15º Domingo após Pentecostes – 2018
Comunidade Luterana da Cruz – Porto Alegre, RS A ARMADURA DE DEUS – O OPOSTO DA IDOLATRIA E A AÇÃO DA IGREJA Mc 7.14-23; Sl 119.129-136; Dt 4.1-2;6-9; Ef 6.10-20 Cesar Motta Rios A imagem de um cristão com uma armadura é arriscada. Alguém, lembrando das cruzadas da Idade Média, pode ter em mente algo bastante literal: um homem pronto para a guerra, para matar, em nome de Deus. Mas nosso texto certamente não é literal, não é disso que se trata. Mesmo assim, ainda há o risco de que alguém pense que, em sentido figurado, o que se coloca diante de nós é um cristão cheio de capacidades e pleno de agressividade, pronto a atacar os outros com sua fé. Uma leitura cuidadosa desfaz esse equívoco sem muitas dificuldades. O trecho começa dando sinal de que se trata de uma parte final, colocada depois de todo o percurso da carta. Primeiro, veio uma exposição sobre a ação de Deus em Cristo a favor das pessoas. “Pela graça sois salvos!” Depois, veio uma conversa sobre a vida que essas pessoas viviam a partir dessa ação divina. E, “no mais”, “finalmente” ou “por fim”, vem essa imagem da pessoa cristã em sua batalha. De imediato, diz que devemos ter poder no Senhor, na força do poder dele. Talvez, possamos nos lembrar de Miqueias, que, quase oito séculos antes de Paulo, em meio a falsos profetas, mostrava ser diferente deles justamente por estar cheio da força do Espírito do Senhor, e não de sua própria força (Mq 3.8). Isso nos ajuda a perceber essa ênfase na origem do poder que interessa aqui. Mas continuemos no nosso texto, que será suficiente para nosso tempo: Manda que vistamos a armadura de Deus! E, logo, explica que deve ser assim por causa do tipo de luta (não contra carne e sangue) que nos cabe como Igreja. A construção praticamente exige que leiamos com uma ênfase na entonação ou no gestual aqui: Vistam a armadura de Deus, isto é, não uma armadura convencional, como a desses soldados que vemos por aí! A armadura de Deus não é só uma imagem que aproveita a armadura convencional para comunicar algo. Ela nega essa armadura convencional. Nega sua pertinência para nossa tarefa. Lembramo-nos de Jesus repreendendo Pedro por usar a espada contra o servo do sumo-sacerdote no Getsêmani (Mt 26.51-52). Não nos surpreenderá que essa armadura é composta por justiça, verdade, evangelho da paz, salvação, fé, mensagem de Deus. A armadura é de Deus; e tudo que a compõe é dado por Deus mesmo! E não serve para atacar incrédulos. Não é disso que se trata. Serve, antes, para permanecer com Cristo e manter o testemunho da fé salvadora, da boa notícia da reconciliação de Deus com o mundo em Cristo. É o que nos cabe! Os soldados de César têm seus afazeres, mas os nossos são outros. Isso fica um tanto claro na parte final, em que, além de mostrar a forma como vestimos essa armadura, Paulo fala de si mesmo e de sua batalha. É com orações e preces, em todo tempo e por todos os fieis, que nós nos preparamos, que nós nos prontificamos para a nossa tarefa. E o apóstolo quer que seus destinatários orem também por ele. Sua situação era peculiar. “Embaixador com algemas” - diz de si. Hoje, o termo embaixador faz pensar em uma pessoa de um país que mora em outro, representando os interesses do seu Estado naquela região. Não é disso que Paulo fala. Há quem imagine que ele fala como se fosse do Reino de Deus e estivesse aqui no mundo representando esse reino diferente. É uma leitura bonita. Mas “embaixador” era termo usado para pessoas de qualquer região do império que iam a Roma para ter uma audiência oficial com o Imperador, com o objetivo de tratar de algum assunto específico do interesse de um grupo. Alguns anos antes dessa carta ser escrita, por exemplo, duas “embaixadas” foram enviadas de Alexandria a