Há quem sugira que ser vegano é reproduzir, ainda que indiretamente, um posicionamento inspirado em algum tipo de panteísmo ou, mais especificamente, no hinduísmo. Há, talvez, alguma imprecisão na menção do hinduísmo, já que o vegetarianismo é também bem visto por muitos integrantes dessa religião. Bom, mas meu assunto não é tanto o que pensam os panteístas ou hindus sobre o veganismo, mas a necessidade/conveniência ou não de se associar toda e qualquer decisão pelo veganismo como recorrência ou eco de uma pensamento panteísta ou hindu.
Alguém habituado aos estudos do cristianismo antigo lembrará de O Pedagogo de Clemente de Alexandria e sua aparente simpatia para com o vegetarianismo. Outro remeterá aos pitagóricos (ainda que Diógenes Laércio e Porfírio divirjam sobre o vegetarianismo ou não de Pitágoras). Eu, porém, encontrei um exemplo que me parece mais adequado para defender meu ponto de vista: Daniel na Babilônia. Todo mundo conhece a história. Daniel e três companheiros foram levados para o cativeiro babilônico. Eles seriam muito bem tratados com a mesma comida do rei e treinados durante um tempo, antes de passarem a servir o governante. Problema! Comer qualquer coisa vinda da mesa do rei implicava em sério risco ou em uma quase certeza de comer algo proibido pela Lei Mosaica. Daniel decidiu tomar uma atitude para não se tornar impuro (לֹֽא־יִתְגָּאַ֛ל) por causa de comida alguma. Obviamente, não dava para exigir uma triagem minuciosa que fizesse respeitado cada detalhe da dieta do povo de YHWH. Imagina: - Vai lá, meu amigo, e tira qualquer traço de porco. - Ok. Peixe vocês podem comer? - Sim. Não. Espera. Bagre não pode ser. - Bagre não. Por quê? - Tem couro. Não tem escamas! - Tá. E se estiver já cozido sem a pele para eu ver? - Aí, não traz. Bom, eis solução simplificadora e viável: Só traga vegetais (הַזֵּרֹעִ֛ים) e água! A complexidade da dieta mosaica surge quando se fala de bicho! Não tem legume que pode comer e legume que não pode! O mesmo para frutas, verduras e grãos. E o que é que quero com toda essa conversa? Demonstrar claramente que, até mesmo no âmbito do cânone bíblico, temos um exemplo de abstenção de produtos de origem animal por um motivo completamente diverso de qualquer religiosidade panteísta ou hindu. Em determinada situação, o vegetarianismo ou veganismo era recurso para se manter sem riscos a dieta prescrita na Torah. Assim também, é possível ser vegetariano ou vegano por diversos motivos também hoje. Conheço pessoas que seguem essas dietas alternativas por motivo de saúde. Algumas, também atualmente, o fazem por praticidade para manter a observância da Torah. Outras, por razões ecológicas. Outros ainda não comem animais por motivos éticos que se resolvem nesta vida, sem qualquer recurso ao sobrenatural. Dizem que não julgam justo causar sofrimento a um animal para seu próprio prazer. Não é mesmo preciso pensar que há algo de divino em uma vaca para perceber diferença entre ela e um pé de alface. Há cientistas que ajudam nessa perspectiva ao afirmarem que os seres humanos não são os únicos seres conscientes no mundo (veja aqui). Claro que todos esses motivos podem ser discutidos. Mas, seja bom ou ruim o argumento, essas pessoas têm pleno direito de manterem um estilo de vida diferente do da maioria sem serem tidas como ingenuamente influenciadas por qualquer religião diferente da delas. Há cristãos mais simples que poderiam ter peso na consciência pensando nisso. Bom, é possível que haja uma onda de interesse no veganismo no ocidente motivada indiretamente por algumas concepções que podem ser mapeadas até certo contato com religiões orientais? Não haveria alguma relação com o crescente interesse nessas formas mais exóticas de religiosidade? Não seria fenômeno semelhante, de alguma forma, ao das abundantes postagens no Facebook assinadas com "Osho"? Bom, não nego que certo número de interessados nesse estilo de vida possa ser ter sido influenciado por algo do tipo. Mas usar tal fato (ou essa possibilidade) para tecer afirmações sobre as origens do hábito das mais diversas pessoas já é outra coisa bem mais complicada. Eu não sou nem vegano nem vegetariano. Como vegetais, fungos, peixes, ovos e derivados de leite. Não me vejo sem comer queijo! Mas respeito a diversidade dos hábitos alimentares. Quem quer comer coma sem incomodar quem não come. E vice-versa. Quando houver vontade de trocar opiniões, que se faça isso com argumentos claros e razoáveis somente. Por fim, é preciso dizer: Não se deve usar Daniel para defender o vegetarianismo. Óbvio que não! Também não vejo como usar a Bíblia como um todo para defender o consumo ou abstenção do consumo de carne. É forçar a barra.
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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