiar de prestígio, sua boa formação e seu rigor religioso desde a mais tenra infância... Mas, tendo conhecimento de Cristo e de sua missão, desconsidera tudo. Aceita até perder tudo isso. Tira isso de seu foco de interesse. Agora, não perde mais tempo com essas aparências, mas se concentra num só objetivo, numa só meta. E, agora, o esforço que ele fazia para ir contra a Igreja faz agora para manter o foco em Cristo, conhecer a Cristo, viver em Cristo. Lembra-nos do “negar-se a si mesmo” colocado em prática. E o apóstolo entende que toda a Igreja deveria fazer o mesmo. Todas as pessoas sensatas, que agem como gente grande, deveriam ter o mesmo foco. Mas quantas vezes vemos a Igreja desviar os olhos de Cristo e, mesmo simulando uma defesa da causa de Cristo, valorizar exageradamente aquilo que Paulo diz ter perdido o valor? Quantas vezes a Igreja avalia as pessoas pela origem familiar, pela formação, pelo zelo religioso? Quantas vezes a Igreja olha para si como se fosse ela mesma, a Igreja, o foco, o cerne da coisa toda? Então, começa a supervalorizar aquilo que deveria ser somente instrumental ou a manipular o que cabe somente a Deus? Ela pensa ser dona da vinha. Sim. Mesmo tendo o Senhor da vinha representado em esculturas ou quadros, mesmo cantando seu nome em hinos e mencionando-o em suas orações, o modo como a Igreja trata de si mesma pode, algumas vezes, ser marcadamente arrogante. Arrogante por querer para si um papel que não lhe cabe. Somos Corpo de Cristo. Cabeça continua sendo o próprio Cristo. Somos uma vinha. Que maravilha! Que imagem linda! Mas somos vinha do Senhor. Ele é dono da Igreja e está nEle o objetivo da Igreja. E preciso acrescentar um parêntese mais prático aqui: vivemos essa realidade devidamente quando a oração faz parte da vida da Igreja. Não somente com orações bonitas preparadas para o culto, não somente em um kyrie entoado com sincera esperança, mas em todo tempo, em nossa vida diária. Reconhecemos quem é o Senhor da Igreja quando levamos a ele as inquietações da Igreja, suas dores e aflições. Mas se pensamos que a Igreja se resolve sozinha com nossa própria sagacidade, e se pensarmos que o objetivo da Igreja é a própria Igreja ou o interesse de uma ou outra pessoa, já perdemos o norte, já perdemos o mais importante. E andamos em círculo num eterno Êxodo, ocupados com pedras enormes de vaidades intermináveis, rancores desnecessários, interesses distantes do Reino. Mas se olharmos para Cristo, e se mantivermos nossos olhos fixos em Cristo como o alvo, o motivo e o objetivo de tudo que somos e fazemos, então não deixaremos de desfrutar do Novo que o Eterno Deus preparou para nós, e que anunciava já séculos antes de Cristo por meio de Isaías. Na verdade, a Igreja é coisa simples. Com Palavra, água, pão e um pouco de vinho, ela tem tudo que precisa para ver, em meio a um mundo árido de desesperança, jorrarem ribeiros da água pura do Evangelho trazendo o perdão, a paz e a reconciliação conquistadas por Jesus na cruz. De graça. Para todo mundo. A Igreja é um milagre. E, por isso, ela também é preciosa. Então, sim, nós precisamos, com os olhos fixos em Cristo, cuidar para que ela continue sendo o que precisa ser; para que continue sendo o que é para ser. E nós, como Igreja que somos, vamos ver e desfrutar desses ribeiros aqui, porque não estaremos ocupados revirando poças velhas de água insalubre, valorizando-as como se fossem oásis desejáveis. Gente de Deus, é Jesus quem diz ainda hoje: “Quem tiver sede venha a mim e beba.” Nós vamos a ele. Não vamos perder o rumo. Não vamos. Pela graça de Deus. Amém.
1 Comment
4/8/2019 07:17:10 pm
É isso..Perdão e reconciliação é com Jesus e não com Psicologias..
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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