Alice e um problema de cabimento
Cesar Motta Rios Alice olha um jardim convidativo pela fechadura de uma porta muito pequena. Ela quer ir até lá. Tem a chave, e sabe usá-la. Mas há um problema. Ela é grande demais para a passagem. Alice não cabe. Essa é uma das muitas cenas angustiantes da famosa história escrita pelo reverendo Lewis Carroll. E o que faz a história e suas cenas serem tão marcantes e motivarem leituras e releituras ao longo de mais de um século e meio talvez seja a possibilidade de identificação que os leitores encontram mesmo nesse texto estranho. Não é preciso ser uma garotinha loira para ver em Alice algo que lembra a si mesmo. O problema de não caber onde se deve ou se quer estar acompanha a humanidade por séculos a fio. O grande problema humano talvez nem esteja em perguntas como “de onde vim?” ou “pra onde vou?”, mas nesta exclamação: “Eu não caibo!” Nessa expressão resumida, cabem todos os dilemas de existir. Nela, cabem as frustrações do hiperativo depois de árduo esforço e também as tristes horas de desalento do vagaroso desanimado. Nela, cabe minha angustia e cabe a sua também. A menina que, em sonho delirante, não cabe na portinha escondida no fundo de um buraco quase sem fundo ainda é menos desproporcional que um camelo tentando passar pelo buraco de uma agulha. Pois é essa imagem insólita que Jesus de Nazaré usou certa vez para expressar a dificuldade que os ricos teriam para entrar no Reino de Deus. No fim das contas, para aqueles que não conseguem ser da forma perfeita de existência descrita por Jesus (e todo mundo se enquadra nesse grupo), forma que Jesus toma da Lei e dos Profetas, tentar entrar no Reino de Deus é tarefa tão impossível quanto a de um camelo que tem por missão passar pelo buraco de uma agulha. Alguns leitores se incomodam tanto com o absurdo da imagem que tentam substituir camelo por corda, ou dizer que, ali, agulha significa outra coisa. Nada disso! Não faz sentido querer amenizar a imagem dada por Jesus. Ela tem que ser exagerada mesmo. Alguém vai dizer: “Mas assim parece impossível caber no Reino de Deus?”. Justamente! É isso mesmo! Você não cabe. Eu não caibo. Precisamos reconhecer isso. E por que não cabemos? Dois, no mínimo, são os impeditivos. Ou melhor, duas são as possíveis reflexões a partir dessa pergunta. Não cabemos por levarmos junto toda a tralha da culpa por nossas imperfeições, nossas amarguras, nossos rancores, ódios, egoísmos etc. Não passamos com tanta bagagem errada. Não cabemos, também, porque nós nos enxergamos grandes demais para a pequenina passagem. Queremos ser maiores, queremos ter o controle, queremos ser o centro. Por isso, não admitimos que aquilo que nos faz parecer grandes não é verdadeiramente nosso. Falta-nos a consciência de João Batista, que sabia ser pequeno, mas ainda dizia “Importa que ele [Jesus] cresça e que eu diminua!”. Achamos que é grande aquilo que, na verdade, é desprezível. Agarramo-nos à mediocridade socialmente valorizada, como se fosse algo eternamente magnífico. E nos enganamos simulando uma grandeza que não é nossa e que nem está acessível a nenhum de nós. Importa que reconheçamos nossa pequenez, como João Batista, e que deixemos Cristo ser grande por nós. É claro que alguém pode ler a fala do batizador em um sentido bem mais imediatamente histórico. Ele, como líder de um grupo, sugeriria que seu papel naquele contexto histórico estava em declínio, enquanto o papel daquele novo líder deveria alcançar patamares maiores que os seus. Mas as falas dos sábios costumam dizer mais do que o imediatamente percebido. João, vestido de peles, tem uma sabedoria refinada sob a aparente rudeza. Mas nenhuma dessas duas reflexões nos ajudam a ir além da constatação do problema. Não caibo. Eu sei. Mas, não tem uma forma de caber? É aqui que convém lembrar do outro lado da história. Deus fez sua tenda entre nós. A Palavra se fez carne. Ele se fez caber no que parecia impossível. O infinito no finito. Algo sem cabimento para os pensadores daquele tempo. Paradoxal, no mínimo, para qualquer pensador de qualquer tempo. E esse movimento de caber Deus no humano, com o humano, dirigia-se a uma meta bem definida: fazer o ser humano caber no Reino de Deus. Veio Deus morrer para pagar pelos pecados da humanidade como forma de agraciar, de dar de graça ao ser humano o presente de ser cabível sua entrada no Reino de Deus. Perdoada e leve, qualquer pessoa sabe que, por si mesma, não caberia em lugar algum, pois o pecado, a maldade inerente e desajustada em nós, nos faz incapazes de encontrar descanso. Perdoada e leve, qualquer pessoa sabe, também, que pode confiar naquele que fez tudo o necessário para sua entrada e acomodação no lugar de vida eterna. Por isso, estou certo de que o apóstolo Paulo concordaria em dizer: “Em Cristo, Alice cabe até no Reino de Deus. Sem Cristo, não cabe em lugar nenhum”.