Roma, uma de judeus e outra de não judeus, para falar com Calígula. Os embaixadores judeus temiam, porque o imperador podia terminar a audiência com uma decisão sangrenta em mente (e em ato). Pois então, parece bem provável que Paulo esteja jogando com essa imagem dos embaixadores que vão a Roma. Ele não era exatamente isso. Era um prisioneiro! Mas, também como prisioneiro, ao ser arguido, teria oportunidade de falar sobre aquilo que ele representava. E ele, como aqueles judeus de Alexandria, sabe que ser franco pode levar à morte em Roma. E morte com muita dor era especialidade dos romanos. O grande Paulo, dono de um currículo missionário impressionante, mesmo quando comparado com os onze discípulos da “formação original”, repleto de recursos por sua formação intelectual, pede oração para que lhe seja dado o discurso exato, e tenha franqueza corajosa de fazer conhecer o mistério do evangelho! Veja bem! Ele está aqui como exemplo desse que procura ter poder de Deus, vestir a armadura de Deus. Ele está aqui como exemplo de alguém que não confia no que tem de si mesmo, mas que reconhece sua dependência de Deus. Mesmo envolvido na ação da Igreja, confiar numa armadura escolhida ou forjada por si mesmo seria idolatria. Exatamente esse reconhecimento, expressado na oração, é o que quero ressaltar como o oposto da idolatria. Sim. Idolatria, no sentido mais grosseiro, é mesmo ter uma escultura que se coloca como deus. Mas, de forma mais sutil e discreta, é também atribuir a coisas algo que cabe somente a Deus. Quando confiamos em nossos próprios recursos, nas nossas próprias armaduras, desconsiderando nossa dependência, enveredamos pelo caminho enganoso da idolatria. Por isso, é sábio e precioso aquilo que Paulo ensina e exemplifica nesse trecho de Efésios. Fazemos bom uso desse ensino se também nós, em nossa ação como Igreja, seja ela individual ou comunitária, reconhecemos nossa dependência, se não confiamos em nossos recursos simplesmente, mesmo fazendo deles bom uso. E nosso aprendizado fica demonstrado se, ao planejarmos e executarmos ações de proclamação do evangelho, nós nos dedicamos à oração e nos apegamos aos meios da graça. Podemos nos envolver em um empreendimento transatlântico, num eventual apoio à missão em Angola ou Moçambique. Podemos perseverar em nossa tarefa de testemunhar o evangelho do perdão entre as pessoas do Petrópolis e as do Morro da Cruz. Ao fazermos isso, pensamos nos recursos que temos. Pensamos nas possibilidades materiais, financeiras, logísticas, nas diferentes aptidões dos membros das comunidades. Mas reconhecemos que isso tudo, que pode ser uma bênção imensa, não é nada se não formos realmente fortalecidos por Deus mesmo, se não for Deus a nos conceder a Palavra e a comunicação certa. Por isso, oramos. Assim, as coisas continuam no seu lugar de coisas, não se tornando ídolos. E Deus continua sendo para nós o que Ele realmente é, nosso Deus, que nos salvou, que nos motiva, nos fortalece e nos move. Para concluir essa reflexão sobre a oração como o oposto da idolatria em nossa caminhada cristã, considerando que precisamos de Deus até para que tenhamos o amor que nos leva à proclamação do evangelho, e que um dia haveremos de descansar de nossa caminhada, leio uma pequena oração, que aparece no contexto da Santa Ceia em um dos mais antigos escritos cristãos fora do Novo Testamento. Diz assim: “Lembra-te, Senhor, da tua Igreja para livrá-la de todo mal e aperfeiçoá-la no teu amor. Reúne-a dos quatro ventos, santificada para teu reino, que preparaste para ela, porque teu é o poder e a glória pelos séculos” (Didakhé 10.5). Amém.
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AutorCesar M. Rios Histórico
September 2018
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