RECOMEÇO (NARRATIVA PARA 47º CONGRESSO NACIONAL DA JELB) Cesar Motta Rios PRÓLOGO Desde os tempos antigos, muito antigos e já quase esquecidos, uma escuridão cobriu a humanidade. Até aquele trágico dia, podia-se dizer que tudo era bom. De repente, ouvia-se falar de morte, guerra, dor... O mal, o perverso. Ele permeava nossas vidas, nos surpreendia pelos caminhos. Havia esperança? Sim, uma esperança pouco entendida, por uma mensagem que se ouviu também desde aqueles outros tempos. Havia luz? Um feixe de luz. Mas as trevas nos cegavam de tal forma, que a esperança e a luz eram já insuficientes para todo mundo ver. O bom parecia tão distante, tão escasso! E nós vagávamos como peregrinos sem destino e sem rumo. Parecia um pesadelo, do qual precisávamos acordar. Era disso que precisávamos! Vivíamos num império de ilusões, e, na ilusão da sucessão de impérios, cada geração pensando por um tempo que seria para sempre, que fazia mais sentido que as outras todas. Mas o tempo se esvaía, e a desilusão sempre de novo reinava. Mas aí que começa nossa história. Como devem perceber, de fato, não nego: sou mais um nesse aparente sem fim de sucessões infrutuosas de gente correndo atrás do vento, gente cheia de aflição de espírito. Mais um no meio da minha geração, mais uma geração entre tantas outras gerações. E é claro que isso não basta. Não basta uma “geração”. Importa a regeneração. É a única saída. Por isso, estamos de pé. Por isso, continuamos. Eu estive em silêncio – você sabe. Agora, é hora de recomeçar. E eu tenho uma história pra contar. CAPÍTULO 1 No meio da guerra, escuridão total. Ninguém enxergava nada. Mas a batalha continuava. Feridos ainda gritavam. Cheiro de sangue e pólvora. Gemidos. Alguns se calavam, e sabíamos que já não estavam de pé. Uns e outros atiravam em direção ao nada, na esperança de atingir o oponente. “Atirar no quê?” – Perguntava sem ver sentido. “No outro lado. Escolhe uma direção e atira, soldado! É guerra!” Continuava não fazendo sentido. Se eu tivesse uma lanterna... Se tivesse uma instrução sensata... Balas continuavam cruzando perto. Um zumbido assustador. Vinham do adversário, que, parece, se deslocava no breu. Não dava mais nem para atirar “no outro lado”. Não se sabia mais de dois lados. A verdade é que qualquer tiro seria um risco para o próprio batalhão, se não se perdesse, o mais provável, num sem alvo da escuridão. “Atira! Atira!” Ainda gritavam. Queria não estar ali. Queria, simplesmente, não estar nessa guerra. Mas não havia porta para sair. Não havia estrada ou direção. Tudo o que havia era guerra. Dei três passos e tropecei em alguém no chão. Cheguei perto. Devia ser cadáver. Não era. Ainda não. Cantarolava música festiva. Eu quis entender: - Você está bem? - Sim, está tudo bem! Muito feliz! - Mas e a guerra? - Que guerra? É um dia maravilhoso hoje! Não me venha com esses assuntos! Toquei o chão para me levantar. Havia sangue, muito sangue. Sangue quente. Tateei e notei a calça ensopada e pegajosa. Assustado, me levantei. Uma artéria lacerada, talvez. Não tinha jeito. Era questão de tempo. E a pessoa que sangrava continuava na sua melodia de dia feliz. Eu só queria gritar, gritar alto. Mas não parecia bom negócio chamar a atenção. Poderia sentar-me e cantar também? Fingir que não era assim? Só esperar o fim? Não organizava bem meus pensamentos. No desespero, tudo o que eu queria era que houvesse luz, uma vela, uma lanterna, um sinal sutil que fosse indicando os inimigos. Ser humano, solto na escuridão, vive preso à própria ignorância; não via nada. CAPÍTULO 2 E houve luz. Já havia, na verdade, mas, agora, a luz estava no mundo. Quero dizer, naquele nosso mundo escuro. Era possível identificar um pouco melhor, pelo menos, de onde vinham os tiros. Havia mesmo inimigos por toda parte. Havia mesmo muito mais gente do que eu pensava. E, com tanta gente, muito mais dor, e muitas cantigas fora de lugar, para dançar ou para ninar. O risco era constante. Agora, eu o via muito mais próximo, muitíssimo mais ameaçador e variado. Não era um só o inimigo, como parecia na escuridão. Eram três. E agiam estranhamente separados, mas estranhamente em colaboração. Um era discreto, tão discreto, que quase se poderia dizer não existir. Mas era potente e astuto. Acho que igual não há na terra. Outro estava por todos os lados, escorrendo líquido por todos os cantos e todas as esquinas da vida. E havia ainda um muito mais perto, arraigado. Se eu fugisse, se eu corresse, se eu dançasse e sacudisse, ele continuava perto, bem junto. Coisa de filme, alienígena, ficção. Mas o sangue não era de simulação, nem os gritos, nem a dor. Vendo, percebi que era tudo tão pior, que quase desejei de novo todo aquele breu. Na ignorância que me oprimia, não sabia que só saber também não resolveria. Não tinha forças contra os adversários. Não tinha como traçar uma estratégia que desse conta. Via-os