Um amigo levantou a questão sobre a origem do costume de se libertar um prisioneiro por ocasião da Páscoa. Não posso deixar de tentar comentar algo a respeito. Mas já adianto que a resposta não deve satisfazer a curiosidade do amigo ou de qualquer outra pessoa. Talvez, possa complicar ainda mais algo que parecia simples. Antes, vejamos o que dizem os Evangelhos: Mateus: Por ocasião da festa, o governante tinha o costume de libertar para a multidão um prisioneiro, aquele que quisessem. (27.15) Marcos: Por ocasião da festa, [Pilatos] libertava um prisioneiro, aquele que eles requisitassem. (15.6) Lucas: - João: "Há o costume entre vós para que eu liberte um na Páscoa." (18.39) A primeira dificuldade é entender se o costume é dos judeus ou de Pilatos. Mateus e Marcos não afirmam nem de longe que se tratava de um costume judaico. Era uma ação costumeira do governante ou, mais precisamente, daquele governante, Pilatos. É até significativo que Mateus torne o sujeito explícito, enquanto, em Marcos, estava implícito. (Se você está lendo a Almeida Revista e Atualizada, não perceberá isso. Ali, o imperfeito grego é transformado em uma espécie de verbo impessoal: "era costume". Entendo que se trata de um verbo em terceira pessoa bem comum, cujo sujeito é "Pilatos", nome com o qual se encerra a frase anterior no texto em grego.) Mateus não só afirma que o governante soltava um preso, mas que o governante tinha o costume de soltar um preso. Quase parece que ele, evangelista judeu, dizia a seus leitores judeus: "Era coisa dele!". O quarto Evangelho, por sua vez, coloca na boca de Pilatos as palavras de João 18.39. Ele diz que há um costume entre os judeus para que ele liberte um prisioneiro. Lucas, que poderia explicar um pouco melhor a coisa, se cala. E agora? Os leitores costumam ficar entre duas possíveis atitudes: 1) procurar evidências de um costume judaico semelhante, ou 2) procurar evidências de um costume romano semelhante. Outra opção será, para muitos, 3) negar a historicidade do costume e entendê-lo como mera invenção dos evangelistas. (Para ser justo, é preciso dizer que a ideia de "invenção" não é necessariamente pejorativa. Poder-se-ia entender o caso como uma invenção literária bastante criativa com o objetivo de ressaltar uma verdade a respeito de Jesus.) Essa última opção não me parece necessariamente a mais plausível. E não digo isso por uma questão de fé. Acontece que tendo a concordar com os que pensam em uma produção completamente isolada do Quarto Evangelho. O autor não teria sequer tido contato com o Evangelho de Marcos para começar a escrever seu texto. (Na verdade, quem propõe isso de modo muito claro é Peder Borgen, mas explicar detalhadamente a questão não cabe agora.) Por que cargas d'água esse tal "costume" apareceria inventado tanto em João quanto em Marcos (e, por conseguinte, em Mateus)? E por que apareceria inventado de forma não idêntica, o que diminui ainda mais a possibilidade de uma influência entre os textos nesse ponto? Entendo que até mesmo os nada conservadores devem admitir a possibilidade de historicidade do "costume", ao menos para julgarem de modo menos apressado a plausibilidade da hipótese (muito precária, confesso) que apresento aqui. A busca por evidências históricas sobre o perdão pascal fora dos Evangelhos não é frutuosa. Vou ser claro: Não há, até onde eu saiba, relatos dando conta de tal costume nem entre romanos, nem entre judeus. Então, Marcos e Mateus estariam errados ao dizerem que o costume era dos romanos, e João também ao dizer que o costume era dos judeus? Vamos com calma! Marcos e Mateus NÃO dizem que o costume era dos romanos. Eles só afirmam que Pilatos costumava fazer aquilo. Pilatos era romano. Sim. Mas, veja bem, alguém pode dizer que eu, Cesar, costumo comer cogumelos. Contudo, quem escuta isso não pode afirmar que foi dito que os belo-horizontinos têm costume de comer cogumelos. Quanto à informação em João, é preciso lembrar que é colocada na boca de Pilatos! Não é o narrador que apresenta um fato. É, antes, uma fala do romano, que pode ter (como é costume) intenções além da informação. Avalie, então, a seguinte hipótese: Pilatos (ou alguém antes dele) pode ter instaurado essa prática de modo individual, como estratégia em sua relação com o povo judeu que ele governava na Judeia. Ele estabeleceria o costume ou hábito "entre os judeus da Judeia" para ganhar simpatia dos judeus mais poderosos, que poderiam dirigir, por sua vez, o pedido de soltura gritado pelos demais, e, assim, beneficiar quem lhes aprouvesse. Ganham os judeus influentes, que poderiam incitar ou diminuir a possibilidade de revoltas. Ganha Pilatos a simpatia do povo como um todo e a camaradagem dos judeus influentes. Pois bem, em seguida, Pilatos expõe essa ação dele mesmo como um hábito "entre vós", de modo a fazer parecer que, ao executar algo de sua própria inventividade manipuladora, está respeitando algo próprio dos governados. O dominante acaba criando costumes para os dominados. De certa forma, governar os judeus exigia habilidades e maleabilidades peculiares. Pilatos já sabia disso por experiência. Portanto, não é impensável que se criassem práticas peculiares para aquele contexto, já que ações e negociações peculiares