, Cesar Rios e Dionatan Ferreira
Primeiramente, vamos expor brevemente nosso entendimento sobre a oposição que Kierkegaard estabelece entre o amor ao próximo (implicado no “amarás o próximo como a ti mesmo”) e o amor romântico ou a amizade, isto é, o amor por predileção em seu livro As Obras do Amor. Para tanto, trataremos de responder a duas perguntas:1) Por que o amor ao próximo é a eterna igualdade no amar? 2) Como essa igualdade se opõe à predileção? Ao final, refletiremos sobre como essa compreensão do amor ao próximo se relaciona com a abnegação e se harmoniza com a perspectiva da teologia luterana confessional. O próximo no pensamento de Kierkegaard não é uma ou outra pessoa. O termo próximo não implica em exclusividade, que é elemento próprio da predileção. Mesmo estando no singular, ao indicar qualquer pessoa, podendo ser preenchido seu referente por todo e qualquer ser humano implica, isso sim, em igualdade absoluta. O amor a qualquer pessoa é impraticável se considerado como dependente da vontade humana, entretanto a força e a natureza eterna do mandamento habitam na expressão “deves amar ao próximo”. Nisso consiste a igualdade, no fato de que o Eterno Criador de todos ordena que cada ser humano ame a todos. Essa igualdade é violada por qualquer forma de predileção, porque ao passo em que o indivíduo direciona o amor a uma pessoa específica ou um conjunto específico de pessoas conforme sua vontade, ele produz exclusão. Ao produzir esta exclusão, o indivíduo reclama para si o direito de escolher, com o critério que lhe aprouver, quem deve ser compreendido dentro do mandamento, na presunção de estar cumprindo o que lhe foi ordenado. Ademais, para Kierkegaard, a predileção no amor visa, em última instância, o benefício próprio, uma vez que a predileção se origina das características e atitudes que satisfazem o próprio indivíduo que ama. Essa atitude de amar a todos, não cedendo lugar à predileção, obviamente contraria a vontade do indivíduo incumbido do dever de amar. Nisso reside o caráter imprescindível da abnegação para o cumprimento do mandamento. O sujeito que ama não ama conforme quer, mas conforme o deves. Sua vontade precisa ser subjugada, dando lugar à vontade de Deus. Não é incomum, em meio luterano confessional, comentários atribuindo essa afirmação e ênfase de Kierkegaard no dever necessariamente a uma influência pietista. Não obstante, essa subordinação da vontade do indivíduo à vontade divina é oriunda da leitura bíblica, estando presente, por conseguinte, também no âmbito do luteranismo confessional. Franz Pieper afirmará categoricamente: "O ser humano não é autônomo, mas está sob Deus. Nem sua própria vontade nem a vontade de outros deve determinar suas ações" (PIEPER, 1953, p. 37). Nada há de extraordinário nessa afirmação, considerando que o artigo sexto da Confissão de Augsburgo afirma: "Ensinam também que aquela fé deve produzir bons frutos e que é necessário se faça as boas obras ordenadas por Deus, por causa da vontade de Deus" (CA, art. VI - grifo nosso). É certo, contudo, que, a partir de nossa perspectiva luterana, não se deve esperar que o cumprimento do deves possa ser perfeito na presente era. Empecilhos há em nossa condição existencial que nos impedem de executar a ordem divina em sua completude. Lutero refere-se ao medo, falta de confiança e a impaciência nos infortúnios como perturbações que impedem até mesmo os santos de amarem de modo perfeito (LUTERO, 1961, p. 25). Essa imperfeição inevitável, contudo, não anula nossa responsabilidade como sujeitos ao mandamento. Em outra ocasião, Lutero afirma claramente: "Aquilo que pertence ao governo espiritual, contudo, não foi repelido, mas sempre continua ativo, como, por exemplo, as leis em Moisés concernentes ao amor a Deus e ao próximo. Deus ainda quer que essas leis sejam observadas" (LUTERO, 1967, p. 20 - grifo nosso). O amor cristão, afirma Lutero a partir das Escrituras, se estende tanto para amigos quanto para inimigos, inclusive para os que não nos tratam de modo amigável ou fraterno. Essa atitude é característica da vida Cristã e pertence ao que se entende como frutos da fé (LUTERO, 1967, p. 157). Essa afirmação nos faz lembrar do intento de Kierkegaard refletido nas seguintes palavras: Esta pequena obra propõe-se, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda a minha obra de escritor se relaciona com o cristianismo, com o problema de tornar-se cristão, com intenções polêmicas diretas e indiretas contra a formidável ilusão que é a cristandade, ou a pretensão de que todos os habitantes de um país são, tais quais, cristãos. (KIERKEGAARD, 1986, apud PONTES, 2011, p. 176.) Vir a ser ou tornar-se cristão relaciona-se com o desempenhar seu papel na vida como cristão, isto é, viver a vida Cristã. Não se trata de uma pretensão de perfeição, nem de uma negligência diante do dever. Como afirma Pieper: O fato de que a santificação nesta vida sempre será imperfeita não deve ser colocado como uma desculpa para a negligência da santificação. Pelo contrário, a vontade de Deus e a vontade do cristão é que ele se esforce rumo à perfeição; ele quer ser frutífero, não somente em algumas, mas em todas as boas obras. (PIEPER, 1953, p. 33.) Ora, mesmo no contexto do claro ensino da justificação por graça mediante a fé, o deves de Deus tem sentido e precisa ser escutado/anunciado. É, isso sim, pela fé e em Cristo que se chega à possibilidade de se viver o amor ao próximo. Conforme afirma a Confissão de Augsburgo: Por isso, não se deve fazer a essa doutrina concernente à fé a censura de que proíbe boas obras; antes, deve ser louvada por ensinar que se façam boas obras e oferecer auxílio quanto a como se possa chegar a praticá-las. Pois que sem a fé e sem Cristo a natureza e capacidade humanas são por demais frágeis para praticar boas obras, invocar a Deus, ter paciência no sofrimento, amar o próximo, exercer com diligência ofícios ordenados, ser obediente, evitar maus desejos, etc. Tais obras elevadas e autênticas não podem ser feitas sem o auxílio de Cristo, conforme ele mesmo diz em Jo 15: “Sem mim nada podeis fazer”. (CA, art. XX, grifo nosso) A bem da verdade, é no enfrentamento sincero do dever cristão que o sujeito assume seriamente sua condição existencial, suas contradições e o devir cristão, negando suas próprias saídas de autoengano, apegando-se a Cristo em uma vida verdadeira no tempo presente. Há, nesse sentido, um saudável convite de Kierkegaard para uma maturidade cristã necessária e urgente. Referências PIEPER, Franz. Christian Dogmatics. Vol. 3. St. Louis: Concordia, 1953. CONFISSÃO DE AUGSBURGO. In: Livro de Concórdia: As confissões da Igreja Evangélica Luterana. Porto Alegre: Editora Concórdia; Canoas: Editora da Ulbra; São Leopoldo: Editora Sinodal, 2006. LUTERO, Martinho. Lectures on Genesis. In: Luther Works, vol. 3. St. Louis: Concordia, 1961 LUTERO, Martinho. Catholic Epistles. In: Luther Works, v. 30. St. Louis: Concordia, 1967 PONTES, Carlos Roger Sales da. Kierkegaard: pensador religioso/existencial. In: Argumentos: Revista de Filosofia, ano 3, n. 5, 2011. < http://periodicos.ufc.br/index.php/argumentos/article/view/18997>. Data de acesso: 22 de junho de 2017.
0 Comments
|
AutorCesar M. Rios Histórico
September 2018
Assuntos
|