21º Domingo após Pentecostes – 2019
Comunidade Luterana Concórdia – São Leopoldo, RS QUEM VÊ A DEUS VÊ TAMBÉM AS PESSOAS AO REDOR: SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DO “QUERO AMAR SOMENTE A TI” Lucas 19.1-10 e Isaías 1.10-20 Cesar Motta Rios Primeira parte: Como ver a Deus? Havia no século Id.C. - como há ainda hoje entre judeus - uma interpretação bastante peculiar do nome Israel (יִשְׂרָאֵל). A palavra era vista como uma compressão de três outras ish roê El (אֵל רֹאֶה אִישׁ), “uma pessoa que vê a Deus”. Essa explicação não parece muito razoável do ponto de vista etimológico, linguístico, mas expressa algo que era tido como meta de muitos israelitas piedosos. Dedicar-se ao estudo e à observação da Torah não tinha que ser um fim em si mesmo. Ver a Deus era um objetivo maior. Claro que isso é um pouco curioso. Um povo que cultuava um Deus sem imagem, sem representação visual, queria ver esse Deus. Devia ser seu anseio, obviamente, no sentido de conhecer a Deus, ter com ele comunhão, como expressa o salmo 130: “A minha alma anseia pelo Senhor mais do que os guardas anseiam pelo romper da manhã!” Curiosamente, o pequeno Zaqueu, que, talvez por mera curiosidade, queria ver quem era esse tal Jesus, dá um grande passo nesse sentido. Ele sobe numa árvore. Sobe alto, parece, porque Jesus tem que olhar para cima para vê-lo. Zaqueu quer ver Jesus. Não sabe, mas quem vê o Filho vê o Pai (João 14.9). Não sabe, mas mais importante do que ele ver Jesus é ser visto por Jesus, que dá um passo que ele não podia dar. Jesus se convida. Faz isso de forma enfática. Não é “será que eu poderia ficar na tua casa hoje?”, mas “é preciso que eu fique na tua casa hoje”. E era mesmo necessário. Não para Jesus, mas para Zaqueu. Nós sabemos disso, porque sabemos que também nós precisamos que Jesus fique conosco, e não só vê-lo passar. Precisamos que ele aja em nossa vida, e não somente saber do que fez na vida de alguém mais. Segunda parte: E o que acontece quando se procura realmente ver a Deus? Sabemos que o escalador de árvores se torna anfitrião do Mestre. Não temos acesso ao que acontece exatamente na casa, na conversa. Mas somos levados ao momento em que Zaqueu demonstra seu arrependimento, sua mudança de rumo. Ele se levanta e anuncia a Jesus que daria a metade de suas posses às pessoas necessitadas e que estava disposto a reembolsar (com certa indenização) qualquer pessoa lesada por ele. A resposta de Jesus declara que tinha havido salvação naquela casa, porque aquele sujeito, Zaqueu, também era filho de Abraão. Essa afirmação poderia soar também estranha. Zaqueu, pelo nome judaico que tem, devia ser mesmo um judeu descendente de Abraão. [Com esse mesmo nome, temos, no livro de Neemias, um importante chefe de família que voltara do exílio na Babilônia (Neemias 7.14).] Mas o que ele era por ascendência, por sua árvore genealógica, não era pela vida que levava. Era uma ovelha, mas uma ovelha desgarrada. O Filho do Homem, diz o texto, veio buscar justamente o perdido, como Zaqueu. Agora, voltemos e observemos. O que Zaqueu diz que fará ao ter Jesus em sua casa? Uma oração de duas horas? Um sacrifício especial no Templo? [Lembrando que o Templo estava em funcionamento e devia ser usado mesmo pelos judeus.] Uma placa em homenagem a Deus, ao nome de Jesus? Não. Não. Não. Zaqueu, quando vê Deus em sua casa, vê os que tinham ficado do lado de fora. Olhos que veem a Deus se abrem para o próximo. E isso precisa ser aprendido e gravado no coração. Infelizmente, pelo contrário, de cor, gravados nas mentes de muitos cristãos brasileiros, estão versos que dizem assim: “Me ensina a ter santidade / Quero amar somente a ti”. Contraditório estarem em uma música composta justamente a partir da história de