eram frequentemente necessárias ali. Nesse sentido é que entendo que não é preciso buscar evidências de tal costume entre os romanos nem em fontes judaicas necessariamente. O fato de ser costume ali não implica em que seja necessariamente costume romano ou judaico. Pode ser costume, em Jerusalém, entre o povo dali (não os judeus como um todo) e o governante dali (não os romanos em geral). E por que não sabemos isso sobre Pilatos por outras fontes? Porque sabemos pouco sobre Pilatos por outras fontes! Há uma quantidade absurda de coisas que desconhecemos a seu respeito. Enfim, provisoriamente, é o que tenho pensado. É óbvio o caráter especulativo dessa construção hipotética que exponho. Eu não a apresentaria como algo comprovável. Alguém poderia propor que Pilatos podia mesmo achar que, ao fazer aquilo, no caso de ter sido algo iniciado por antecessor, estava respeitando um costume dos judeus! E essa hipótese, como a minha, não poderia ser refutada sem novos dados. Estamos no reino das elucubrações. Admitamos! Mas alguns movimentos aqui realizados me parecem importantes para demonstrar que o fato de pouco sabermos não exclui necessariamente a possibilidade de historicidade. Nossa ignorância sobre o contexto (que deveria ser admitida!) não nos permite impor ao texto algo que não lhe é necessariamente próprio. Pelo menos, não deveríamos fazer isso como se fosse verdade absoluta. O que quero dizer é: Se você entende que há invenção por parte dos Evangelistas nesse ponto, deve perceber que esse seu entendimento é hipotético também. Alguém sugere outro caminho para a reflexão?
8 Comments
fNorD
4/8/2021 04:08:40 am
A questão ai é que, baseado na tradição religiosa, é conhecido que toda a bíblia é inspiração divina.
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Clau Rodrigues
11/2/2021 08:40:34 am
Aqui levanto outra pergunta para uma nossa discussão sobre esse prisioneiro que era solto na festa da páscoa.: " por que se solitária um prisioneiro na festa da páscoa ?", " A questão de soltar um prisioneiro na páscoa, séria uma maneira de evitar uma possível condenação a morte, a alguém que estava preso ( de ave alguma dúvida e faltar suficiente de prova), e conseguentimente ser morto injustamente ?". Que quer acham?
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Roberto Guilherme de 0liveira
3/18/2022 08:25:31 am
Bom dia! Ficou claro que não era costume judaico, e sim costume do próprio governador da Judéia, Poncho Pilatos, para agradar e para acalmar o povo.
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Ricardo, servo de Deus
3/31/2022 10:29:44 am
Os judeus mais piedosos, sempre entenderam que a existência do seu povo foi em decorrência à misericórdia de Deus. Eles sabem que são pecadores. Esses mesmos judeus, sempre pensam que seus atos e julgamentos podem conter erros. Sendo assim, fazendo uma referência à sua libertação do cativeiro egípcio, sempre na páscoa, eles concediam um "indulto" a um condenado que o povo entendia ser merecedor ou até mesmo injustiçado. Assim, eles procuravam exercitar a misericórdia e recordavam a sua própria libertação do poder de faraó. A idéia de "indulto" ou "graça", remota desde a antiguidade e, creio eu, o Senhor queria nos revelar algo. Ainda hoje é praticada, agora, porém, regulamentada. Até aqui minha consideração. O Senhor lhes conceda entendimento. Paz!
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Cesar Rios
3/31/2022 02:38:56 pm
Ricardo,
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Franklin Gonçalves
5/5/2022 06:50:34 pm
Boa noite!
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Ari Ribeiro pinto
3/2/2023 02:38:15 pm
Paz do senhor meo.nome é Ari Ribeiro Pinto me surgiu essa pergunta em minha cabeça porque um tinha que ser liberado e outro morto? Olhando para última colocação Franklin Gonçalves fico com essa colocação . Talvez jesus ali represente os dois bodes um morto e outro levando os pecados ao deserto jesus se fez pecado por nós,e também derramou seu sangue por nós cumprindo o profecia dos profetas do senhor um deles Isaías 9.6 e salmos de 22 era nessessario o cumprimento das profecias . A prática disso talvez fosse aplicada no o período intertestamentario pelo governador a pedido do povo para cumprimento das profecias, perceba que jesus foi acusado do maior pecador levando todo o pecado do ,o bode que posto a mão na cabeça e lançado os pecados é mandado para o deserto ,o outro bodes foi morto para remissão dos pecados do povo da nação ,os dois bodes tipifica jesus amém
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Alessandro Azevedo
9/20/2023 12:10:41 pm
Não acredito na historicidade desta passagem nem tampouco de qualquer outra. A 1 e 2 revelações, não trazem história no sentido que conhecemos, mas sabedorias de um povo. Isto não tira sua importância! Existem uma quantidade enorme de acontecimentos relatados nestes livros, sem o menor embasamento HISTÓRICO. Não era a finalidade dos textos , trazer narrativas com compromissos histórico, mas inspirar comportamentos que se encaminhem para atos reais. Pessoas cometeram este erro e o perpassaram ad infinitum.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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