fortes e ousados. Via-me perplexo e incapaz. “Vou me render!” Acho que pensei em voz alta essas palavras. Mas é fato: ia mesmo desistir. Passa alguém correndo e me deixa uma mensagem, num pequeno papel sujo de sangue, um telegrama. Quem manda telegrama hoje em dia? Incomodamente desatualizado... Mas – que importa? - eu li: “Mantenha a posição. Não vacile. Aguente. A guerra já está resolvida. A vitória é nossa.” Eram só palavras. Era coisa fora do tempo. Era um tanto difícil de entender, considerando o cenário. Não sei explicar. Só sei que eu confiei. CAPÍTULO 3 O telegrama foi só o começo. Vieram mais. Telegramas, cartas, tratados... O medo ainda permanecia, mas eu já não estava tão desorientado. Também não estava tão sozinho. “A vitória é nossa” – dizia aquele primeiro telegrama. Foi aí que vim a saber quem éramos “nós”. Deram-me uma noção bem mais clara sobre que guerra era aquela em que eu estava colocado desde o princípio. Também me deram armas muito mais adequadas para a situação. Não, eu não precisava atirar para todo lado. Não precisava voltar para aquela loucura que tinha vivido na escuridão, com alguém dizendo “atira!” a todo tempo, sem mais qualquer orientação. Aquilo era devaneio inútil. Fui feito parte de um batalhão, uma tropa, pelotão... Não sei bem como expressar. O fato é que, agora, estávamos reunidos, nos protegíamos e nos alertávamos quando um ataque era iminente. E sempre era. Mesmo assim, tínhamos disposição e coragem. Em certas incursões, nos separávamos. Em nossas andanças, sempre cuidadosas, não era raro encontrar gente sem noção alguma da guerra, mas com ferida de morte, com sangue escorrendo. Tentávamos ajudar, estancar o sangue, e levar para o nosso lugar. Nem sempre acontecia de a pessoa concordar. Era de chorar essa cena. Como é que não percebiam?! Como é que não enxergavam ainda...? Nós percebíamos os riscos, e sempre nos reagrupávamos. Reunidos, partilhávamos nossa refeição, nosso sustento; éramos fortalecidos e nos consolávamos, chorávamos e cantávamos, não uma canção de ilusão, uma outra, uma nova, que falava de uma esperança segura, garantida. Nesse ajuntamento, parecia que árvores verdes vicejavam em meio a tanta aridez, luz prevalecia contra sombras ameaçadoras, e a paz era mais forte e real do que os ruídos, gritos ameaçadores, rugidos e tiros. Um batalhão, uma tropa, pelotão... Um organismo, um corpo. Era isso! Assim, eu sabia que poderia prosseguir. Eu tinha uma meta. Tinha companhia, orientação, amizade, vida e sentido. Nem pensava mais em desistir. Cansava? Sim. E muito! Mas sabia onde descansar. E descansava! CAPÍTULO 4 Guerra é guerra. Não é por estar vencida que deixa de ser guerra. É batalha todo dia. E é violenta. Foi um baque quando soube que um de nosso grupo não havia voltado após dias. Escutei palavras de apreensão. Vi olhares preocupados. Ainda sem entender, perguntei: “Acontece isso?” Acontecia, sim. E era sempre muito traumático. Então, me contaram que havia algo mais preocupante. Havia um caso recente de outro pelotão, bem parecido com o nosso, que havia abandonado o posto. Parece que o inimigo tinha feito um estrago irreparável. Em vez de se apoiarem e caminharem juntos, eles se desentenderam e se dispersaram. Trocaram o amor e aquela boa cumplicidade, por disputas sem fim, vaidades e interesses próprios. Sabendo disso, eu me entristeci; Profundamente. Mas não deu tempo de me afundar nesse sentimento. Veio uma palavra de comando. Duas palavras, na verdade. Primeiro, um alerta “Quem pensa estar de pé fique esperto para não cair!” Saber que soldados podiam se perder era motivo de atenção redobrada. A segunda palavra exigia ação: “Leave no man behind!” Meu inglês não é lá essas coisas. Mas me contaram a história de um tal soldado Ryan. Resgataram o rapaz. Eu não tinha assistido isso. Não é do meu tempo, eu acho. Mas fez sentido: Não abandonamos ninguém pelo caminho! Se preciso carregamos os feridos, acompanhamos os vagarosos, apoiamos os que andam mancando. Se estão longe, viajamos. Se estão perdidos, procuramos. Se estão confusos, tentamos orientá-los. Nem sempre voltamos dessas missões cheios de alegria. Gostaria de dizer o contrário, mas a verdade é que podemos ficar longe do êxito, tem vez. Mas não perdemos a esperança, não vacilamos... Temos muito trabalho. Guerra é guerra. É batalha todo dia. EPÍLOGO Então, essa é minha história. E é a sua também. Estamos todos na mesma narrativa. Mas não estamos sozinhos. E não vamos vacilar, porque é batalha todo dia. Não temos medo. Temos recomeço. ------------------ No vídeo abaixo, que é da abertura do Congresso, a narrativa aparece intercalada com uma apresentação musical. A edição e a interpretação me impressionaram muito positivamente!
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O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
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