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FIDÚCIA E ESPERÁLIO
Uma história com o Salmo 130 Cesar Motta Rios Era uma vez um jovem chamado Esperálio. Ele trabalhava como guarda noturno numa torre alta, num castelo alto, que ficava no alto da montanha mais alta de um reino muito distante. Esperálio tinha que ficar acordado a noite todinha vigiando. Sozinho no escuro, ele ficava com medo às vezes. Tinha barulho de bicho. Tinha o vento. Tinha gente que podia chegar de repente. Mas o pior de tudo era o sono que ele sentia. Era muito sono. Ele custava a ficar acordado. Mas não podia dormir nem um pouquinho. Tinha que vigiar. Uma coisa que Esperálio via toda noite era a princesa Fidúcia que fazia oração por ali. Uma vez, ele não aguentou de curiosidade e foi lá falar com ela. - Princesa, princesa Fidúcia, com todo respeito, o que é que você está fazendo? - Oração. - É. Eu vi. Mas por que você gosta tanto de fazer oração? - Hum... Pra te responder, eu vou ler um versinho do Salmo 130. Ouve só: “A minha alma espera pelo Senhor mais do que os vigias esperam pelo amanhecer! Mais do que os vigias pelo amanhecer!”[1] - Não entendi esse negócio de “mais do que”. - É uma comparação! - Compa- o quê? - Comparação. Você fica vigiando a noite toda, não é? - Sim. - Então, você deve ficar com muita vontade de ver o sol nascer, pra poder ir pra casa tranquilo, não é? - Verdade! Não vou mentir não, princesa. - Aqui tá dizendo que do jeitinho que você fica querendo que chegue o dia, mais ainda eu fico querendo estar juntinho de Deus. - Ah... Entendi. Mas tem um problema! Dizem que Deus sabe tudo. Então, estar com Deus não é perigoso? Ele vai saber que fiz uma coisa errada e me castigar! É que, sabe, princesa Fidúcia, outro dia, o sono estava forte demais. Daí, eu fiz um boneco parecido comigo, coloquei na torre para parecer que era eu, e fui dormir. - Ah... Entendi. Mas tem outra coisa que o Salmo 130 ensina. Ouve só: “Porque com o SENHOR está a misericórdia! Com Ele, muita redenção!”[2] Deus gosta tanto da gente que mandou Jesus para nos trazer perdão, não castigo. - Então eu vou querer orar também! Você me ensina? A princesa Fidúcia disse que ia ensinar o Pai Nosso. Esperálio logo perguntou: - E a gente pede perdão nessa oração? - Sim. Diz assim: “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. - “Assim como”! É a tal da comparação de novo, não é? - Isso! E Deus perdoa nosso pecado de pertinho da gente, como se Ele mesmo falasse direto com a gente, do jeitinho que o Manuel da venda perdoou o João Pedro que tinha esquecido de pagar a compra.[3] - Ah... entendi! Com essa conversa toda, quando foram ver, o Sol já estava nascendo. Naquela noite, Esperálio tinha aprendido a pedir perdão para Deus e Fidúcia tinha feito um novo amigo. ------------------------- [1] Sl 130.6, minha tradução. [2] Sl 130.7, minha tradução. [3] Estou pensando a partir do Catecismo Maior, Quinta Petição, 97. |
AutorCesar M. Rios Histórico
September 2018
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