Zaqueu, que ensina outra coisa: Eu não posso amar a Deus somente! Meu amor a Deus está unido ao amor ao próximo! Minha reação é dirigida ao próximo. Se está difícil de entendermos, ou se não queremos Zaqueu como mestre, ouçamos nosso querido João: “Quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E o mandamento que dele temos é este: quem ama a Deus, que ame também o seu irmão” (1 Jo 4.20-21). Isso não se joga fora. Isso não se substitui por nada: Nem pelo mais lindo culto; nem pelo melhor canto; nem pela maior oferta para a Igreja. O culto a Deus não pode ser refúgio, um esconderijo para nosso egoísmo. O que foi que lemos em Isaías: O Senhor diz sem meias palavras que despreza o culto do povo. E esse culto foi ordenado por ele mesmo! Mas não era para ser feito com aquele coração e com aquelas ações iníquas, perversas como plano de fundo, ferindo as pessoas, como se nada estivesse acontecendo. Para não parecer que o pregador exagera, leiamos novamente, com reverência isto que é seríssimo: “Quando vocês estendem as mãos, eu fecho os meus olhos; sim, quando multiplicam as suas orações, não as ouço, porque as mãos de vocês estão cheias de sangue. Lavem-se e purifiquem-se! Tirem da minha presença a maldade dos seus atos; parem de fazer o mal! Aprendam a fazer o bem; busquem a justiça, repreendam o opressor; garantam o direito dos órfãos, defendam a causa das viúvas.” (Isaías 1.15-17) Quem pensa que pode impressionar a Deus com seu culto enquanto ignora as pessoas ao redor está enganado. Quem nega o amor ao outro e diz amar a Deus sobre todas as coisas, na verdade, está preso em seu egoísmo, mesmo que não saiba. Infelizmente, as seguintes palavras de outro compositor, não o daquela canção muito decorada, são verdadeiras: “O Deus que se canta nem sempre é o Deus que se vive” – escreve e canta João Alexandre. É verdade. Terceira parte: E se, querendo ver a Deus, vimos a nós mesmos e nos assustamos? Agora, se vemos que estamos pequenos diante do padrão de Deus, se nos assustamos quando encaramos com sinceridade nossa falta de amor, e, assim, estamos inadequados para o culto a Deus, para o culto de Deus, o que nos resta é escutar o convite dele mesmo: “Venham, pois, e vamos discutir a questão. Ainda que os pecados de vocês sejam como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, eles se tornarão como a lã” (Isaías 1.18). Hoje, nós ouvimos o convite do próprio Jesus. Ele nos chama, de modo especial, arrependidos, à Santa Ceia. Aqui, entrega seu perdão para que o recebamos de forma tão clara, notável! E, além de nos perdoar completamente, também nos fortalece. Na nossa liturgia tradicional, na Ação de Graças, pedimos justamente que a Ceia nos traga fortalecimento da fé e faça ser vivo nosso amor pelas pessoas que encontramos pelo caminho. É isso. Sabemos que somos imperfeitos. Recorremos ao perdão pelo sacrifício de Cristo. Agora, imperfeitos e perdoados, queremos melhorar nosso procedimento. E queremos mesmo. Porque queremos ser livres do mal (que há em nós!), para praticarmos o bem. Esse é o jeito bom de se viver. É o jeito que faz sentido. Difícil sozinho? Sim. Impossível sozinho, na verdade. Mas não se preocupe. O Mestre vem ter uma refeição com você hoje mesmo, porque ele quis te amar até o fim. Termino com palavras do livro de Isaías: “Se estiverem dispostos e me ouvirem” – Diz o Senhor – “Vocês comerão o melhor desta terra” (Isaías 1.19). Amém.
0 Comments
Leave a Reply. |
O autorCesar Motta Rios é teólogo. Tem Doutorado na área de Literaturas Clássicas e Medievais, com pós-doutorado na área de Filosofia Antiga. Exerce ministério pastoral junto à Igreja Luterana em Miguel Pereira - RJ. Para acessar seu currículo e encontrá-lo em outras plataformas, clique AQUI. Histórico
April 2023
|